<REVISTA TEXTO DIGITAL>

ISSN 1807-9288

- ano 5 n.2 2009 –

http://www.textodigital.ufsc.br/


 

ASPECTOS QUÂNTICOS DO CIBERTEXTO

 

 

 

 

Pedro Barbosa

CETIC (Centro de Estudos em Texto Informático e Ciberliteratura)
Universidade Fernando Pessoa, Porto/Portugal
http://www.pedrobarbosa.net/

pedro_seriot_barbosa@hotmail.com

 

 

 

Resumo: Alguns pressupostos epistemológicos da teoria quântica na sua abordagem do mundo natural (virtualidade/actualidade, interacção observador/observado, imprevisibilidade e causalidade estatística, dualidade unitária das partículas, noção de informação, etc.) aproximam-se surpreendentemente das propriedades manifestas pelas novas textualidades digitais, nascidas com a era do computador, e aqui designadas genericamente como “cibertexto”. É propósito deste artigo ensaiar uma aproximação entre o modelo quântico e o modelo semiótico, não tanto para revelar uma simples homologia, mas antes para sugerir uma visão unitária subjacente à abordagem dos vários níveis de realidade (matérica, biológica, mental, cultural e espiritual). Essa aproximação entre a visão quântica da matéria e o cibertexto centraliza-se terminalmente na unificação triádica dos conceitos matéria/energia/informação com os conceitos fulcrais do triângulo semiótico: significante/significado/sentido.

 

 

 

 

«Todo o universo deve ser considerado como um sistema quântico

com estados visíveis-reais e invisíveis-virtuais.»

Lothar Schäfer

 

 

A teoria quântica, originariamente concebida como teoria física para ser aplicada à estrutura íntima da matéria e às propriedades paradoxais das micropartículas (electrões, protões, átomos, moléculas), encerra pressupostos filosóficos que abrem uma nova maneira de pensar a realidade. Sabemos o risco que comportam as extrapolações, tantas vezes fantasiosas, desta teoria para outros níveis de organização do real. No entanto, Lothar Schäfer (químico quântico) é peremptório em afirmar que não é só no campo da microfísica que tais propriedades se manifestam: «As moléculas são a base da vida e as moléculas são sistemas quânticos. Todas as coisas, pequenas ou grandes, existem em estados quânticos.» [1] E o matemático Roger Penrose corrobora: «A mecânica quântica está omnipresente mesmo na vida quotidiana, e encontra-se no cerne de muitas áreas de alta tecnologia, incluindo os computadores electrónicos.» [2]

Porquê então o termo "quântico" aplicado ao domínio do texto? Em nome de uma moda passageira? Não, não se trata só de uma metáfora.

Tentamos encarar aqui o texto, e a produção de sentido, já não propriamente dentro de uma perspectiva atomístico-estruturalista, e sim num outro paradigma, próximo do pensamento quântico. Isto porque se podemos, por um lado, considerar cada palavra como um “átomo de sentido”, por outro lado a produção de sentido no discurso vai-se fazendo dinamicamente de palavra em palavra, num jogo onde todas as palavras interagem umas sobre as outras, havendo de uma palavra para outra uma espécie de salto qualitativo de informação, um "salto de sentido" equivalente a um "salto quântico" de energia informacional. De palavra em palavra opera-se então no discurso uma sucessão de saltos de sentido, de tal modo que o sentido final do discurso decorra da inter-relação e do entrelaçamento em rede de todas as palavras contidas no texto. Um simples “não”, introduzido no início de um discurso, transmuda-o logo de um registo positivo para um registo negativo. É esse o truque em que assenta o romance de Saramago, a História do Cerco de Lisboa: uma simples gralha, um “não” introduzido por um revisor de provas, vai alterar irremediavelmente o discurso do historiador – como se fosse uma onda espraiando-se por sobre toda a superfície do texto. Realçamos: uma “onda” e não uma “partícula” pontual. Há aqui uma espécie de "não-localidade" (como diria um físico quântico[3]), e até à última palavra qualquer texto está sempre sujeito a mutações de sentido. Qualquer palavra interage com todas, tal como uma única pedra lançada a um lago vai interferir sobre todo o padrão de ondulação existente na superfície das águas. As palavras, assim encaradas no interior do discurso, poderiam então ser descritas como fenómenos ondulatórios – mais do que como partículas bem localizáveis na rede textual, base da perspectiva estruturalista que, no século XX, mais não foi do que a emergência do pensamento atomístico nas ciências da linguagem. Transitamos assim de um pensamento estrutural para um pensamento quântico: tal qual um electrão ou um átomo, uma palavra também pode ser vista como partícula (no plano matérico do significante) ou como onda (no plano flutuante do sentido). A última palavra de um texto interage a distância com a primeira, podendo operar no todo uma alteração final de sentido. Enfim, todas as palavras de um texto ligam-se entre si gerando um complexo padrão de interferências ondulatórias cujo resultado final é o que chamamos de “sentido”. Algo idêntico ao modo como a física quântica descreveria um “objecto”, ou seja, um padrão resultante de interferências ondulatórias entre as múltiplas partículas de matéria que o constituem, parecendo estas relacionar-se entre si independentemente da distância a que se encontrem no universo...

É esta propriedade da “extensão” das palavras, algo “não-localizável” inerente ao plano da construção do sentido, aquilo que nos parece comum e partilhável entre a teoria do texto e a teoria quântica da matéria.

Por “não-localidade”, na física quântica, entende-se a propriedade derivada da natureza não-corpuscular das partículas subatómicas, encaradas estas na dualidade onda-corpúsculo. O carácter local ou corpuscular de uma partícula opõe-se assim ao carácter extenso e não localizável de uma onda. Se uma palavra (considerada esta no seu aspecto matérico de “significante”, sonoro ou gráfico) nos aparece como uma partícula localizável e tem uma posição definida no texto, como determinar, por outro lado, no plano imaterial do “significado” (ou melhor, no plano semântico), o sentido que lhe corresponde e que parece planar inespacialmente por todo o texto como uma onda vibratória? As ondas não têm atributos pontuais, a sua natureza caracteriza-se antes pela sua extensão. Tal como os sistemas quânticos, que possuem ao mesmo tempo propriedades locais, características dos corpúsculos, e propriedades de extensão, atributo das ondas, também as palavras (na sua dupla dimensão de significante e de significado, material e mental) podem, a nosso ver, ser descritas complementarmente na sua intrínseca dualidade: como sistemas quânticos ambivalentes, simultaneamente ondas e partículas. Isto implica que as palavras apresentem propriedades quer de corpúsculo, com localização precisa (lexicologia, sintaxe), quer de extensão, de onda vibratória de sentido (ao nível semântico). Consoante a perspectiva em que sejam analisadas, as palavras (tal como as partículas atómicas) também se manifestam ao observador quer sob um aspecto quer sob o outro.

São pois os pressupostos epistemológicos do mundo quântico aquilo que aqui nos importa, não a sua operacionalidade física ou matemática. Por isso, nesta aproximação, não levaremos a nossa ousadia muito além do direito de citar, sugerindo apenas uma homologia entre o modelo quântico e a teoria do texto, homologia cuja aplicabilidade ao texto gerado por computador se nos afigura particularmente rica de potencialidades.

 As textualidades inauguradas com o advento da informática, caso do texto virtual, do texto automático, do texto generativo ou do hipertexto, requerem uma correspondente forma outra de encarar a construção do sentido.[4] Ora os pressupostos basilares do pensamento quântico revelam-se expressivamente operatórios para esta nova teorização do texto. De entre eles, realcemos os seguintes:

1)         A introdução da noção de informação na própria estrutura da matéria e na dinâmica da natureza (para além das duas noções clássicas de matéria e energia);

2)         A valorização da aleatoriedade na interacção das partículas elementares, encarada também esta como uma propriedade íntima do mundo natural – daí que a imprevisibilidade dos seus efeitos leve à noção de conhecimento como ordem probabilística;

3)         A superação do princípio lógico da identidade ou da não-contradição, o qual parece abrir-se a uma nova convergência da coincidência dos opostos (caso da dualidade unitária das partículas quânticas, metaforizada no famoso exemplo do gato de Schrödinger[5]);

4)         A reanimação dos velhos conceitos de virtualidade e de actualidade;

5)         A importância atribuída ao observador na manifestação das propriedades físicas da matéria - entenda-se, da realidade.

Estes pressupostos são já suficientes para abrirem cortinas na abordagem do real, tanto quanto na conceituação do “texto”: matéria organizada de sinais que armazenam, transportam e trocam informação.

 

 

 

1 - Teoria quântica e literatura quântica: pontos de partida

 

«A ordem visível do universo é a expressão fenotípica de uma ordem mais profunda: a da realidade quântica.»

Lothar Schäfer

 

Do ponto de vista da leitura, poder-se-ia designar aqui por “texto quântico” aquele texto múltiplo que, quando encarado do ponto de vista do autor (ou seja, do ponto de vista da sua construção), nos surge como “texto generativo” ou “texto virtual”[6]. Com efeito, as propriedades de sentido resultantes do texto automático aleatório, até pelo seu carácter potencial, aproximam-se muito das propriedades que os físicos atribuem aos objectos quânticos. Por exemplo: um texto múltiplo, na sua manifestação concreta, pode ser de certo modo uma coisa e várias outras ao mesmo tempo, assim desafiando a paz do princípio da identidade; ele é regido pela indeterminação na multiplicidade do seu ser; e opera uma dialéctica permanente entre a ordem e o acaso, existindo primeiramente enquanto estrutura num estado de permanente disponibilidade virtual antes de se manifestar, de modo vário, no plano actual ...

Escreveu Heisenberg, em Physics and Philosophy (1962): «As entidades quânticas (partículas atómicas) podem existir numa espécie de realidade não conhecida das coisas vulgares, num limbo entre a ideia de coisa e a coisa real» (LS, p.115)[7]. Descobrimos aqui, na estrutura íntima da matéria, algo que serve também à descrição das propriedades intrínsecas do “cibertexto”[8]: ou seja, a noção de probabilidade, de campo de possíveis textuais, o estado de virtualidade entre o ser e o não-ser, a relação entre a ordem e o caos.

Afirma Lothar Schäfer, em In search of Divine Reality (1997): «Existe uma noção geral de que, uma vez que as transições para novos estados (mutações) são aleatórias, a ordem e a complexidade que evoluem no processo devem ser as criações do acaso. Mas uma não decorre da outra. Enquanto os saltos de um estado quântico para outro são regulados pelo acaso, a ordem dos estados sobre os quais o salto recai não é.» (LS, p.116).

Não realçamos aqui esta aproximação de um modo fortuito. Na verdade, só pretendemos chamar a atenção para esta similaridade no intuito de dar uma consistência metafísica à produção textual aleatória e maquínica (a exemplo da gerada pela maioria dos geradores automáticos, como é o caso do «Sintext»[9]), e assim afastar as acusações levianas de que costuma ser alvo ao apelidarem-na de mero formalismo literário ou simples jogo de palavras sorteadas, num contexto estritamente positivista. Se uma lotaria intervém dentro de um texto potencial, isso despoja-o a priori de sentido? O mesmo jogo do acaso não intervém na ordem mais íntima da natureza? Ao nível atómico, ao nível biológico, ao nível histórico, ao nível social? Será preciso lembrar aqui a ideia dos “jogos de linguagem” subjacente à filosofia de Wittgenstein?

O que visamos com esta designação metafórica (sublinhe-se metafórica) aplicada à tipologia do texto, é realçar a transposição que se faz desde a ordem mais profunda da organização do real para a ordem textual. Pensamos assim atribuir uma consistência ontológica à tipologia do texto generativo e ao acaso na arte em geral, sendo isso mesmo o que na noção de “texto cibernético” subliminarmente já propúnhamos desde 1977.[10]

Com efeito, o que é que o texto cibernético propunha? Basicamente, uma estrutura (a “ordem” introduzida no programa) e uma base lexical ou reportório de palavras seleccionadas aleatoriamente. Nesta tensão variável entre a ordem e o acaso poderiam ser transpostas, para o plano literário, as palavras do químico Schäfer a respeito dos nucleótidos na célula vital: «Neste modelo considera-se que os [nucleótidos] formam uma hipersuperfície de energia potencial multidimensional com muitos estados estáveis – um real e outros virtuais – e uma mutação que é a transição, envolvendo séries complicadas de saltos quânticos, de um estado real do ADN para um estado virtual com uma diferente distribuição nuclear.» «Em princípio – conclui ele – todo o universo deve ser considerado um sistema quântico com estados visíveis reais e estados invisíveis virtuais» (LS, p.117). Assim poderíamos nós também descrever os processos textuais, usando as mesmas palavras que são por ele aplicadas à explicação quântica das mutações biológicas: «Seguindo a perspectiva darwinista ortodoxa, as mutações não são desprovidas de causa (são causadas por agentes mutagénicos) mas são aleatórias, na medida em que não são dirigidas em nenhum sentido, como por exemplo, visando melhoramentos» (LS, p.117). Em suma: «A ordem visível do universo é a expressão fenotípica de uma ordem mais profunda: a da realidade quântica» (LS, p.118). E acrescenta: «Na perspectiva quântica, os genes [leia-se aqui: as estruturas textuais] são veículos ou estações de retransmissão por meio das quais as mensagens de uma ordem subjacente são reveladas» (LS, p. 119). E uma extrapolação idêntica poderia então fazer-se, por analogia, do plano biológico para o plano textual.

«A complexidade que evolui não deriva do caos nem do nada, mas da efectivação da ordem virtual que existia muito tempo antes de ser efectivada» – são palavras de Schäfer (LS, p.119). Aqui se encaixaria uma resposta que, tantas vezes, nos ficou por dar quando interpelados sobre o constructo textual dos geradores automáticos: jogo verbal? formalismo literário? neo-barroco? neo-surrealismo maquínico? neo-dadaísmo? montagem neo-modernista? experimentalismo oco?

Nada disso. A nosso ver á neste jogo verbal uma consistência ontológica de natureza mais profunda.

Diz Lothar Schäfer: «Nos fenómenos quânticos, descobrimos que a realidade é diferente do que pensávamos que era.» Na verdade, existe algum motivo para acreditarmos que os objectos sejam de alguma forma semelhantes aos fotões que ressaltam deles? «A ordem visível e a permanência são baseadas no caos e em entidades transitórias. Os princípios mentais – relações numéricas, formas matemáticas, princípios de simetria – são os fundamentos da ordem do universo, cujas propriedades de aparência mental são também estabelecidas pelo facto de que alterações na informação podem agir, sem qualquer intervenção física directa, como agentes causais em alterações observáveis nos estados quânticos.» A substância do mundo – escreveu Eddington – é substância mental. E em cada molécula do nosso corpo estamos sintonizados com a substância do universo! (cf. LS, p.152)

Este espanto do físico quântico face ao comportamento íntimo da matéria, onde o princípio da indeterminação impera, é exactamente o mesmo que experimentamos face ao texto cibernético aleatório quando, na sua indeterminação, o vemos misteriosamente produzir sentidos literariamente inesperados – e quantas vezes superando a própria capacidade imaginante do seu autor-programador. É esta a razão pela qual propomos designar este tipo de produção textual, no seu conjunto e diversidade, como “texto quântico”.

 

Exemplo de poema quântico

(fragmento 1)

~ sobre léxico herbertiano ~

 

 

Ofereço-te um soneto.

 

Ah, um rosto

é o que eu procuro

nas esquinas tenebrosas.

 

Olha: eu queria saber em que corpo se morre, para ter uma infância

e com ela

atravessar linhas leves e ardentes e crimes

sem a

poeira a tremer, e o teu Rosto

se voltar lentamente cheio

de febre para

uma Lua

despida

à janela.

 

Não faças com que esse silêncio te procure.

Leva braços

como se fossem harpas no teu nome:

os quadris

arqueados ao poder de vírgulas

selvagens.

 

Porque há maneiras outras de os amantes

viajarem:

 

Respira sobre folhas

largadas no ar

pelos teus dedos...

 

Oh,

Quem se alimenta de voz, quem

Se despe entre mãos desencostadas, pergunto,

Quem ama até perder o coração?

 

Por analogia com a Teoria Quântica, também textos como este gerados no Sintext podem, no plano do sentido, ser e não ser simultaneamente, isto é, assumir sentidos opostos e contraditórios, dependendo isso da atitude interpretativa do leitor/observador. É o que veremos de seguida.

 

 

 

2 – Definição e pressupostos

 

«Agir em resposta a alterações de informação é prerrogativa de uma mente.

Desta forma, nos fundamentos da realidade, descobrimos

entidades com propriedades de aparência mental e um princípio

não-material e não-energético – a informação – como agente eficaz.

As ondas quânticas manifestam um comportamento de aparência mental.»

Lothar Schäfer

Designaríamos então por “literatura quântica” (numa acepção extensa) todo o tipo de textos programados em computador segundo estruturas generativas dinâmicas, automáticas, variacionais, reticulares ou interactivas, onde a multiplicidade dos sentidos e a indeterminação das formas os aproxima das propriedades dos objectos quânticos. Em sentido mais restrito, contudo, faremos incidir o termo no texto generativo automático, por ser aquele em que a virtualidade e a indeterminação aleatória leva mais longe a dissolução do conceito linear e estático do texto tradicional.

A física quântica fala de um sistema suspenso numa sobreposição de estados contraditórios e o mesmo se pode dizer da sobreposição de sentidos (ou estados de leitura) de um texto automático variacional. Mais: quando (no plano da natureza) o estado material de uma partícula é originado pelo acto de observação que a faz emergir de um estado ondulatório virtual, o mesmo se poderá dizer de um “texto cibernético” que, no seu estado de disponibilidade estrutural, só é actualizado pela geração computacional e pela interpretação (observação) que se lhe segue, aí assumindo um entre “n” estados reais possíveis tendencialmente infinitos.

A designação de "literatura quântica" posiciona-se assim do lado da leitura, enquanto as correspondentes designações de "literatura generativa", "texto variacional", “literatura algorítmica”, "texto automático" ou "texto virtual" se posicionam do lado da escrita e têm como ponto de partida a sua génese ou a sua estrutura. No domínio das “novas textualidades” parece-nos realmente ser o texto automático (aleatório ou combinatório) aquele que mais problemas levanta na conceituação do constructo literário e da sua recepção. Mas mesmo no caso do “hipertexto” (que pode nada conter de randomizado nas suas ligações em rede) a indeterminação intrínseca do acto de leitura (considerando aqui a leitura como equivalente ao acto de “observação” da partícula física na esfera da natureza) legitima uma aproximação, quanto mais não seja analógica, entre estas novas textualidades e a teoria quântica.

A este propósito lembra Vicente Gosciola em Roteiro para as Novas Mídias [11]: «O modelo proposto pela teoria quântica define o sistema atómico onde os elétrons se compõem, decompõem e recompõem em ondas de probabilidade e se comunicam instantaneamente, estejam distantes ou não. É um modelo muito oportuno para fazer uma analogia com o modelo de uma estrutura hipermediática, onde as ligações entre os conteúdos se fazem perceptíveis ou não para o usuário, onde os links podem unir instantaneamente os conteúdos, distantes ou não, como os elétrons.» (ob. cit., p.204) Com efeito, a ligação instantânea (ou quase) entre os conteúdos de comunicação feita pela hiperligação faz evocar a “comunicação” a distância experimentalmente verificada em laboratório entre as partículas quânticas. É este salto de linguagem que leva a narratividade digital para um ambiente interactivo não-linear e que, de certo modo, o faz mergulhar num “caldo indeterminista” (o.c., p.204). Não é mais possível prever as ocorrências de leitura entre o utilizador e a obra – tal como não é possível, de acordo com o princípio de incerteza de Heisenberg, prever o comportamento exacto de uma partícula atómica no acto de observação. O roteiro de um hipertexto pode estimar que o leitor possa aperceber-se da presença de um link por um momento e num outro momento não, assim como o electrão para o modelo quântico. No modelo que trabalha com probabilidades da física quântica, o link pode estar para o conteúdo – lembra Gosciola – assim como o electrão pode estar para o núcleo do átomo. «É o elétron quem faz a ligação entre os átomos. A teoria quântica pode calcular o comportamento dos elétrons, mas não pode precisá-lo. Assim como o roteirista da hipermídia só pode estabelecer sem precisão as trilhas definidas pelo uso da obra. O roteirista de hipermídia sabe que a estrutura narrativa de sua obra necessita de um certo número de links para oferecer tal interatividade ao usuário, mas não pode definir com precisão as trilhas que o usuário irá tomar. Aliás, mesmo considerando os limites de espaço físico para os dados em disco ou a propriedade de finitude da narrativa tradicional, quanto mais diferentes possibilidades de links entre os conteúdos forem oferecidos, maior será a eficiência comunicacional da hipermídia.» (ob. cit., p. 205)

Tal como na teoria quântica, há aqui uma clara transição entre o estado virtual múltiplo oferecido pela estrutura do hipertexto e a sua passagem a um dado estado actual de sentido mediante o acto de leitura (algo muito idêntico à passagem de uma partícula quântica desde um estado ondulatório virtual até um estado corpuscular actual operado pelo acto da sua observação). É nessa passagem de um estado virtual ao estado actual que se insinua a incerteza e a indeterminação.

Em hipertexto – lembra também George Landow em Hypertext 2.0: The convergence of contemporary critical – o autor deve operar com probabilidades para saber qual a trajectória percorrida pelo usuário. E é essa indeterminação, decidida durante os “saltos” da leitura de um hipertexto ou durante as “escolhas” aleatórias de um gerador automático, que nos leva a imaginar um modelo quântico para a comunicação literária em ambiente hipermediático.

A não-localidade, derivada da natureza não-corpuscular dos fenómenos quânticos, define um ambiente físico também ele comparável à estrutura reticular, descentrada e rizomática, do hipertexto e da hipermédia: aliás, esse espaço textual, sem centro e sem periferia, é o universo próprio de qualquer estrutura digital em rede.

Mais curiosa ainda é a similaridade entre a não-localidade dos fenómenos quânticos – ou o “emaranhamento quântico” de que fala Penrose a propósito das partículas elementares – e as relações não-locais estabelecidas entre as palavras na estrutura de um texto para produzirem sentido, mesmo quando se encontram a grande distância nesse texto. Realmente, a conjunção das propriedades das palavras ao nível do que designamos como significados, interagem entre si a distância, no plano semântico, como verdadeiros fenómenos não-locais de efeito globalizante nessa complexa rede ou urdidura que é o sentido global resultante de um texto. Poderíamos então falar de um “emaranhamento semântico” (fenómeno global e não-local) transitando agora para o plano semiótico.

De facto, a interferência dos sentidos entre as palavras num qualquer texto funciona de modo tão análogo com o das partículas a distância, que o poderíamos descrever como se se tratasse da mesma propriedade de não-localidade verificável agora num sistema textual. Quando o texto nos propõe algo como “Quem se despe entre mãos desencostadas, pergunto”, ou “Quem se despe entre linhas encostadas, perguntamos”, ou “Quem se despe entre paisagens inclinadas...”, ou “Quem se despe entre paredes apertadas...”, etc., é como se houvesse uma atracção semântica entre essas palavras entre si, e com todo o texto, para se conjugarem num sentido. É como se as palavras se pusessem em sintonia entre si – digamos, com o mesmo spin – para produzirem sentido independentemente da distância a que se encontrem no texto (desde que essa distância seja memorizável pelo leitor, quer dizer, desde que seja observável). As palavras, embora separadas na superfície material do texto, entram em comunicação umas com as outras no plano do sentido – tal como os objectos quânticos, que apesar de separados, se mantêm estranhamente em comunicação entre si, no tal “emaramanhamento quântico” de que fala Penrose.

Ora, no plano semiótico, como é que um sentido se edifica na nossa consciência? O sentido é uma resultante, na nossa mente, desse entrecuzamento global de significados na tessitura de um texto constituído por sinais materiais... Parece, pois, que estamos dentro de um mesmo paradigma de compreensão: o qual por isso mesmo (e não só por analogia) dá conta de uma similaridade de fenómenos entre níveis tão diferentes da realidade, seja ele o matérico, seja ele o cultural.

Daí que faça todo o sentido, para nós, a afirmação de Lothar Schäfer quando fala, paradoxalmente, em fenómenos de aparência mental no comportamento das ondas quânticas:

«Agir em resposta a alterações de informação é prerrogativa de uma mente. Desta forma, nos fundamentos da realidade, descobrimos entidades com propriedades de aparência mental e um princípio não-material e não-energético – a informação – como agente eficaz. As ondas quânticas manifestam um comportamento de aparência mental.» (LS, p. 75)

É pois o texto aleatório gerado automaticamente por computador aquele que, a nosso ver, maximiza esta aproximação com o universo quântico. Permitimo-nos fazer aqui referências recorrentes ao sintetizador «Sintext» (© P. Barbosa & A. Cavalheiro), não tanto por nele termos investido em termos de concepção e autoria - e ainda menos porque o queiramos erigir em paradigma - mas por ser nele que temos trabalhado criativamente daí decorrendo, com conhecimento de causa, aquisições empíricas para os problemas em discussão... A literatura “sintextizada” é sujeita a mutações aleatórias dentro de uma ordem estabelecida no programa, assim obedecendo claramente à dialéctica: ordem vs caos. Relembre-se que é do mesmo modo que Schäfer aborda as mutações genéticas na ordem biológica: as mutações não são desprovidas de causa (são causadas por agentes mutagénicos) mas são aleatórias, na medida em que não são dirigidas em nenhum sentido.

A noção de “texto virtual” nascida com a utilização do Sintext assenta no seguinte: os textos são concebidos primeiro em estado potencial (é o que chamámos de texto-matriz) e só depois são vertidos, mediante um procedimento combinatório ou aleatório, num campo variacional infinito – só nesse campo variacional os textos passam a existir realmente como textos materiais em estado legível. O curioso é que esta ideia de texto muito se aproxima da perspectiva que a teoria quântica tem sobre as coisas. Diz Schäfer: «As entidades quânticas podem existir numa espécie de realidade não conhecida das coisas vulgares, “entre a ideia de uma coisa e a coisa real”, escreveu Heisenberg.» E a ideia de um “acaso ordenado”, ou seja, de uma estrutura virtual que é inseminada por um léxico aleatório para produzir textos concretos, mobiliza uma dialéctica entre ordem e desordem que muito se equivale à que assim é descrita numa perspectiva quântica: «Existe uma noção geral de que, uma vez que as transições para novos estados (mutações) são aleatórias, a ordem e a complexidade que evoluem no processo devem ser as criações do acaso. Mas uma não decorre da outra. Enquanto os saltos de um estado quântico para outro são regulados por pelo acaso, a ordem dos estados sobre os quais o salto recai não é. «O acaso cego pode dar origem a qualquer coisa – escreveu Monod em Acaso e Necessidade – mesmo à visão».

Deve então o texto cibernético ser considerado um puro jogo ou um formalismo literário, como querem os seus detractores? Quanto a nós não, pois a utilização do acaso na criação textual não é uma simples lotaria verbal e muito menos a simulação anedótica do macaco dactilógrafo. Antes de mais nada porque se trata de um acaso ordenado, hierarquizado segundo a própria estrutura da linguagem. Mas sobretudo porque parece aqui respeitar-se um pacto com a ordem natural do mundo – algo como uma densidade metafísica que só a prática continuada nos vai revelando como uma evidência. Trata-se da transposição, para o plano da linguagem, da relação dialéctica entre o CAOS e a ORDEM – génese hipotética da criação natural espelhada na criação artística. A relação de equilíbrio entre a ordem e o acaso no texto, entre a complexidade e caos, é a mesma ordem dialéctica que funda a natureza e a vida. No fundo, a velha regra válida para toda a inovação em arte: a tradição e a inovação, a regra e a mudança, a ordem e a desordem.


3 - Texto intersubjectivo e texto cibernético

 

 

«Enquanto os saltos de um estado quântico para outro são regulados pelo acaso,

a ordem dos estados sobre os quais o salto recai não é.»

Lothar Schäfer

Num contexto cultural ainda fabuloso como é o da Amazónia, e neste aspecto diametralmente oposto ao contexto científico da civilização tecnológica europeia, foi onde melhor nos apercebemos da matriz universal do nonsense surrealizante que, longe de ser um movimento literário de apenas duas décadas arregimentado em meados do século XX europeu, antes parece ser uma pulsão criativa universal e transcultural existente em qualquer latitude e emergente em todas as épocas – uma fonte criativa que privilegia as forças inconscientes do irracional, inseminando com elas a aparente coerência iluminista da tradição estabelecida.

Essa revelação surgiu-os durante uma conferência sobre Ciberliteratura, muito participada aliás, no Instituto de Artes do Pará, no Brasil, onde um professor alemão de teoria literária nos interpelou deste modo: «Como fazer a crítica de um texto automático: com outros ou com os mesmos conceitos que são aplicados a um texto puramente humano?» Quando o nosso colega falava em texto “puramente humano” (porque o texto maquínico também é humano, quanto mais não seja porque utiliza a linguagem humana) essa questão alertou-nos para a necessidade de distinguir entre texto cibernético e texto inter-subjectivo. Realmente os equívocos gerados a este respeito pareciam assentar em grande parte nessa indistinção. Como os distinguir?

À falta de melhor, respondi então que se a crítica é desmontagem, “desconstrução” do objecto artístico construído, (sendo a criação e a leitura duas actividades simétricas e complementares), então há que conhecer as regras, os pressupostos e os paradigmas criativos do constructo cibernético para o analisar criticamente... Mas nesse constructo a relação autor-texto-leitor é alterada pela interposição de um maquinismo semiótico (o computador): e há que dissociar dois tipos de textualidade no mundo contemporâneo – o texto relacional e o texto generativo.

Texto intersubjectivo e texto cibernético revelam-se assim dois modelos diferentes de texto que cumprem funções semióticas distintas. Um tem por objectivo colocar em contacto dois sujeitos humanos concretos:

 

O outro tem por objectivo desenvolver através da máquina um algoritmo textual literário até ao esgotamento das suas capacidades de sentido num campo de possíveis tendencialmente infinito:

 

 

 

 

O primeiro tem por função colocar em contacto dois sujeitos num contexto referencial concreto; o segundo visa gerar sentidos novos a partir de uma estrutura dinâmica funcionando como fonte de informação. Se analisarmos o “texto cibernético” à luz do modelo e funções do “texto intersubjectivo” (que é o que utilizamos na vida empírica corrente) a Ciberliteratura (que é criação semiótica) é rejeitada; caso contrário ela será aceite pacificamente pelos paradigmas literários dominantes, pois não existe qualquer incompatibilidade entre ela e a natureza do texto social convencional. Cumprem funções distintas e até, de certo modo, complementares.

Embora desenvolvendo algoritmos verbais desde sempre existentes (com picos históricos como o da época barroca ou o do experimentalismo novecentista), é evidente que o texto cibernético só ganhou relevância quantitativa e qualitativa com o surgimento do computador utilizado como máquina semiótica capaz de potenciar algoritmos literários no domínio da complexidade.

Está claro que se dois sujeitos quiserem marcar entre si um encontro para tomarem um café juntos (mensagem tipicamente referencial, com tempo e lugar definidos) não faz sentido que utilizem um “texto motorizado” para gerar multiplicidades de sentidos: o desencontro seria inevitável. Porque no texto informativo a referência pré-existe ao acto comunicacional.

O texto cibernético opera na esfera do sentido literário e não na esfera da ordem prática. Ele é um modelo de texto com uma dinâmica interna, auto-organizado, um “texto algorítmico” que só cumpre a sua função no contexto da criatividade – liberto de uma referencialidade concreta pré-existente, mas instaurador de referencialidades imaginárias através dos sentidos latentes que faz germinar. Outra não é a função estética da linguagem quando usada para criar universos fictivos (seja na vertente lírica seja na vertente narrativa).

Se no texto relacional ou informativo a referencialidade pré-existe ao texto criado, no texto fictivo a referencialidade emerge a posteriori ao texto gerado: e é nesta segunda acepção que o texto cibernético terá de ser enquadrado.

É óbvio que entre um e outro destes modelos textuais há toda uma paleta de nuances literárias, paleta que vai do realismo ao fantástico, com especial relevo para a liberdade associativa surrealizante (contudo, no cibertexto não se trata já de uma ordem associativa radicada em nexos psíquicos e rotinas mentais, como no automatismo surrealista, mas antes de uma ordem associativa de tipo lógico-matemática, tendo como suporte uma concepção de linguagem como sendo a combinatória infinita de um conjunto restrito de sinais segundo certas regras). E o que é a linguagem senão esse imenso jogo combinatório borgeano de sinais, assente numa vintena de letras, onde tanto já foi dito e outro tanto está ainda por dizer?

 

 

(esquema distintivo entre o texto funcional e o texto generativo proposto por Philippe Bootz)

 

 

 

4 – A questão da informação e do sentido

 

 

 

«Os sistemas quânticos podem reagir ao fluxo de informação, como se aquilo que

o observador pensa acerca deles pudesse afectá-los.»

Lothar Schäfer

De acordo com Lothar Schäfer as partículas elementares possuem propriedades de tipo mental, ou seja, elas alteram o seu comportamento não apenas através do fornecimento de energia física mas também, aparentemente, através da informação: «Os sistemas quânticos podem reagir ao fluxo de informação, como se aquilo que o observador pensa acerca deles pudesse afectá-los» (ob. cit., p.25). Nesta perspectiva, natureza e cultura (matéria e texto) parecem aproximar-se de forma surpreendente: pois ambos envolvem o conceito de “informação”.

Os objectos vulgares não são afectados por aquilo que se conhece deles, mas por aquilo que se faz a eles; é necessária uma intrusão física para alterar as suas propriedades macroscópicas. Para os sistemas quânticos, todavia, a situação é diferente. Segundo Schäfer, os sistemas quânticos podem reagir de uma forma observável a alterações de informação, mesmo quando essa informação é obtida sem intrusão física.[12] Podemos admitir que esta afirmação seja polémica no domínio científico. Mas não deparamos aqui, para todos os efeitos, com algo de similar ao que se passa no domínio da cultura, onde os eventos se processam com base na troca de informação? Este químico vai ainda mais longe e declara explicitamente: «Agir em resposta a alterações de informação é prerrogativa de uma mente. Desta forma, nos fundamentos da realidade, descobrimos entidades com propriedades de aparência mental e um princípio não-material e não-energético – a informação – como agente eficaz. As ondas quânticas manifestam um comportamento de aparência mental.» (LS, p. 75)

Ou seja, como escreve Wheeler, a “informação reside no âmago da física da mesma forma que reside no âmago do computador; a informação pode não ser apenas o que aprendemos acerca do mundo – pode ser o que faz o mundo” (apud LS, p.25). Estranhamente, nas mãos de físicos quânticos como Eddington, Schäfer ou Dirac, as suas experiências laboratoriais proporcionam-lhes a sensação de que “a substância do mundo é substância mental”. Diríamos agora nós, inspirados mais pela cibernética e pela inteligência artificial: não é apenas o universo psíquico que lida com a informação; a informação, tal como a energia e a matéria, é um dos constituintes básicos da natureza.

Também já Henri Prat[13] introduziu a “informação” no domínio da biologia. A sua fórmula para definir o ser vivo incorpora a noção de informação encerrada na estrutura que dá forma ao organismo e lhe é transmitida pelo código genético.

l3.tn.em.is

O ser biológico é definido nas quatro dimensões ou parâmetros do "hiperespaço", como Prat lhe chamou: l3 representa o volume espacial, tn o tempo (evolutivo, cíclico, etc.) da sua vida, em a energia definida einsteineanamente em função da sua massa m, e is a informação encerrada na estrutura (“s”, de "structure") do seu organismo. Ou seja, essa estrutura organizativa, aquilo que é transmitido de geração em geração pelos genes contidos nos cromossomas, é algo que está para além da massa e da energia do organismo biológico, é “informação” que se perde com a desintegração da morte, mas é transmitida geneticamente às gerações posteriores – tal como, no domínio da cultura, a “informação” passa não só de indivíduo para indivíduo mas também para as gerações vindouras através da herança cultural armazenada nos livros e no saber codificado.

Temos assim a “informação” presente em todos os grandes níveis de organização do mundo natural: o da matéria inorgânica, o biológico, o mental e o cultural. Ou seja, a informação atravessa todos os estádios de complexificação da Matéria (o inorgânico, a biosfera e a noosfera) – MATÉRIA, VIDA, ESPÍRITO.

Ora isto adquire uma relevância fundamental para a teoria do texto, onde matéria, energia e informação se podem fazer corresponder, com grande aproximação, aos três vértices do triângulo semiótico: significante, significado e sentido.[14]

 

 

 

Por esta via, a teoria quântica, ao penetrar no funcionamento íntimo da matéria, desliza inevitavelmente para a metafísica. Lothar Schäfer «In search of divine reality»: «A mensagem da física contemporânea é que, nas suas fronteiras, a realidade observável não se desvanece no nada, e sim na metafísica. […] No fundamento da realidade física, a natureza das coisas materiais revela-se como não-material. Os componentes elementares das coisas reais formam uma espécie de realidade que é diferente das coisas que produzem. Descobrem-se entidades com propriedades de aparência mental.» (LS, p.29)

Ora isto mesmo é, no nosso modo de ver, o mistério primordial que impregna a semiose de um texto! As palavras de Schäfer serviriam também para descrever o funcionamento do texto quando, ao penetrar na matéria dos seus significantes, se descobre a substância não-material do sentido... E o sentido resulta de uma operação mental cognitiva, em que a consciência do significado está envolvida, mas sempre emergindo do estrato codificado dos significantes.

Uma calculadora, por exemplo, trabalha com significantes aritméticos (meros bits -> 12 : 3 = 4); sobre eles gera significados através de um algoritmo algébrico (algoritmo da divisão, por exemplo) o qual conduz a um resultado (o número 4); mas o sentido desse valor e da operação efectuada nasce no entendimento que a nossa consciência tem de toda essa operação maquínica. É aqui que, quanto a nós, se tem equivocado o falso debate em torno da chamada “Inteligência Artificial”. Pois é nisto que a calculadora se distingue do utilizador humano. Dir-se-á que o aluno da instrução primária, que memoriza a tabuada e aprende a fornecer de cor determinados resultados sem os entender, procede exactamente como uma calculadora de bolso: é exacto. Por isso mesmo dizemos que ele realiza essas operações “mecanicamente”, sem lhes apreender o sentido – ele trabalha apenas ao nível do significado. E quantas vezes só muito mais tarde, na idade adulta, ele acaba por “entender” verdadeiramente aquilo que dantes fazia de cor por medo das palmatoadas? Dizemos então que, finalmente, ele compreendeu a matemática. Por outras palavras: ele ascendeu do plano sígnico ao plano semântico. Isso apenas sucede quando a nossa consciência interioriza aquilo que a nossa mente aprendeu a fazer de um modo automático – ou seja, quando atingimos aquilo que os linguistas e os semiólogos chamam de “sentido”, o qual transcende o conhecimento sócio-cultural do significado (aquilo que os dicionários registam e explicitam).[15]

Não há dúvida de que a vulgar calculadora (que já ninguém põe em causa), recebe à entrada uma determinada informação (input: 12 e 3) para fornecer à saída uma informação nova (output: 4) – tudo aí se passa, contudo, apenas ao nível do par indissociável significante/significado. É essa a razão pela qual, a nosso ver, é destituído de sentido dissertar sobre a “inteligência” das máquinas ou do alcance futuro da “inteligência artificial” (essa perigosa metáfora). Não é por uma calculadora de bolso não ser “inteligente” (no sentido psíquico da palavra) que ela deixa de poder produzir informação nova à saída. Informação que se torna ainda mais sensível se o utilizador não souber, por exemplo, calcular percentagens e recorrer para isso ao algoritmo incorporado na máquina. O mesmo faz o matemático ou o astrónomo quando lida com cálculos complexos que ultrapassam a capacidade de realização da mente humana.

E é também aqui que se operacionaliza o texto automático, tal como toda a Cibernética e a Inteligência Artificial: trabalhando com sinais materiais (significantes) e manipulando significados segundo algoritmos linguísticos ou literários, geram-se sentidos novos à custa precisamente desses procedimentos algorítmicos, os quais são apreendidos pelo ser humano, enquanto leitor, na sua fase terminal – e aí ascendem ao plano semântico na sua consciência.

Se não nos repugna utilizarmos uma calculadora electrónica no domínio da matemática, porque nos há-de repugnar o uso do computador para manipular automaticamente algoritmos literários produtores de sentido? Apesar de os seus constituintes básicos materiais (os significantes), não serem providos de sentido em si mesmos, nada impede que o sentido surja nos textos que eles compõem. Daí não ser estranho que uma máquina, manipulando um algoritmo literário alimentado por significantes, possa, a um nível de organização superior, construir um texto com sentido totalmente imprevisível. Aqui radica a noção de computador como “máquina semiótica” e “amplificador de complexidade”.[16]

 

 

Exemplo de poema quântico

(fragmento 2)

 

Oh, avança

sobre a chuva

negra - sem memória.

 

 

Cospe sílabas como se fossem um Rosto verde

chegado

de uma dança transparente.

As mãos,

se as abres,

fazem a janela

torta

encostar-se à morte

pelo espaço todo.

 

 

- Quem ouvirá

quando eu abrir

a vida ao interior do tempo?

 

Uma mulher desviada na sua camisa suspira

como um sono louco.

 

Não te chames mais, espelho comendo ilhas.

 

Evapora-se a morte, mas não sinto.

 

 

Às vezes, sobre um pénis voraz e abrupto, passa

uma canção

lenta que não sabe,

e cuja velocidade

se abaixa e movimenta na obscura

floresta de um vento, mortal.

 

Não admito palavras sobre

o teu rosto

violado - ele o

diz :

disse.

 

 

 

5 – A questão da aleatoriedade: acaso e necessidade

 

 

“O acaso cego pode dar origem a qualquer coisa, escreveu Monod, mesmo à visão.»

Lothar Schäfer

 

 

Paul Valéry já nos advertia: «Duas calamidades ameaçam o mundo: a ordem e a desordem». Um universo governado pela lógica, como uma máquina, não teria novidade; mas um universo regido pelo caos, incapaz de se organizar, seria igualmente impróprio para a criação.  

Ora o acaso, por definição, é a ausência de causalidade. E Paul Dirac assinala a natureza aleatória dos saltos quânticos afirmando que, em saltos quânticos nas partículas, “é feita uma escolha”, podendo-se definir uma “escolha” como “qualquer fixação de algo que é deixado livre pelas leis da natureza”.

Esta é a admirável abertura trazida à teoria do texto (e a toda a semiose) pela concepção da realidade na perspectiva quântica. O universo, ao deixar de ser concebido como um mecanismo de relojoaria (caso do mecanicismo clássico), abre-se à aceitação do imprevisto – tal como o texto cibernético se abre à renovação imprevisível do sentido, numa perspectiva semiótica.

É em função desta analogia que aqui designamos como “texto quântico” (agora em sentido restrito) o texto aleatório gerado por sintetizadores computacionais automáticos (générateurs ou generators).[17] Mas há outros aspectos que reforçam a similaridade entre a teoria quântica e esta prática textual onde a aleatoriedade labora dentro de um quadro determinista definido pelo algoritmo, efectuando o cruzamento entre a ordem e a desordem num “acaso ordenado”. Neste jogo dialéctico entre o acaso e a necessidade, encaixa o conceito de “organização”, tal como foi proposto por Edgar Morin. A organização no mundo nasce de uma espécie de síntese dialéctica entre esses dois pares de opostos, a ordem e o caos (a tese e a antítese). Recorde-se o que Edgar Morin afirma numa entrevista concedida a Guitta Pessis-Pasternak («Do Caos à Inteligência Artificial»)[18]: «Toda a teoria da organização já é uma teoria da autonomia, pois a organização assegura ao sistema uma relativa autonomia em relação aos factores deterministas e aleatórios do exterior.» Transpondo então esta ideia para o plano textual, poderíamos conceber o “texto” como uma estrutura organizada resultante de um equilíbrio entre esses dois factores: a ordem e o acaso, a redundância e a inovação.

 

A laboração de um acaso organizador na ordem textual é por vezes tão surpreendente que, na prática do texto automático, somos com frequência atirados para direcções imprevistas do sentido como se uma ordem linguística laborasse no interior do algoritmo independentemente de nós, seus autores. O nosso espanto parece idêntico ao dos físicos quânticos diante do comportamento da matéria. O que está em causa é o mesmo princípio ordenador do mundo – a ordem e o caos, a tese e a antítese, o positivo e o negativo – de cuja interacção resulta a organização e a dinâmica da natureza em todos os seus níveis.

Esta abertura do mundo quântico serve-nos assim de fundamento “ontológico” para o texto maquínico de produção aleatória – e ao invés de vermos nele um formalismo literário (como pretendem os seus detractores) antes o encaramos como um encontro, na estrutura íntima do texto, com as propriedades intrínsecas da matéria. Ou seja, uma paradoxal sintonia com o funcionamento profundo do mundo natural.

Isto faz desta designação “texto quântico” algo mais que uma simples aproximação metafórica.

Leia-se mais este fragmento de um texto gerado no Sintext, a partir do léxico de «Cinco canções lacunares», de Herberto Helder:

 

 

Exemplo de poema quântico

(Fragmento 3)

 

Ele viu

erguendo-se sobre o

          labirinto da Cidade

ele viu o Rosto:

o nome a respirar dentro dele

     em sua escala de notas

nocturnamente claras.

 

Não faças com que esse pénis te procure.

Respira sobre mãos

que escaldam:

se as abres

com teus dedos,

a tua primavera suspira

como um vício

louco.

 

Oh, não te sentes atrás

de um motor parado.

 

Pela mulher secreta dos caminhos iguais -

achada - a fantasia esquece.

 

Quando?

Entre as rimas e o Rosto.

Quando o poeta aperta o suor, e derrapa

na confusão do amor

ao encontro do seu nada, na única direcção da sua própria

chuva.

 

 

 

Merece atenção aqui a ideia de um “acaso organizador”, proposta por Henri Atlan (biólogo) para dar conta de fenómenos ordenados a partir de turbulências ou flutuações caóticas (biologia, meteorologia, economia, etc.). Este princípio estabelece um diálogo entre ordem/desordem/organização, que é exactamente o que acontece na elaboração computacional de um texto como o acima transcrito: digamos que produzido a partir de turbulências e flutuações caóticas no plano semiótico.

Estamos perante a reabilitação do acaso no pensamento científico e artístico contemporâneo? Sem dúvida: o que conduz à ideia de um determinismo probabilístico. O “caso organizador” insere-se assim na zona de intersecção entre um dogmatismo do acaso e um dogmatismo do determinismo. Há pois que conceber o universo através de uma relação complexa entre ordem, desordem e organização.

«Com efeito – corrobora Edgar Morin – a ordem e a desordem, isoladas, são duas calamidades. Um universo que fosse apenas ordem seria um universo onde não haveria nada de novo, nem criação. Já um universo que fosse apenas desordem não chegaria a constituir uma organização, e seria inapto para o desenvolvimento e a inovação. É por isso que precisamos de conceber o universo a partir daquilo que denominei o “tetragrama: ordem/desordem/interacções/organização. Este tetragrama não fornece a “chave” do Universo, mas permite compreender o seu jogo. Ele revela a sua complexidade. O objectivo do conhecimento não é descobrir o segredo do mundo, mas dialogar com o mistério do mundo.» (Apud Guitta Pessis-Pasternak, o.c., p.87)

Falamos portanto aqui de um acaso essencial ou ontológico, inerente à organização íntima da natureza, e não de um mero acaso epistemológico emergente da nossa ignorância, da nossa insuficiência cognitiva, nem tampouco de um acaso puramente formal, matemático ou lúdico.

Se a natureza se organiza sobre o acaso e a necessidade, a causalidade e o livre-arbítrio, também a arte se dinamiza sobre tradição e inovação, ordem e liberdade, regras e acaso. A legibilidade do cibertexto está pois no delicado equilíbrio entre a ordem e a desordem, as regras e a liberdade, a redundância e a inovação.

 

 

Excerto de poema quântico

(fragmento 4)

 

 

Ela viu

uma planura de mel

fervente, a rede dolorosa de um pénis

que se ilumina.

Uma ressaca incandescente na parte

mais forte da voz

aterradora da canção

suspirante

do teu desassossego alto.

 

 

- Não.

Oh, não leves os planos,

solta um cabelo docemente animal

entrega a

rapariga que és ao teu suor maternal.

 

Porque tem o sangue

tanta água oblíqua?

 

 

     O nome:

Quando se toca,

ao fundo: esquece. Há quem fique num amor

para assistir ao ar.

 

 

O mais perturbante, quando se lida com o acaso na linguagem segundo a lei dos grandes números, é observar como do caos dos significados tratados pela máquina parece emergir uma ordem no plano do sentido. Algo de semelhante ao caos organizador de Atlan e Prigogine? Provavelmente. É como se o acaso na linguagem desse também sentido aos textos emergentes da desordem e abrisse ao leitor portas inéditas de compreensão do real...

Do nosso ponto de vista, há uma tal homologia que liga esta textualidade à ordem profunda do universo!

Usando o computador como um “telescópio de complexidade”, o acaso não labora no interior da linguagem como um puro exercício formal, mas antes parece ter (digamos assim) uma consistência metafísica, pois o cibertexto transpõe para o plano da linguagem a mesma ordem de relações dialécticas que parecem sustentar o mundo natural na sua dinâmica ontológica: o perpétuo equilíbrio entre a ordem e o caos,   a inovação e a redundância, o acaso e o determinismo (e isso a todos os níveis: tanto a nível cosmogónico, como atómico, biológico, biográfico, histórico ou cultural). No «Sintext», por exemplo, o algoritmo que está na sua base parece ser homólogo dessa ordem profunda do universo, a do acaso gerador de ordem. Aqui, porém, no plano do sentido e mobilizando uma concepção de linguagem como combinatória infinita de sinais: respeitando os dois eixos básicos em que se articula a linguagem (o paradigmático e o sintagmático), fizemos o acaso laborar no eixo vertical do paradigma e a ordem fixar-se no eixo horizontal do sintagma.

Evoque-se então esta breve série de aforismos, gerados automaticamente, entre os milhares ou milhões de outros possíveis dentro do mesmo campo textual:

 

Aforismos automáticos

(selecção)

* O caminho que vai para o universo passa pelo longe.

* Acaso Deus é noite em presença do nada ?

* Cala , saberás viver .

* Quando a negação nos deixa é porque a ciência não está longe.

* Acaso Deus é tudo em presença do Homem?

* Aprende, saberás ensinar.

* A ignorância é a continuação do silêncio por outros meios.

* Um tempo para a angústia, um tempo para o prazer, um tempo para o exílio.

* Cala , saberás mandar.

* Acaso o universo é tudo na ausência do infinito?

* Quando a luz nos abandona é porque o infinito não está longe.

* A subtileza do perguntar está na profundidade do saber.

* O caminho que nos leva ao tudo passa pelo nada.

* Quem faz perguntas cansadas, recebe respostas de joelhos.

* Aprende, saberás perguntar.

* Morre, saberás responder.

* Grande é a sapiência do mestre que ensina o que não se pode aprender.

* A profundidade do saber está na profundidade do perguntar.

* Grande é o saber do mestre que aprende o que não se pode aprender.

* Acaso o universo é luz em presença da noite?

* Acaso o infinito é água na ausência da voz?

* Acaso o homem é música na ausência do ritmo?

* O prazer deve tornar-se infinito tanto quanto a matéria se tornará odor.

* Quando a negação nos deixa é porque a ciência não está longe.

* Mais vale o universo sem a matéria do que a razão sem o esquecimento.

* Douto é o mestre que ensina pelo prazer de interrogar.

* Passado sem ciência não é senão esquecimento sem memória.

* Acaso o branco é noite na ausência do dia?

* O caminho que nos leva ao fim passa pelo poema

* Não há beleza no futuro mas sim no esquecimento.

* Acaso o vento é música em presença da voz?

* Grande é a sapiência do mestre que aprende o que não se pode ensinar.

* Mais fácil é superar o obstáculo do que a sua negação.

* Não há mistério fora do tempo, onde o tempo não existe.

[P. B.: Máquinas Pensantes: aforismos gerados por computador,

Porto, Árvore, 1988]

 

Diríamos portanto, e a concluir, que as palavras no plano semiótico parecem manifestar propriedades idênticas às das partículas no universo quântico. O que há de comum entre elas? Talvez o facto de ambas assentarem os seus fundamentos no acaso ordenado e se organizarem em padrões ou flutuações caóticas segundo um comportamento aleatório não completamente determinado…

 

6 – Transgressão do princípio da identidade?

 

 

 

«Podemos apagar as luzes, pois está a ficar demasiado escuro!»

Lothar Schäfer

 

A dualidade onda-partícula é uma característica das entidades físicas elementares (fotões, electrões, protões, ou átomos e moléculas): ora evoluem como ondas quando não observadas, ora como partículas quando são observadas. Daí Lothar Schäfer afirmar que a realidade é criada pela observação, que a base do mundo material é não-material e que os constituintes das coisas reais não são reais da mesma forma que as coisas que constroem. Mais: que a natureza da realidade é simultaneamente material e de aparência mental. (LS., p.49).

Ora esta dualidade parece contraditar, de certo modo, o princípio aristotélico da não-contradição: como se uma coisa pudesse ser, ao mesmo tempo, duas coisas opostas – ser e não ser ao mesmo tempo! Ou seja, é como se A pudesse ser A e B simultaneamente. Entre corpúsculo e onda, quando um vem à tona tende a ensombrar o outro, exibindo uma complementaridade intrínseca, pois há, entre eles, mais do que conflito e competição, uma dialéctica de adjuntos.

O pensamento oriental convive melhor do que o Ocidente com esta dualidade antitética, em particular a tradição taoísta configurada no símbolo:

 

Este símbolo do Tao reflecte visualmente o estado de interdependência das duas polaridades universais do real. Uma está contida na outra, interpenetram-se e integram-se numa síntese transcendente da dualidade: a tese/antítese/síntese do pensamento dialéctico. Contrarii sunt complementa.

 

Considerem-se então estas duas seguintes asserções:

A - «O segredo de viver está na capacidade de esquecer»

B - «O segredo de viver está na capacidade de lembrar»

Ambas fazem sentido, apesar de semanticamente opostas. Não se trata mais de “ou isto ou aquilo” (princípio do 3º excluído), mas sim de “e isto e aquilo” (princípio do 3º incluído). É algo como se A e -A convivessem simbioticamente, traduzindo dois aspectos diametralmente diferentes da realidade: a faceta Yin e a faceta Yang. A afirmação A é subtractiva e a asserção B é aditiva. E ambas são válidas porque ambas traduzem as duas faces opostas da realidade, o positivo e o negativo, a luz e a sombra, o masculino e o feminino, de cuja oposição energética parece nascer o movimento e a vida no universo. São as duas faces da mesma folha, o verso e o reverso, sempre coexistentes e indissociáveis num UNVERSO DUAL.

Contudo, no pensamento científico contemporâneo, começa a emergir a noção de um MULTIVERSO, a “n” dimensões, suportado por uma teoria de mundos paralelos. Como exprimir linguisticamente uma tal visão multifacetada do Real? O cibertexto, na sua multiplicidade variacional intrínseca, parece constituir de certo modo uma estrutura textual homóloga do modelo de um multiverso. É o que adiante veremos.

O aspecto contra-intuitivo do mundo quântico, nos seus resultados experimentais, é aquilo que a torna fascinante como modo de pensar (se assim se pode dizer), pois é também esse mesmo aspecto contra-intuitivo que na ciberliteratura (em particular no texto aleatório automático) nos manifesta resultados textuais contraditórios e tantas vezes perturbadores, mas nem por isso não significativos...

O curioso é que esta lógica “não-aristotélica”, constatada no comportamento da matéria, tem afinidades com o modo em que se articula o texto poético, para não dizer todo o pensamento mítico-simbólico. No terreno artístico, como em todo o pensamento metafórico, o princípio da identidade ou do terceiro excluído cede lugar a uma espécie de princípio cumulativo chamado já “princípio do terceiro incluído”.[19] Ou seja: A é A, mas pode ser também B, ou C, ou D… Como sintetizou Jean Chevalier, na sua introdução ao Dicionário dos Símbolos, o pensamento simbólico, ao invés do pensamento lógico, procede, “não pela redução do múltiplo ao uno, mas pela explosão do uno no múltiplo”. No texto variacional esta propriedade manifesta-se de modo particularmente evidente. Leia-se a seguinte série de aforismos gerados automaticamente:

 

Série de 33 aforismos gerados automaticamente

* Acaso a luz é luz na ausência da luz?

* Acaso a noite é noite em presença da noite?

* Porventura a luz será luz em presença do fogo?

* Acaso o homem é Deus em presença do fogo?

* Acaso Deus é tudo em presença do nada?

* Porventura Deus será nada na ausência de tudo?

* Acaso Deus é silêncio em presença do mal?

* Acaso a noite é grande em presença de ti?

* Porventura o mal será bem na ausência do mal?

* Acaso o infinito é pequeno em presença do infinito?

* Acaso o grande é grande em presença do grande?

* Porventura Deus será grande em presença do homem?

* Acaso nada é nada em presença do nada?

* Acaso o feio é belo na ausência do belo?

* Porventura a luz será luz na ausência da noite?

* Acaso tudo é arma em presença da arma?

* Acaso o bem é silêncio em presença da arma?

* Porventura a arma será arma na ausência da arma?

* Acaso o vento é grande em presença da noite?

* Acaso tudo é noite na ausência de ti?

* Porventura o silêncio é música em presença do silêncio?

* Acaso nada é mal na ausência do homem?

* Acaso o mal é tudo na ausência do bem?

* Porventura o homem será homem na ausência do homem?

* Acaso o vento é nada na ausência do vento?

* Acaso a noite é silêncio na ausência do fogo?

* Porventura o branco será negro em presença de Deus?

* Acaso tudo é vento na ausência do homem?

* Acaso a noite é silêncio na ausência de ti?

* Porventura o fogo será fogo em presença do vento?

* Acaso Deus é noite em presença do nada?

* Acaso o nada é nada na ausência de tudo?

* Porventura tudo será tudo em presença de tudo?

O algoritmo gerador destes textos, concebido em linguagem BASIC (1985), funcionava numa base aleatória: assim se instaurou uma dialéctica entre programação e casualidade, a funcionar no interior de um modelo textual decalcado sobre estruturas sintácticas de tipo aforístico. Programando configurações textuais rígidas, nelas se reconhece ao mesmo tempo a fecundidade do acaso e da desordem abrindo um campo de possíveis tendencialmente infinito. O que aqui se torna surpreendente é a flexibilidade interpretativa dos nossos procedimentos leiturais, que tanto validam A como não-A, ou B e anti-B. Perguntar-se-á então: como justificar que um procedimento casual se insinue assim na esfera do pensamento e do racional?

Como compreender, do ponto de vista lógico-semântico, que todas estas realizações labirínticas se nos tornem igualmente aceitáveis já que negando-se, opondo-se, contradizendo-se, todas encerram afinal uma “verdade” – uma plausibilidade de sentido?

Comprovará isto o que há de jogo arbitrário no nosso pensamento ou comprovará apenas a flexibilidade dos nossos procedimentos interpretativos diante de um texto dado, forçando-nos a ajustar os mecanismos semânticos diante de A como diante de anti-A, por forma a torná-los ambos verosímeis? Tratar-se-á aqui de meros fenómenos de interpretação semântica? Puro resultado de um ajustamento metafórico semelhante ao dos testes projectivos? Mas se um tal esforço pode ser feito diante do enunciado A como diante do enunciado não-A, para onde vai a segurança na lógica da linguagem, bóia que nos salvava de um naufrágio epistemológico na nossa relação com o mundo, com o real, com a verdade? A construção do sentido que se opera sobre um texto maquínico torna-se uma aventura permanente e imprevisível, mas a linguagem fragiliza-se na sua arbitrariedade intrínseca enquanto formadora do real e da mediação que estabelece entre nós e o mundo inteligível...

Claro que, como ponto de partida, a multiplicidade de sentidos é uma característica intrínseca do texto literário. Mas a verdade ou a in-verdade de uma afirmação é o seu ponto de chegada. E o que se torna perturbante num texto múltiplo variacional é a sensação de que tanto uma afirmação como a sua contrária resultam simultaneamente válidas na operação interpretativa. Que A e não-A possam de igual modo constituir portas de acesso ao real? Se isto não viola o princípio da identidade e da não contradição, parece questionar algo nas bases da racionalidade. Ora é neste ponto que, a nosso ver, o texto cibernético se torna comparável (sublinhe-se “comparável”) ao comportamento das entidades quânticas, as quais agem, ora como partículas quando observadas, ora como ondas quando não observadas. Ou seja: de certo modo, elas podem ser e não ser, manifestando-se a nós de dois modos distintos e exclusivos.

Com efeito, poderíamos afirmar (com os físicos quânticos) que as palavras, quando não observadas, se manifestam apenas como signos (como entidades matéricas), e quando observadas se manifestam como ondas de sentido (conteúdo mental). Ou seja, tanto as palavras quanto as partículas quânticas mudam de estatuto pelo acto da observação.

A interpretação (ou “observação”, se se quiser, no plano textual) é essa enigmática operação que anima um texto, materialmente inerte, num texto mentalmente significante. Algo muito semelhante à estranha afirmação dos físicos quânticos quando dizem que a natureza da realidade é simultaneamente material e de aparência mental (partícula e onda).

Detenhamo-nos em mais este fragmento de um cibertexto, onde o jogo das metáforas parece situar-nos entre o ser e o não-ser, construindo alternativas de sentidos opostos, contraditórios e infinitamente renováveis:

 

Exemplo de poema quântico

(fragmento 5)

 

Ele viu

a fria imagem erguer-se sobre o movimento nocturno

das massas e o remoinho cru do

soneto

desordenado

nos meandros do silêncio -

enquanto a água iluminava toda a frente

e os incêndios vaginais

da substância ardendo

acima das formas:

o sopro a respirar dentro dele

- o adolescente

e a mulher desviada presa dentro do amor.

 

 

- Quem ouvirá em que sinais, esta leveza de outra

música, quando eu abrir o sono

sobre um nome:

e uma mulher de paraíso cru

vivendo na esquina da sombra sem dar um passo, amando

com seus dedos presos

de loucura

e de segredos.

 

Não te chames assim.

 

E ela curva o Rosto

teatral -

: o vestido de ar ardendo, os pés em movimento no meio

do espaço

e o palco a que se

abraça ao paraíso cru, indecifrável, mudo.

 

No mundo quântico faz sentido afirmar: «Podemos apagar algumas luzes, pois está a ficar demasiado escuro!» Quem isto afirma é o químico Lothar Schäfer (ob. cit, p.56). E aquilo que denominamos de texto quântico funciona exactamente assim...

Digamos que a física quântica tem da matéria, paradoxalmente, uma concepção idealista e não uma concepção materialista. Como defendia Berkeley (1685-1763) : «Esse est percipi», existir é ser percepcionado. Com o texto cibernético ocorre o mesmo: ele emerge como texto na medida em que é interpretado (percepcionado). Que interessa, pois, que ele seja produzido por uma máquina, por um algoritmo aleatório, ou por um programa informático, desde que produza sentido? E quantas vezes, esse sentido, surpreendentemente inovador, não supera as expectativas do próprio autor? [20]

Não se trata aqui apenas da indeterminação semântica do texto literário, da sua abertura intrínseca a uma pluralidade de sentidos (a discutidíssima plurissignificação). Na medida em que um «cibertexto» representa apenas uma ocorrência entre uma infinidade de outras ocorrências possíveis no interior de uma mesma estrutura potencial (daí chamarmos-lhe “texto virtual” ou “variacional”), estamos face a uma plena “abertura estrutural”: uma abertura dinâmica que se situa muito para além da comum abertura interpretativa.[21]


 

7 – A questão da virtualidade

 

 

 

«As entidades quânticas podem existir numa espécie de realidade não conhecida

das coisas vulgares, num limbo entre a ideia de coisa e a coisa real»

Heisenberg

 

Para a teoria quântica o universo passa a estar controlado, em parte, por leis matemáticas estritamente deterministas e, em parte também, pelo puro acaso matematicamente definido. (cf. LS, p.68) Ora o cibertexto computorizado funciona assim também: uma liberdade (um “acaso”) operando no interior de um sistema de regras (algoritmo).

Mas não será que toda a criatividade artística obedece a este mesmo princípio? O que é um soneto? Não é uma “liberdade” exercida no interior de um sistema rígido de regras estróficas?

Isto leva-nos a uma outra propriedade fundamental do “texto quântico”: a virtualidade. E esta propriedade tem múltiplas facetas.

Ouçamos primeiro o que afirmou Heisenberg em 1979 a propósito dos eventos atómicos: «Uma onda de probabilidade significa uma tendência para qualquer coisa. É uma versão quantitativa do velho conceito de “potentia” na filosofia aristotélica. Introduz algo que está no meio, entre a ideia de um evento e o evento real, uma estranha espécie de realidade física exactamente situada no meio entre a possibilidade e a realidade.» (Apud LS, p.70)

Que há de mais próximo ao conceito de “texto virtual”, tal com o descrevíamos em «Teoria do Homem Sentado» na sua versão de 1996? Com efeito, o que propúnhamos aí era uma disquete contendo uma infinidade de textos em estado potencial, mas, a rigor, nenhum texto concreto em estado actual. A disquete que acompanhava esse livro electrónico (assim lhe chamámos então à falta de melhor termo) disponibilizava um programa: um sintetizador de textos[22] e um reportório vocabular. Mas esse sintetizador só produzia textos em estado sígnico se o leitor executasse o algoritmo num computador. Digamos então que não era fornecido aí nenhum sentido em estado organizado de palavras, mas um vastíssimo campo de possíveis onde uma infinidade de textos imprevisíveis apenas seria concretizada no ecrã ou na impressora do utilizador. Em suma, os textos e os sentidos que esse “livro infinito” iria engendrar apenas existiam em estado virtual, em estado de “potentia”; e só quando o algoritmo fosse dinamizado pela máquina começariam a surgir textos legíveis em estado actual. Por isso falávamos ironicamente em “texto ovo” ou “texto semente” – o ovo é o pintainho em estado de potência tanto quanto a semente é a árvore em estado virtual.

As estruturas textuais introduzidas no algoritmo do programa tornavam-se uma espécie de “código genético” dos textos a produzir – daí que nos sentíssemos mais a efectuar uma espécie de “manipulação genética” do texto do que a produzir textos acabados na sua forma sígnica legível. Por isso mesmo o sentido resultante dos textos produzidos no concreto apenas tinha uma ordem probabilística: eles escapavam de certo modo ao autor, encerravam em si mesmos uma larga margem de imprevisibilidade, apenas se revelando no momento em que a máquina semiótica (o computador) os produzisse, e o seu sentido tornava-se sempre diferente e sempre renovável em cada execução do programa. Tendencialmente até ao infinito...

Esta noção de textualidade equivale-se à noção de natureza para o físico quântico. «As partículas elementares não são verdadeiramente reais quando não são observadas, e portanto a realidade é criada pela observação»[23] - afirma Lothar Schäfer. Também o texto cibernético não é verdadeiramente real enquanto não é gerado pela máquina para depois poder ser interpretado: ele apenas existe no programa em estado de latência. Daí o seu carácter virtual ou potencial.

“Potentia” é um conceito da metafísica de Aristóteles que descreve um estado de ser intermediário entre o “não-ser” e o “ser realmente”. Na perspectiva de Heisenberg, os electrões e os átomos partilham este aspecto de potentia: quando não são observados, não existem no sentido vulgar, mas estão suspensos num mundo de possibilidades. «Para que as formas se tornem realidade – sintetiza Lothar Schäfer – a matéria tem o significado de possibilidade» (LS, p.70). O mesmo se dirá do texto cibernético virtual que só se torna real quando a máquina materializa o seu campo de possibilidades. Por isso mesmo, em Teoria do Homem Sentado sentimos necessidade de propor a noção de campo textual (campo de probabilidades) para traduzir os inumeráveis múltiplos da produção variacional assim infinitizada:

 

    

O CAMPO DE LEITURA substitui aqui a noção de “texto único”: uma estrutura textual dá lugar a uma infinidade de "múltiplos", todos diferentes entre si, em lugar das habituais "cópias" sempre idênticas ao modelo e a elas mesmas. Fica deste modo aberta a via para uma "arte variacional" tendencialmente infinita. No caso de a interactividade ser forte, a leitura passiva transforma-se numa actividade participativa de "escrita-leitura" e o leitor assume então o estatuto de "escrileitor" (wreader, laucteur).

 

Os padrões que no texto quântico definem as estruturas textuais encontram-se no algoritmo informático. E algo de muito aproximado parece encontrar-se no modo de a teoria quântica explicar a ordem da natureza: «A ordem complexa que evolui na biosfera não é proveniente do caos nem do nada, como proclamam os darwinistas, mas da efectivação dos padrões de estados quânticos determinados com precisão. Enquanto os saltos de um estado quântico para outro são regulados pelo acaso, a ordem dos estados sobre os quais o salto recai não o é.» (LS, ob. cit, p.116)

Ora este jogo entre o acaso e as estruturas ordenadas está também na base do cibertexto. Está no equilíbrio entre o programa e a aleatoriedade: entre as estruturas virtuais encerradas no algoritmo e a multiplicidade concreta de estados textuais variacionais. Em princípio – generaliza Lothar Schäfer – todo o universo “pode e deve ser considerado como um sistema quântico com estados visíveis-reais e invisíveis-virtuais”. (ob. cit, p.117)

A tese básica de Schäfer é então a seguinte: «A ordem visível do universo é a expressão fenotípica de uma ordem mais profunda: a da realidade quântica». Na perspectiva quântica (contra os darwinistas ortodoxos) “os genes são veículos por meio dos quais as mensagens de uma ordem subjacente são reveladas”. (LS, p. 118) Tal é também a dinâmica do texto generativo – um jogo perpétuo entre “constantes” e “variáveis”.

Uma outra noção de texto?

Sem dúvida. Por exemplo, em Teoria do Homem Sentado, tal como em O Motor Textual, os textos que o leitor poderia ver desfilar no ecrã não existiam previamente fixados e portanto não transportavam qualquer sentido a não ser aquele que, uma vez germinados, viessem efectivamente a desprender. Só então eles poderiam ser fixados na sua concretude semântica: seja gravados em suporte magnético ou impressos em papel através de uma impressora. O texto virtual (na acepção que aqui lhe damos) é pois uma obra computacional em potência que contém o programa genético dos textos a gerar; por isso os textos concretos apenas existem nele em estado latente, em estado de semente. E do mesmo modo que a semente não é ainda a planta criada, também o programa textual não é ainda a(s) obra(s) que o leitor irá fruir. Nesta perspectiva, o texto virtual é imaterial: o que existe no suporte físico do computador não é um texto, não tem um sentido, não tem um significado - é apenas o «motor» de uma pluralidade de realizações textuais ainda por materializar signicamente. Somos então levados a uma noção de texto não estática, mas dinâmica: a um texto concebido como “estrutura geradora” de sentidos (texto generativo).

O texto generativo implica a ideia de texto potencial, mas transcende-a. A literatura potencial, como «obra-a-construir», já existia desde longa data antes da era do computador: a atestá-lo ficaram, ainda próximas de nós, as numerosas experiências do «Ouvroir de Littérature Potentielle». Mas o computador veio potenciar, actualizar e reconfigurar a ideia de texto potencial. Veio sobretudo infinitizá-la: atirá-la para lá da nossa capacidade de controlo. Estamos perante uma “abertura estrutural”, que é imanente a qualquer obra potencial: mas um gerador textual é um programa de computador que se configura como o «código genético» de uma pluralidade infinita de textos por nascer. O texto generativo manifesta-se no interior de um campo de possíveis. «Uma obra que existe em múltiplas formas, sob estados diferentes, uma obra que está ao mesmo tempo em todo lado e em lado nenhum» (Alain Vuillemin).

De instrumento de criação literária, o computador passa a ter também um papel como instrumento de leitura: a interposição da máquina, como manipulador de sinais e extensor de complexidade, traduz-se assim necessariamente numa nova atitude do autor e do leitor face à obra computacional. A função do computador é a de desenvolver até ao infinito a ideia de um autor e de a apresentar em processo ao leitor como um «fantasma de eternidade» (J. P. Balpe).

É óbvio que tudo isto implica uma modificação também no conceito de leitura. Pergunta Philippe Bootz: «Então onde está o texto, quando a sua forma não cessa de se metamorfosear?». O texto sintetizado em computador tende sempre a implicar um corte mais ou menos radical na comunicação inter-subjectiva entre o autor e o receptor.

 

 

8 – A implicação do observador na génese do texto – o “escrileitor”

 

 

 

«Tudo aquilo em que nós toquemos por meio da observação transforma-se em matéria»

Lothar Schäfer

A concluir, resta colocar em paralelo a interferência do observador sobre o objecto observado, um dos pressupostos da teoria quântica, com a famosa interactividade do leitor no hipertexto e demais formas cibertextuais.

A importância atribuída ao observador na manifestação das propriedades físicas da matéria (entenda-se, da realidade natural) é singularmente análoga ao papel participativo do leitor nas diferentes modalidades do cibertexto, podendo mesmo chegar a exigir um termo novo para designar a figura cooperativa do “escrileitor” (wreader, laucteur).[24]

Quanto em 1996 apelidávamos a «Teoria do Homem Sentado»[25] como um “livro electrónico” (termo que hoje se tornou perigosamente equívoco após o surgimento dos e-books), não era por ser difundido em suporte digital, mas por envolver uma outra noção de texto que não tinha nem podia ter cabimento no suporte fixo do livro em papel: o "texto virtual" implicava aí uma dinâmica computacional, mas também o incubamento e a multiplicidade infinita dos textos a gerar pelo programa; os textos não existiam sequer no suporte magnético enquanto textos, e portanto não detinham um sentido a priori; os textos apenas existiam no computador em estado potencial, em estado latente, em estado de projecto, em estado de programa; o texto virtual era aí uma estrutura literária associada a um motor informático que a punha a funcionar. O computador intervinha então como um «telescópio de complexidade» (Moles): a leitura no ecrã desempenhava assim uma função primordial, pois qualquer fixação em papel, através da impressora, seria sempre uma opção secundária e necessariamente incompleta por parte do utilizador/leitor.

Com efeito, qualquer «sintetizador de textos» implica a noção de gerador automático: um programa criativo que interpõe a máquina na relação tradicional entre o autor e o leitor.

Contudo, aquilo que do ponto de vista do autor pode surgir como "texto múltiplo" (Moles), do ponto de vista do leitor pode surgir como "texto de leitura única" (Bootz); e, no domínio do texto computorizado, pode ser descrito, pela sua dinâmica, como "texto em processo" (Bootz), “texto performativo” (Balpe) ou “texto ergódico” (Mourão).

A introdução da interactividade no momento da recepção do texto ergódico – mesmo no caso do “hipertexto”, a mais famosa das estruturas digitais nos nossos dias - pode conduzir a uma interversão simbiótica nas funções tradicionais do autor e do leitor mediante uma maior ou menor participação deste último no resultado textual final. Rui Torres, em Digital Poetry and Collaborative Wreadings of Literary Texts recontextualiza a questão nestes termos: «It is actually up to the reader to accept, or not, the scheme provided by the author. Hypertext and hypermedia do really unlock new possibilities for random access to information, but the reader can browse and interpret a linear narrative in a non-linear manner, and a non-linear poem can be read in a linear form. Bearing this in mind, I prefer to analyse the features of new media that stimulate non-linear approaches, shattering our preconceived notions of author (through collaboration), text (through convergence), and reader (through interactivity). […] Like experimental poetry, digital poetry presents its intransitive symbols through self-reference, and its main features are those of experimental literature: processuality (incompleteness, open-work); interactivity (wreading, re-writing); hypermediality (integration, convergence); and networking (interaction, collaboration).» [26]

Mas aqui será legítimo estabelecer gradações no conceito, podendo falar-se de uma interactividade fraca (que começa talvez na simples interpretação) até uma interactividade forte (que culmina nas práticas mais intrusivas da escrita cooperativa).

O circuito comunicacional da literatura encontra-se em todo o caso alterado, tanto do lado da criação como do lado da recepção: o acto de leitura, ao tornar-se interactivo, envolve a participação do leitor na navegação ou mesmo na co-criação do texto final, mediante um processo simultâneo de escrita-leitura. E a leitura-pela-escrita ou a escrita-pela-leitura, erige o leitor tradicional em funções de recepção novas, requerendo por vezes para ele o papel de um verdadeiro “escrileitor” (ou “espectactor”, no caso mais recente da hipermédia). [27]

 

O cibertexto envolve uma nova relação com as palavras, as quais surgem inseridas, desde o seu nascimento até à sua morte, num contexto outro de comunicação literária. O circuito literário tradicional surge aqui alterado nos seus múltiplos componentes: na relação autor/texto, na relação texto/leitor, na relação autor/leitor, e na própria noção de Texto. Entramos no domínio do Texto concebido como pura «máquina verbal»: ou do texto como estrutura geradora de sentidos.

 

 

Enfim: escrileitor ou espectactor, estas novas figuras surgidas no cibertexto, do lado da recepção, tornam funcionalmente relevante o papel do utilizador na exploração do sentido, alterando o resultado final emergente.

Um paralelismo poderia aqui também ser reclamado para a atitude determinante que o observador tem na manifestação das propriedades quânticas da matéria, face à passividade do observador na concepção da física clássica. A dualidade onda-partícula é algo que só no acto de observação se decide, tal como da observação dependem ainda as propriedades mensuráveis numa dada partícula (localização ou velocidade, como é já do senso comum). Isto leva Schäfer a afirmar, paradoxalmente, que a realidade é criada pela observação – assim erigindo também o “observador” em decisor último das propriedades observáveis na interpretação do real. Tal como o sentido, que só o “escrileitor” decide e constrói no domínio da cibertextualidade.

 

 

 

NOTAS FINAIS

 

 

 

NOTA FINAL 1:

Recorde-se a dualidade das partículas quânticas, e evoque-se aqui sucintamente o famoso exemplo hipotético do gato de Schrödinger o qual, sendo embora (e apenas) uma experiência de pensamento, se encontraria num estado virtual de vivo e morto ao mesmo tempo. Penrose: «O gato pode ser pensado como o resultado final de um registo; passamos do nível quântico para um mundo de objectos ponderáveis quando encontramos o gato vivo ou morto. O problema é este: se tomamos o nível quântico como correcto, encontramos o gato simultaneamente morto e vivo. A ideia consiste em que o fotão se encontra numa sobreposição de estados num sentido e no outro, o detector numa sobreposição de estados ligado e desligado e o gato numa sobreposição de estados vivo e morto.» (o.c., p.81)

Este problema tem sido debatido há muito tempo, sob diferentes pontos de vista. O ponto de vista dos “mundos paralelos” é um deles: de acordo com ele o gato estaria de facto morto e vivo ao mesmo tempo, mas, num certo sentido, os dois gatos viveriam em universos diferentes. Esta hipótese, porém, conduz a uma concepção da realidade demasiado complexa. Interroga Penrose: «Como é que do ponto de vista de muitos mundos se trata isto? Alguém chega aqui, olha para o gato e pergunta: “Porque é que não se observam estas sobreposições de estados no gato?” Há um estado de um gato vivo, juntamente com uma pessoa que vê e tem a percepção de um gato vivo, e há outro estado de um gato morto, acompanhado por uma pessoa que observa o gato morto.» (o.c., p. 83) Penrose, convidando a um reexame da questão sob vários pontos de vista, formaliza do seguinte modo esta situação paradoxal (pois tanto podem colocar-se gatos ou símbolos dentro dos parênteses rectos da equação de Dirac):

Estas duas alternativas encontram-se sobrepostas em estado potencial, tal como acontece, ao nível quântico, com o desdobramento de uma partícula em dois estados alternativos. Considerando uma partícula de spin ½, como por exemplo um electrão, um protão ou um neutrão, sucede que essas partículas podem ter dois estados de spin, um com o vector de rotação a apontar para cima e outro com o vector de rotação a apontar para baixo. A sobreposição dos dois estados é representada simbolicamente nesta equação (cf. o.c., p. 72):

Em nada são para aqui chamadas questões de formalização matemática, a não ser a mero título de curiosidade. O que, isso sim, nos interessa são os pressupostos lógicos paradoxais em que parecem assentar estas experimentações quando aplicadas a partículas materiais que nos habituamos a ver como unidades coesas. Contudo, ainda que paradoxais nos seus efeitos, serão também paradoxais na sua fonte? A dicotomia potencialVSactual, já discutida, parece dissolver situações paradoxais como esta. Por outro lado, a tradição do pensamento dialéctico (oriental e ocidental), coloca-nos num quadro filosófico supostamente mais receptivo. A nosso ver, o desdobramento de um fotão em dois estados simultâneos opostos e complementares, lembra-nos de imediato a tríade dialéctica clássica: uma síntese, como resultado de uma tese e de uma antítese. E toda a dinâmica do universo, nos seus diferentes níveis, não obedecerá a este permanente jogo dicotómico entre o positivo e o negativo? O sim e o não, o + e o –, a noite e o dia, o calor e o frio, o masculino e o feminino, o yin e o yang, a vida e a morte, o bonito e o feio, o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, e por aí adiante? Não será dessa interacção que emerge a própria dinâmica evolutiva do cosmos? À luz da racionalidade, porém, todos estes pares de antíteses são sempre unificáveis em sínteses mais amplas correspondentes a entidades ou conceitos com nomes como “energia”, “temperatura”, “vida”, “sexo”, “justiça”, “beleza”, “verdade”, etc. E na análise que fazemos, o gato de Schrödinger, tal como as entidades quânticas, encerra em si mesmo (mas em estado potencial) dois estados dicotómicos disponíveis ao observador no plano actual – o gato vivo e o gato morto – tal como o conceito de energia encerra o positivo e o negativo, o conceito de sexo engloba o masculino e o feminino, ou o de justiça o bem e o mal. Digamos, em termos de senso comum, que o próprio conceito de ser vivo inclui dois estados complementares – o estar vivo e o estar morto (a vida implica nascimento e morte). Dentro de um paradigma indeterminista dir-se-ia que é o observador, ao tornar real um dos estados potenciais, que dá vida ou morte ao gato!

Prescindindo assim de questões técnicas, o que daqui apenas pretendemos retirar são as bases de um pensamento científico que surge estranho a uma abordagem unívoca ou unidimensional da realidade mas que se torna bem mais compreensível a uma abordagem dialéctica. E para quem lida com o campo textual, familiarizado que está com a esfera do pensamento simbólico e da cognição artística, tudo parece conjugar-se num mesmo paradigma. Por exemplo, quando a luz branca se divide num conjunto de feixes luminosos coloridos ao atravessar um prisma transparente, e quando esse arco-íris se recompõe de novo num feixe de luz branca, não vemos aqui algo de muito diferente dos fenómenos não unitários que se nos deparam na interpretação de um texto literário quando ele se refracta numa pluralidade de sentidos (segundo o princípio da pluri-isotopia), emanando embora de uma unidade estrutural única ao nível do significado – a sua fonte. Em ambos os casos vemos o uno fragmentar-se no múltiplo e de novo reduzir-se ao uno. Ou seja, quando uma partícula quântica como a descrita acima se divide em duas partículas de spin contrário, é como se a lógica que preside à consideração deste fenómeno deixasse de ser uma lógica da identidade ou da não-contradição para se tornar numa lógica analógica assente no princípio do “terceiro incluído” (em que A=A+B+C…). O fenómeno da pluralidade dos sentidos emergentes do texto literário entra nesta classe de lógicas modais (digamos assim) – em que a realidade é defrontada de modo pluridimensional, desde o seu nível mais básico até ao nível mais complexo da sua organização.

 

___________________

 

 

 

NOTA FINAL 2:

E voltamos aqui à teoria dos três mundos: MATÉRIA, VIDA, ESPÍRITO (átomos, células, mente).

Ou: mundo inorgânico, biológico e psíquico.

Em suma: os três domínios epistemológicos clássicos: física, biologia e psicologia (matéria, cérebro e informação).

Mundo 1 (mundo material, constituído por átomos e energia, inserido no espaço-tempo) – matéria (física, química, astronomia) e célula (biologia, neurologia, cérebro): equivalente ao nível do SIGNIFICANTE.

Mundo 2 (mundo mental e cultural) – fenómenos psíquicos e campo da informação, fenómenos mentais, não espaciais e não materiais: equivalente ao nível do SIGNIFICADO.

Mundo 3 (nível da consciência e do eu) – espiritualidade, alma, consciência (filosofia, metafísica): equivalente ao nível do SENTIDO.

 

 

Os mundos aqui considerados não equivalem exactamente ao modelo dos três mundos de Popper: mas correspondem-se com os três vértices do triângulo semiótico (significante, significado, sentido). Estes três mundos são estanques embora hierarquicamente interdependentes: o terceiro depende do segundo e o segundo assenta sobre o primeiro. Mas são estanques entre si: a vida parece emergir da própria vida (nunca da matéria se gerou vida em laboratório), só a vida gera vida pela reprodução; o mundo 2 intercambia informação, é nele que os dicionários codificam os significados, e é por essa informação que as mentes comunicam e fazem a cultura; o mundo 3 é estritamente individual, não partilhável, é o foro íntimo do eu e da consciência (individual/transpessoal).

 

Ou seja, há 3 níveis estanques mas interdependentes hierarquicamente (mesmo considerando, por complexificação contínua da matéria, saltos estruturais segundo a lei marxista da transformação da quantidade em qualidade):

Nível matérico (mecanicismo) – significante

Nível vital (vitalismo) – significado (os animais reagem, têm dor, pensam, etc., manifestam fenómenos mentais em graus de complexidade diferentes)

Nível mental (animismo) – a experiência íntima e não partilhável do “eu” e da consciência (sentido, semântica)

 

 

  

 

 

 

 

Reformulação do ensaio originalmente publicado na revista «Cibertextualidades 01», CETIC, Centro de Estudos em Texto Informático e Ciberliteratura, UFP, Porto, 2006.

 

 

 

<REVISTA TEXTO DIGITAL>

 

 

 



[1]      Quanto aos níveis da natureza aos quais se aplicará a teoria quântica, Lothar Schäfer (químico quântico na universidade do Arkansas), esclarece que não é só no campo da microfísica que tais propriedades se manifestam, contrariamente ao que correntemente se pensa: «As moléculas são a base da vida e as moléculas são sistemas quânticos [...] Existe uma visão generalizada de que os efeitos quânticos não são importantes para a biologia, por exemplo, porque as biomoléculas, à semelhança dos segmentos de ADN com a dimensão de um gene, são demasiado grandes para serem vistas como estados quânticos. No entanto, tal não é verdade. Todas as coisas, pequenas ou grandes, existem em estados quânticos. Em células vivas, a síntese de genes – moléculas de ADN – é um processo quântico. A ruptura e a produção de laços químicos é sempre um processo quântico: a cada passo, o sistema possui uma escolha entre uma quantidade de estados e o sistema final de uma molécula específica que não pode ser previsto com toda a certeza» (ob. cit., p.114)

[2]      Roger Penrose : O Grande, o Pequeno e a Mente Humana, Lisboa, Gradiva, 2003, p. 65 (tradução portuguesa de: The Large, the Small and the Human Mind, Cambridge University Press, 1997); cf. em particular o final do capítulo 3, “A física e a mente”..

[3]      Note-se que, ao nível quântico, existe uma diferença significativa entre os conceitos de partícula e de corpúsculo. Estas palavras que anteriormente eram consideradas como sinónimas, passam a ter, significados inteiramente diferentes. Uma partícula é um sistema complexo possuindo extensão e localização enquanto que um corpúsculo é uma entidade caracterizado apenas pela sua posição,

[4]      A este respeito importa lembrar o ensaio: “Un modèle fonctionnel des textes procéduraux” (in Les Cahiers du CIRCAV, nº 8, 1996), de Philippe Bootz, poeta digital e físico teórico, exactamente inspirado na interferência do observador sobre o objecto observado, um dos pressupostos da teoria quântica aí aplicado à poesia animada por computador.

[5]      Ver nota final nº 1.

[6]      Cf. o que a este respeito escrevemos em "Sintext: un générateur de textes littéraires", comunicação apresentada em Paris nas "Journées d’Études Internationales sur Littérature et Informatique" (Littérature Générée par Ordinateur - LGO), organizadas pelas Universidades de Jussieu-Paris VII e La Sorbonne, a 20-21-22 de Abril de 1994; e ainda em "L'oeuvre virtuelle: la génération automatique de textes littéraires", texto de  participação no Congresso, realizado em Paris, e organizado pelo Laboratório "Paragraphe" (Labart - Laboratoire des Arts), na Universidade de Paris VIII, sobre o tema: «Hypertextes et Hypermédias: réalisations, outils & méthodes», a 25 e 26 de Setembro de 1997.

[7]      Sendo ao longo deste texto citada frequentemente a obra do químico quântico Lothar Schäfer, «In search of divine reality» (1997), limitar-nos-emos a indicar a página referente à sua tradução portuguesa, intitulada: Em busca da realidade divina – a ciência como fonte de inspiração, edição Esquilo/CTEC, Lisboa, 2003, da seguinte forma abreviada: (LS, p...).

[8]      O radical “CIBER”, aqui por nós usado insistentemente, radica na sua origem etimológica relacionada com “pilotagem” e “automação”, sentido implicado com o uso do termo tal como foi cunhado originalmente pela CIBERNÉTICA. Tal não coincide, pois, com o uso hoje corrente (e a nosso ver etimologicamente abusivo) que é o emprego do mesmo radical na palavra “CIBERESPAÇO” – onde tudo é “ciber” mas muito pouca coisa realmente automática ou virtual.

       HIPERESPAÇO seria, quanto a nós, um termo bem mais apropriado à esfera da Web, pois se relaciona com o conceito matemático de uma geometria a quatro dimensões.

       Uma pintura de Goya, divulgada na Internet, faz dela ciber-arte e porventura do seu autor um “ciber-artista”, só porque se encontra disponibilizada na Web?

       Impõe-se este esclarecimento, entre outras razões, para se compreender o facto de, neste ensaio, termos subvalorizado o hoje tão popular “HIPERTEXTO” como tipologia inclusa no domínio das “CIBERTEXTUALIDADES”: é que no hipertexto a “virtualidade” apenas existe ao nível do percurso labiríntico da leitura, ou eventualmente ao nível da cooperação interactiva do navegador dentro da rede textual, mas não propriamente ao nível da sua estrutura geradora. Ou seja, a cooperação do leitor situa-se apenas do lado da recepção e não necessariamente do lado da criação. E o que o leitor aí lê é apenas aquilo que o autor lá depositou de forma estática. O computador, no hipertexto, funciona mais como armazenador de informação do que como manipulador algorítmico ou “máquina semiótica”.

[9]      O Sintext (SiNtetizador de TEXTos) pode ser considerado como um gerador polivalente de textos literários. («Sintext» - © P. Barbosa & A. Cavalheiro)

       Ao conceber-se o Sintext partiu-se do pressuposto de que qualquer texto - ou estrutura de texto - é o resultado dum projecto sempre incompleto. Quer dizer que o autor, no seu percurso através do labirinto das infinitas possibilidades de escolha que se lhe deparam durante o processo criativo, sabe muito bem que as escolhas feitas não são as únicas nem porventura as melhores: mas se ele trabalha em simbiose com um computador, a máquina pode ajudá-lo a explorar esse imenso campo de possibilidades diferentes, nele descobrindo talvez soluções inesperadas, ou deixando-1he pelo menos a certeza (sempre relativa, claro) de ter escolhido o melhor caminho no interior desse mesmo labirinto de articulações e de sentidos. . .

       Daqui derivam duas possibilidades: ou o autor decide apresentar a sua própria escolha ao leitor (a sua escolha entre a infinidade de possibilidades diferentes no interior de uma mesma estrutura textual), ou então o autor decide apresentar ao leitor uma estrutura de textos em estado potencial remetendo para este a possibilidade de ele próprio explorar, com a ajuda do computador, os múltiplos efeitos de sentido actualizáveis. A primeira atitude poderia ser incluída na linha de uma literatura variacional (o próprio autor é quem propõe à leitura uma multiplicidade de textos, diferentes no seu sentido, equivalentes na sua estrutura); a segunda atitude poderia ser remetida para a linha de uma literatura potencial, mais ou menos «interactiva», onde o leitor poderá assumir o papel de «co-criador» (leitura pela escrita).

       Em qualquer dos casos o computador funciona, seja como um «amplificador de complexidade», seja como um «actualizador das capacidades textuais»: quer dizer, sempre como uma prótese mental prolongando o autor de uma forma simbiótica.

       A única tarefa requerida ao utilizador do programa será a de conceber um modelo de texto (cujo algoritmo poderá consistir simplesmente num primeiro texto escrito, mas fragmentado por parênteses rectos, os quais delimitarão os elementos a recombinar) e eventualmente em alimentar essa estrutura textual com um reportório lexical mais ou menos extenso: o computador oferecer-se-á então como um instrumento informático direccionado para a miragem da «perfectibilidade».

[11]     Vicente Gosciola, Roteiro para as Novas Mídias, São Paulo, Senac Eitora, 2003.

 

[12]     Ainda recentemente foi realizada na Áustria uma experiência bem sucedida de “teletransporte” entre duas partícula quânticas, separadas pelo Danúbio, na qual dois átomos entraram em sintonia e ficaram no mesmo estado quântico sem qualquer contacto físico nem transferência de energia. (vide «QuantumTeleportation across the Danube»: Nature: 430, 849, 19 August 2004)

 

[13]     Henri Prat: biólogo canadiano autor do livro L'Espace Multidimensionnel.

[14]     Ver nota final 2.

 

[15]     O significante é aquilo com que a calculadora trabalha, o significado é aquilo que o aluno rabisca no quadro sem perceber as contas que faz mas que dão certo – o sentido será o entendimento disso, o eco que isso faz na nossa consciência (o tal plano semântico). Mesmo quando  a soma está errada – por exemplo, quando escrevemos, para metaforizar o amor, que:  1 + 1 = 1, estamos a jogar com o sentido (um duplo sentido, aliás).

 

[16]     Cf. Pedro Barbosa, «O Computador como Máquina Semiótica», in «Revista de Comunicação & Linguagens» (O Campo da Semiótica), Universidade Nova de Lisboa, Nº 29, Abril 2001, pp.303-327. [http://www.pedrobarbosa.net/artgonline.htm]

 

[17]     Todo o texto da experiência realizada inicialmente em palco teatral com «Alletsator» inseriu-se precisamente neste quadro operacional: e se então, à falta de melhor, o apelidámos de “ópera electrónica”, agora, pelas razões expostas acima, preferiríamos a designação de “ópera quântica”, que foi a que ficou para a sua recriação em hipermédia a decorrer no Brasil em parceria com Luís Carlos Petry e Sérgio Bairon (PUC-SP).

       Cf. Vera Carvalho, «Acaso: um palimpsesto na produção poético-tecnológica de Pedro Barbosa», dissertação de mestrado apresentada na Universidade Mackenzie do Brasil sob orientação do Prof. Sérgio Bairon, São Paulo, 2004.

 

[18]     Cf. Guitta Pessis-Pasternak, Do Caos à Inteligência Artificial, Unesp, SP, 1993, p. 90

 

[19]     Cf. René Alleau, A Ciência dos Símbolos, Lisboa, Edições 70, 1982, p.11; ou ainda o nosso próprio livro, Metamorfoses do Real: Arte, Imaginário e Conhecimento Estético, Porto, Edições Afrontamento, 1996, p. 67-73.

 

[20]     Torna-se difícil apresentar as ideias deste trabalho desligadamente da sua experimentação prática. Elas quase brotam espontaneamente do convívio directo com estas textualidades. A fim de proporcionar uma aproximação ao texto generativo automático por parte do leitor que eventualmente a não tenha, permitimo-nos convidá-lo a testar, por si mesmo, estes conceitos recorrendo à versão de demonstração do Sintext que com esse propósito disponibilizámos na Internet: na nossa página pessoal (http://www.pedrobarbosa.net/SINTEXT-pagpessoal/sintext.htm), no domínio do CETIC (http://cetic.ufp.pt/sintext.htm) ou ainda em Electronic Literature Organization Directory (http://directory.eliterature.org ).

 

[21]     Ou, como afirmou José Augusto Mourão em Surrealismo e tecnossurrealidade: rotas convergentes?: «As rotas do Surrealismo e da tecnossurrealidade parecem convergir em vários pontos. O Surrealismo que rima com recusa global, liberdade, onirismo, alquimia das palavras, colagem, absurdo, automatismo psíquico, está a informar a literatura contemporânea, da ficção científica, à narrativa digital. Por seu turno, a tecnossurrealidade está a mergulhar-nos na "alucinação consensual", na identidade "cyborg", na comunicação ubíqua que o ciberespaço propicia. Esta convergência é da ordem da alucinação ou da realidade?» [ http://www.triplov.org/cictsul/jose_augusto.html ]

 

[22]     «Sintext» (© P. Barbosa & A. Cavalheiro).

[23]     «Tudo aquilo em que nós toquemos por meio da observação transforma-se em matéria» (L.S., p.75) Afirmação transponível para o domínio do texto, trocando apenas observação por interpretação e matéria por texto. Estamos no domínio da “informação” e não da energia: tanto no campo literário quanto no campo quântico. Para a teoria quântica as entidades elementares da matéria manifestam um comportamento de aparência mental. Por isso os físicos quânticos (em oposição a Einstein) admitem que existam na matéria influências mais-rápidas-que-a-luz, que não são atenuadas pela distância! Precisamente porque são motivadas por trocas de informação e não de energia física... Como no mundo mental e na telepatia: as recentes experiências de teletransporte entre propriedades de partículas a distância parece confirmar plenamente esta previsão.

 

[24]     Rui Torres explicita bem a necessidade destes termos, razão pela qual eles quase surgiram em simultâneo em diversas línguas: « The word wreading is the result of the fusion of two different words: writing and reading, and it represents a response to the increasingly active role of the reader in modern literature. Interestingly, it appeared in different languages at around the same time. According to Arnaud Gillot, in La notion d’«Ecrilecture» à travers les revues de poésie électronique alire et KAOS (Artois: Hestia/Certel, 2000), Pedro Barbosa was the first to use the Portuguese word escrileitura (escrita and leitura), in his PhD Thesis in 1991, published in A Ciberliteratura: Criação Literária e Computador (Lisboa: Cosmos, 1996). However, at the same time, Joe Amato, in a review of J. David Bolter’s Writing Space: The Computer, Hypertext, and the History of Writing (Hillsdale: L. Erlbaum Associates, 1991), suggested the English word wreader to describe the “reader-cum-writer” concept introduced by Bolter in the book. The term was later used in the context of hypertext theory and digital literature by George P. Landow, Jim Rosenberg, Michael Allen, and Roberto Simanowski, as well as by poets Heiko Idensen, Jim Andrews and Mark Amerika referring to their own work. A project of collaborative writing on the Internet created by Johannes Auer has the suggestive name of “The Famous Sound of Absolute Wreaders.”

       ["Digital Poetry and Collaborative Wreadings of Literary Texts", in: New Media and Technological Cultures, e-book edited by R. Torres & Nicole Ridgway, Inter-disciplinary Press, Oxford, 2004.]

 

[25]     Teoria do Homem Sentado de 1996 e O Motor Textual de 2000, foram desenvolvidos com a colaboração, respectivamente, de Abílio Cavalheiro e José Manuel Torres na programação em C++ e em JAVA/HTML.

 

[26]     Ob. cit., disponível em: http://telepoesis.net/tertulia/mod/resource/view.php?id=90 .

        

[27]     O termo espect@actor, no caso da hipermédia, adaptaria ao português o eufónico termo spect@cteur (Jean-Louis Weissberg) usado em França por Pierre Barboza.

       [http://hypermedia.univ-paris8.fr/seminaires/semaction/seminaires/txt01-02/journees0602/pierre.htm]