<REVISTA TEXTO DIGITAL>

ISSN 1807-9288

- ano 5 n.2 2009 –

http://www.textodigital.ufsc.br/


 

Narrativas de Tecnologia

 

 

 

Alckmar Luiz dos Santos

Universidade Federal de Santa Catarina

Pesquisador do CNPq

alckmar@cce.ufsc.br

 

 

 

Eu finjo e suponho que qualquer corpo se move para baixo e para cima segundo a proporção conhecida e horizontalmente com movimento uniforme. Quando isso ocorre, digo que se seguirá tudo o que disse Galileu e também eu. Se, a seguir, as bolas de chumbo, ferro, pedra não observam aquela suposta direção, pior para elas: diremos que não estamos falando delas.

E. Torricelli, Opere[1]

 

 

ABSTRACT: This essay intends to discuss some aspects of contemporary technology and its relationships with arts, from the point of view of literature, specially narrative fiction. In other words, it tries to map the differences one can find out in telling stories WITH, AGAINST or OF a certain technological context. And, also, it tries to tell the story of technologies as it would be telling stories about technologies.

 

 

Homo faber e homo narrator

 

Contar uma história é sempre contar uma história com, de ou, às vezes, contra um dado contexto tecnológico. Ora, contar histórias com um contexto tecnológico é uma evidência que fala por si própria, pois não se pode pensar em qualquer narrativa em que instrumentos e processos de controle da natureza não estejam em jogo. De outro lado, contar contra seria uma opção da estratégia narrativa, não pertencendo aos elementos a priori do ato de contar. Contudo, contar histórias de um contexto tecnológico pareceria, à primeira vista, também uma escolha tão legítima quanto essa de contar contra, pois diria respeito apenas a uma escolha temática. Mas pode não ser bem assim! De fato, quando contamos histórias com um certo contexto tecnológico, isso não significa que a narrativa se amolda passivamente a ele. Ao contar, estamos interferindo na apreensão e até na própria utilização que fazemos dessas tecnologias. Em outras palavras, estamos alterando os sentidos que, até o momento, se associavam a esse contexto. Contar uma história, por menos que seja, implica também contar a história do estágio tecnológico da sociedade humana, no momento em que a narrativa foi produzida, dando a ele novos, maiores ou menores significados. E ressalte-se que não se trata da tecnologia da época retratada pela história, mas da época em que se produz a narrativa: quando escreveu O Evangelho segundo Jesus Cristo, Saramago interferiu não nos sentidos da tecnologia do século I da Era Cristã, mas abriu novas maneiras de entendermos e aplicarmos as ferramentas e técnicas de nossa própria contemporaneidade.

 

Todavia, talvez até mesmo o contar contra também seja contar a história de seu contexto tecnológico. Pensemos, por exemplo, no personagem Ned Land, de Vinte Mil Léguas Submarinas, de Júlio Verne. O narrador do romance o descreve como um homem dotado de extraordinária força, além de grande habilidade: “Adresse et sang-froid, audace et ruse, il possédait ces qualités à un degré supérieur, et il fallait être une baleine bien maligne, ou un cachalot singulièrement astucieux pour échapper à son coup de harpon.” Mas eis que, ao final dessa descrição, aparece o arpão, justamente a ferramenta que o tornava superior aos animais. Ned Land devia, então, saber que, em última instância, sem o instrumento forjado em aço e talhado a quente, suas habilidades, seu sangue-frio, sua audácia e sua astúcia de nada valeriam contra animais tão fortes. Isso talvez explique toda a sua desconfiança (convertida depois em franca rebelião) contra o Capitão Nemo. Para quem ainda se lembra dessa história (ou para aqueles que se recordam de Kirk Douglas fazendo o papel do arpoador no cinema), foi justamente Ned Land quem liderou a revolta contra o comandante do Nautilus e a fuga dos domínios de Nemo. Ned Land já havia aprendido, graças a seu ofício de arpoador, que o controle e o exercício de um conhecimento tecnológico que outros não possuem significa ter a possibilidade de decidir do destino deles, até mesmo de sua vida e de sua morte, como ocorria com os animais com que ele lutava no seu trabalho quotidiano. Dessa maneira, sua conclusão seria que ou ele e seus companheiros dominavam a tecnologia de Nemo num estágio ainda mais sofisticado, ou fugiam, sob pena de serem usados como os navios usavam as baleias.

 

Há uma curiosa coincidência entre esse personagem de Verne e um outro, mas cuja trajetória não se encontra registrada em romances e sim em tratados de economia, de história e de sociologia. Trata-se de Ned Ludd, inspirador das turbas de desempregados que, nas últimas décadas do século XVIII e nas primeiras do século XIX, quebravam máquinas e instalações industriais, numa revolta contra tecnologias que destruíam seu modo de vida eliminando seus empregos. É legítimo indagar se a coincidência entre Ned Land e Ned Ludd está apenas no nome. Não é descabido pensar que Júlio Verne utilizou seu personagem para contar outra história, não essa que se apresenta no relato das aventuras de um fictício Capitão Nemo, cientista capaz de produzir os mais fantásticos aparatos tecnológicos, mas uma outra, escondida nas dobras do nome de um personagem e nas tramas em que ele é envolvido pelo narrador, colocado em franca oposição ao cientista e comandante do Nautilus. Está claro que Vinte Mil Léguas Submarinas, na perspectiva de seu narrador, nos conta a história do empolgante porvir de uma civilização que está por dominar novas técnicas e conhecimentos científicos. Quando se fala do livro de Júlio Verne, percebemos sempre o espanto dos leitores com sua antevisão de objetos e processos como a lâmpada, o submarino, a energia atômica, novos modos de produção de alimentos etc. Contudo, o romance conta também a história de um enfurecido personagem, esse Ned Land, incapaz de controlar seus instintos primevos e destruidores. E, se nos confiamos a esse maniqueísmo simplificador e cômodo, rodeando o livro pelas bordas da temática mais evidente, tornamo-nos talvez incapazes de perceber algumas sutilezas que podemos perseguir na trama de Júlio Verne. De fato, a pergunta que me parece mais importante a fazer é: o que Vinte Mil Léguas Submarinas conta com, de e contra a tecnologia? E ainda: de que modo essas três perspectivas poderiam ser justapostas, associadas, entrelaçadas? Da presença da tecnologia nesse romance, muita coisa já está exposta, discutida, festejada, explorada, analisada; contra a tecnologia, temos como exemplos a luta de Ned Land ou a solidão de Nemo (do mesmo tipo da de Arne Saknussem, da Viagem ao Centro da Terra); porém, descobrir o que essa narrativa faz com a tecnologia já é empresa mais complicada, se queremos ir além das obviedades do veio temático. Resta então pensar como o romance nos permite (se é que ele o faz) justapor essas três instâncias. E, se ele o permite, talvez seja pela maneira como ele torna possível ficcionalizar, nas entrelinhas, a aventura científica e tecnológica do homem ocidental. De fato, a ficção científica, tal como explorada por Júlio Verne, aponta para uma incorporação do tecnológico ao ficcional, isto é, para uma assimilação da ciência e da tecnologia ao literário — algo bem distante desses esforços de medievalização ou de terrorificação que vemos no cinema e nos romances contemporâneos que abordam tal temática —. Não se trata, então, de ver como uma dada epistemologia, ocidental, do século XIX, permitiu o surgimento de um certo tipo de narrativa, abrindo um certo leque de possibilidades temáticas, mas de como nós poderíamos ler a ciência e as técnicas a partir do ficcional, também elas tomadas como exercícios de fantasia e de imaginação. A partir disso, até mesmo os desdobramentos tecnológicos da ciência passam a ser vistos, dentro dos limites da literatura, como exercícios de ficção, como construções da fantasia. É o que faz Italo Calvino, por exemplo, com os seus Cosmicomics, aprofundando brilhantemente o caminho proposto por Júlio Verne. Para alguns leitores de Júlio Verne, tanto quanto as lâmpadas, o submarino e a energia atômica, também as equações de Maxwell, as Transformadas de Lorentz e os experimentos de Mendel se tornam elementos passíveis de incorporação ao universo do romance e, portanto, de ficcionalização. Mas não se depreenda daí que estou defendendo a sedutora tese de que ciência e tecnologia não passam de fantásticos empreendimentos narrativos. Elas não são apenas isso, mas também isso! E, a partir daí, podemos ser contra elas, tanto quanto Ned Land se posiciona contra Nemo; e seu quase xará, Ned Ludd, lutava contra os primeiros industriais britânicos do ramo têxtil. É justamente essa possibilidade de ser contra a ciência e a tecnologia que torna possível a ficção científica como espécie literária, ao mesmo tempo em que permite que nos apossemos da ciência e das técnicas como elementos passíveis de incorporação ao imaginário e seu uso no espaço da literatura. Não creio estar dizendo aí uma grande novidade!

 

 

Outras narrativas

 

Obviamente, há outros modos de se contar a história das técnicas e das ciências, de tomá-las como objeto de leitura e não apenas como verdades objetivas ou processos empíricos, sem que tenhamos que passar pelo viés do literário. Nesse caso, as referências são legião, inumeráveis, desde os primeiros balbucios da filosofia. Todavia, deve interessar-nos mais de perto algumas tendências que, sem serem recentes, têm tido uma aceitação considerável, por se tornarem capazes de adquirir uma permeabilidade tal que acabam transitando por diferentes tendências dos espectros filosófico, político e científico. Uma descrição delas e que marcou época foi feita por Umberto Eco, em seu Apocalípticos e Integrados. Mesmo tendo dividido essas tendências todas em duas apenas, de modo um tanto maniqueísta, não se perdeu, de forma alguma, a profundidade do retrato feito delas. A despeito da simplificação em que podemos todos cair, é perfeitamente possível e digno de interesse pensarmos como ainda nos relacionamos, de forma ambígua, com a tecnologia e com a ciência (quando não confundimos uma e outra; e quase sempre em detrimento da segunda), pulando sem cerimônias e sem delongas da adesão à rejeição. E isso se aguça nas ciências humanas, ainda pouco conscientes de serem ciências, elas próprias. Mesmo em obras mais recentes, como o Hamlet on the Holodeck de Janet Murray[2], esse maniqueísmo continua fazendo as honras da casa.

 

Para não irmos muito longe, talvez possamos localizar em Alvin Toffler um aguçamento do entusiasmo integrado, a partir da publicação de Future Shock (em 1970), completado por The Third Wave (de 1980). De fato, mais do que uma radicalização da mentalidade integrada, ele transformou em espetáculo e em massificação uma tendência muito anterior aos anos 70. Mas, em 1970, a espetacularização já era encarada e exibida como a única novidade possível, mesmo sem ser nova, numa sociedade que começava a ser amplamente dominada pelos meios de comunicação de massa.

 

Em Future Shock, Toffler aborda temas como “a morte da permanência”, “o impulso acelerativo”, “o ritmo da vida”, tentando descrever algo como uma fuga para diante, sem que ele próprio se dê conta disso. Se morre a permanência, é porque permanecer é morrer. O ritmo da vida passa a ser ditado quase que só pela aceleração, e esta se torna signo de vida e índice de prosperidade e de sabedoria. Ao homem, o que sobra? Tentar se mover nessa selva tecnicizada, buscando alargar constantemente seus “limites de adaptabilidade” (não por acaso, título de um dos capítulos de Future Shock), construindo “estratégias de sobrevivência” (idem), não preparando, nem prevendo o futuro, mas ocupando-se com o amanhã como quem transforma o porvir numa necessidade imediata de modificar constantemente suas habilidades e características, alterando-se sem parar para fazer face às mudanças incessantes da sociedade. Ora, para descrever seu futuro chocante, Alvin Toffler invoca fantasmas do evolucionismo do século XIX, num darwinismo mal embuçado que ele transplanta da esfera do biológico para o social (e sabemos bem que ele não foi o primeiro e, desgraçadamente, nem o único a fazer isso).

 

Para Toffler, todas as mudanças da vida contemporânea passam, assim, a ter como suporte, motivação e justificativa as próprias mudanças. Elas, então, se alimentam a si próprias, numa espécie de círculo vicioso ou virtuoso (dependendo, claro, de quem faz a avaliação, um apocalíptico ou um integrado). Mesmo tentando localizar, descrever e explicar como se dá o início desse processo, as mudanças acabam sendo descritas como causa das próprias mudanças. Curiosamente, Toffler associa ao mundo ocidental dos anos 70, processo semelhante ao descrito por Alfred Jarry em sua narrativa Le Surmâle, de 1902 (certamente, sem que o escritor americano perceba essa coincidência). Nesse livro, o autor de Ubu-Roi, descreve uma comunhão direta entre o biológico e o tecnológico. Os impulsos do corpo são atrelados às pulsões do pensamento, todos eles regidos por princípios mecânicos que parecem apagar completamente as fronteiras entre um e outro. A velha dicotomia entre matéria e espírito, que Descartes tentara resolver pela união substancial corpo-alma, resultava num pequeno romance que invocava a física newtoniana, sobretudo o princípio da inércia, num momento em que já se iniciava a revolução da ciência moderna no século XX. De fato, 1902 é o ano em que Lorentz ganhou o prêmio Nobel por seus estudos sobre a radiação eletromagnética, o mesmo Hendrik Lorentz que, dois anos mais tarde proporia equações matemáticas (chamadas de Transformadas de Lorentz) em que descrevia efeitos como o aumento da massa, o encurtamento do espaço, a dilatação do tempo, efeitos esses, todos, fazendo parte de uma teoria dada à luz no ano seguinte, 1905, por Einstein (é claro que estamos falando da Relatividade). Todavia, Alfred Jarry não se ocupa da ciência de uma época, ou do estágio técnico de uma dada sociedade, em certo momento de sua história. Trazidas para o ficcional, essas velharias da Física do século XVII deixam de remeter diretamente a campos conceituais, a modelos epistemológicos reconhecíveis. Incorporadas à ficção, elas dão coerência narrativa à situação em que um ser humano alarga indefinidamente seus movimentos, alimentados quase que tão-somente por sua vontade. A inércia de Newton, associada à vontade infinita do ser humano, de Descartes, resultam no super-macho de Jarry e, mais importante, na ficcionalização de paradigmas filosóficos e físicos há muito superados (aqueles) ou em vias de serem definitivamente superados (estes últimos). Com isso, podemos também ler a antiga física newtoniana e a nova, relativística, por outro viés, que não necessariamente esse dos modelos epistemológicos e do experimentalismo científico.

 

É claro que nos afastamos demasiado de Alvin Toffler e de seus choques do futuro. Mas isso tornou possível entender como a assimilação de técnicas e paradigmas científicos pode ser mais interessante, mais fértil e mais positivo, quando se dá na literatura, sem compromissos com uma pretensa verdade imediata. Nesse caso, a verdade diferida do literário nos permitiu ver melhor e pensar mais fundo. Se tanto Toffler quanto Jarry lançam mão de antiqualhas científicas, há diferenças profundas e irredutíveis entre ambos, e não porque um é ficcionista e o outro não. Talvez ambos sejam. Às vezes, nenhum deles é. A história da técnica e da ciência, tal como a conta Jarry, a seu modo, não leva em conta, nem leva a sério, de forma alguma, o darwinismo a que se submete Alvin Toffler, nem o positivismo que será influência não reconhecida nem aceita, mas muito clara, de outro ícone dos estudos tecnológicos, o francês Pierre Lévy (de que nos ocuparemos a seguir). Jarry, na verdade, subverte a história das técnicas e das idéias ao ressuscitar o cartesianismo e a inércia de Newton, sem que tenha, em momento algum, colocado sua criação literária sob a égide do mecanicismo newtoniano ou de Descartes. Ao contrário, ele dá sobrevida a esses modelos de pensamento, colocando-os não mais entre os arautos das verdades científicas e metafísicas, mas entre os pregoeiros das trapaças literárias.

 

Em Pierre Lévy, qualquer que seja a obra que consultemos, vamos encontrar facilmente, sem precisar avançar muito nas páginas, o que se poderia chamar de euforia tecnicista, muito semelhante àquela de Alvin Toffler. É claro que seria injusto deixar de reconhecer o acerto de boa parte de suas intuições, a maneira como ele trouxe à cena teórica algumas das questões mais prementes acerca do meio digital. Todavia, que não se esconda o simplismo de algumas das respostas que dá a essas questões, a maneira como tenta acomodar fatos, processos, objetos e técnicas a alguns mecanismos redutores com que pensa a história, a sociedade e a cultura. Não é difícil perceber que sua concepção de técnica e de ciência não consegue fazê-lo entender o fenômeno humano sem que este perca suas diversidades. Lévy se esquece da importante lição de Bachelard: conhecer um objeto é torná-lo complexo. Por vezes, a busca insistente por causalidades únicas ou por similaridades na evolução das culturas, reduz demasiadamente o horizonte de observação e análise. Se tomamos, por exemplo, A Inteligência Coletiva (editada no Brasil em 1998), vemos que seu autor crê firmemente numa história das técnicas (assim mesmo, no singular, e não histórias, no plural, como deveria ser); vemos que ele conta essa sua história das técnicas como se ela estivesse acima de nossa própria historicidade, não dando importância ao que dizia Merleau-Ponty: "L'homme est une idée historique et non pas une espèce naturelle."[3] A partir daí, segue-se quase que imediatamente que a história (e não as histórias) do homem se subordina, então, à história (novamente no singular) dos objetos culturais, quase que afirmando que é o mundo das coisas que inventa o homem, e não o homem que vai até as coisas e inventa modos de contá-las. Depois disso, o último passo pode ser dado e Pierre Lévy reduz, então, essas duas séries históricas a uma única, sem nenhuma ambigüidade, sem nenhuma pluralidade. Se o ciberespaço é o próprio jardim dos caminhos que se bifurcam de Borges, a perspectiva usada pelo sociólogo francês para contar a história de sua gênese não tem nada dessa geometria complexa e irredutível a quaisquer determinismos. Ao contrário, para ele, parece que tudo deve ser sacrificado no altar de um unitarismo, de um modelo causal unificador que o leva a esquecer da própria pluralidade que, freqüentemente, se vislumbra no ciberespaço.

 

Por outro lado, Pierre Lévy refere-se a um certo nomadismo da sociedade de nossos dias, chama o homem contemporâneo de “migrante do subjetivismo[4]. Estaria aí a pluralidade que, em outros instantes, ele parece negar? Difícil crer nisso, pois ele logo tira da manga um mito que já teve seus dias de glória e de repulsa, o de uma evolução histórica da sociedade humana que correria pari passu com o progresso tecnológico. Contada a partir dessa perspectiva, mesmo a história de tal nomadismo estaria condenada a um final, a um término que não seria nem mesmo assintótico, em que o fim dos tempos não traria as pragas ameaçadoras do Apocalipse, mas as promessas de um reino de perfeita fa(r)tura. O que contar, então, de um nomadismo que não se reconheceria mais como mudança?! Que história resultaria de um narrador cuja subjetividade derivaria de uma totalidade alegremente proporcionada apenas pelos inovadores (isto é, pelos técnicos e pelas técnicas)?! Isso não corresponderia a contar a história das técnicas como se ela escondesse em seu revés uma ditadura da tecnologia?! Nesse caso, a ciência não se tornaria um personagem posto em funcionamento por um narrador que se porta como um Deus ex machina?! No final das contas, quando Lévy fala de inteligência coletiva, ele não conta a história da construção do conhecimento ou da ciência, mas do acúmulo de informações. Novamente, temos aqui a história de uma fuga para diante, semelhante àquela que Alvin Toffler vislumbra e tenta nos descrever. Todavia, dessa vez ela é apresentada como se fosse chegar a um final: a fuga para diante de Pierre Lévy não apresenta nenhum comportamento assintótico, e o futuro já se encontra na próxima esquina; ele esconde, na verdade, um presente, o eterno presente que já açambarca tudo e todos. É semelhante àquele companheiro de Eça de Queirós em Coimbra, um socialista entusiasmado que, quando perguntavam, sempre dizia que a revolução era para logo, não passava do mês seguinte!

 

Pierre Lévy, então, tenta nos contar um mito, esse da tecnologia inventando uma humanidade, construindo pensamentos, produzindo idéias. Já se disse em outro lugar que esse pretenso primado do objetivo sobre o intelectual é uma de suas grandes fraquezas, é justamente o que deveria nos fazer desconfiar a cada passo de suas histórias. A bem da verdade, um mito ingênuo como esse que ele nos mostra é uma contradictio in terminis, pois nenhum mito pode ser ingênuo. No caso, a técnica nunca é neutra; não se pode aceitar que ela seja esse personagem que quase sempre produz prosperidades e confortos.

 

Se acima falamos de euforia tecnicista, será que poderíamos falar de um luddismo refinado, quando analisamos o que Jean Baudrillard conta da cena contemporânea? Certamente, muitos de seus críticos adorariam encontrar elementos que corroborassem esse juízo, atribuindo-lhe uma miopia de quem visse não os efeitos, mas apenas os defeitos da tecnologia. Ora, isso não me parece justo, pois Baudrillard não ataca obsessivamente as tecnologias, mas uma certa maneira de contar a história e o sentido das técnicas de produção, armazenamento, controle e disseminação de informações. Nessa perspectiva, as histórias narradas por Baudrillard falam de uma lacuna no íntimo de cada ser humano, que vê vários de seus gestos serem usurpados por máquinas e processos automatizantes. No entanto, ele não apregoa a destruição dessas técnicas para voltar a um estágio anterior que supostamente restabeleceria algumas pré-condições de felicidade social. Sua argumentação é certamente muito diferente disso. Em vez de propagar uma ira santa e um ardor cego contra objetos culturais que nos despojariam de partes de nosso ser, ele tenta contar a história de como estamos nos tornando aos poucos incapazes, nós mesmos, de contar histórias e, pior, de contar nossas próprias histórias. Por vezes, alguns teóricos da narrativa, falam de romances feitos para terminar com os romances, para colocar um ponto-final no gênero. Baudrillard faz a narrativa de um hiper-realismo que pode levar à morte qualquer esforço de construir ficções. Nesse caso, acentua-se quase que irreversivelmente, segundo ele, a incapacidade de ficcionalizarmos nossas experiências do mundo vivido (que são, claramente, experiências de nós próprios). Com isso, Baudrillard chega a dizer que “toda a metafísica desaparece”, pois “já não existe o espelho do ser e das aparên­cias, do real e do seu conceito[5]. Ora, esse hiper-realismo certamente pode apagar toda possibilidade de analogia com o real, ao instituir uma representação voltada obsessivamente para si mesma, deixando assim, nesse e por esse movimento, de ser representação. Até aí estamos de acordo! No entanto, esse apagamento das analogias e a prevalência de um hiper-realismo auto-referente, isso que é uma possibilidade entre muitas, torna-se para Baudrillard quase que possibilidade única. É como se, ao narrar um conto-de-fadas que falasse de destruição de reinos e da morte de reis e de princesas, Baudrillard o transformasse na história bíblica do Apocalipse, como se a fantasia se tornasse verdade revelada e cifrada ou, em outras palavras, fatalidade e fim. Ou ainda, como se, em Through the Looking-glass, o espelho de Alice se quebrasse e isso implicasse tanto a destruição do reino do espelho quanto do mundo de onde ela veio e para o qual já não pode mais voltar. Ou como se o ingresso na Comunidade Orkut nos impedisse de retomar nosso cotidiano para sempre. Mas isso está mais para roteiro de Twilight Zone...

 

Em outros momentos, Baudrillard fala de uma perda total do imaginário, que corresponderia a uma perda de racionalidade do real, reduzido este, então, a uma operacionalidade exaustiva, recorrente e exclusiva: nada estaria fora dessa operacionalidade ou, estando fora, não mais teria sentido algum. Não teríamos dificuldades em levantar exemplos disso que diz o filósofo francês. Todavia, o que nos interessa é saber que história ele tenta nos contar, na contramão de um pretenso mito contemporâneo da tecnologia. O que diz Baudrillard é uma elaborada narração que não se conta sozinha, nem se instaura diretamente como espaço de ficcionalização. Sua história apenas ganha sentido quando se coloca justamente no revés das imagens de que as técnicas se cercam e se ornamentam, no contrapasso das histórias que contam sobre ela. Ele, Baudrillard, precisa justamente dessa voz contemporânea que se ilude e tenta nos iludir, dessas narrativas atuais que acreditam firmemente que são o mito por excelência da época atual, esse mito de uma operacionalidade inesgotável e recorrente, apregoando-se capaz de transformar falhas em sucessos. Ora, isso não é mito, mesmo se se apresenta como tal. Para sê-lo, necessitaria de uma esfera outra de sentidos, não mais a sua própria, mas uma em que suas certezas, seus vaticínios, suas antecipações, suas prospecções e retrospecções da história ganhassem outros sentidos e fossem passíveis até mesmo de contestações. Ao colocar-se como única possibilidade de contar a presença da tecnologia em nosso tempo, esse pretenso mito contemporâneo não é mito de forma alguma, mas apenas uma narrativa agônica que tenta desesperadamente fixar a atenção do leitor em suas tramas. Se não o consegue, ela corre o risco de perder imediatamente seu encanto, perdendo, nesse caso, seus efeitos de narração para ancorar-se em defeitos da imaginação. Ora, o real necessita de um envoltório de imaginário[6]. É por isso que a narrativa contemporânea, essa que conta e celebra, entre outras, as tecnologias da informática, quando se coloca autocraticamente como único espaço possível de ficcionalização, perde-se como ficção, perde-se como narrativa. Justamente nesse desvão entra Jean Baudrillard: suas histórias somente existem a partir dessa não-história, desse mito falhado, dessa ficção falida das tecnologias atuais. Aproveitando-se dessa tendência e desse risco em perder definitivamente toda possibilidade de contar nossas histórias a partir do cenário tecnológico, ele consegue enfiar aí sua narração e contar uma história, essa sim um mito contemporâneo, o de um hiper-realismo catastrófico. Se a celebração do tecnológico abre mão de toda possibilidade de imaginário, o que faz Baudrillard é rodeá-la (a celebração) justamente de imaginário, tirando dele o caráter de operacionalidade autocrática. Temos aí então um curioso efeito narrativo. Baudrillard conta uma história segunda de uma história primeira. Esta última é, obviamente, a narrativa contemporânea que tenta ser o mito da excelência do espaço tecnológico. Baudrillard narra essa narração a seu modo e jeito. Se essa história primeira é o primado da simulação sem analogias possíveis, sem referentes que não ela própria, sem mais apelo algum ao imaginário, Baudrillard mete-lhe justamente a cunha do imaginário, narra-a de outra maneira, insere-a em outra esfera de sentidos ou, para seguir sua argumentação, restaura a condição de possibilidade de sentidos. O pensador francês surpreende a cena contemporânea num instante de gestação de novos paradigmas, em que é sempre muito provável que apareça a sensação de que todo sentido transcendental se torna impossível e inviável. O que fazer, então? A partir do que ele propõe, podemos contar essa história de final da história, sem apontar para nenhum final definitivo, para nenhum grande acidente terminal, dando-lhe assim, um alcance que somente pode existir fora dela, na trama de histórias outras que sempre podemos narrar, mesmo em momentos de deriva e de perda, em que pareceria esgotada toda e qualquer ficção. De fato, esse acidente definitivo e insuperável pode ser como os tártaros do romance de Dino Buzzati. O jovem oficial Giovanni Drogo espera anos pela chegada iminente dos invasores e morre sem que eles cheguem, numa situação muito parecida à que vivemos há cinco anos atrás, num 31 de dezembro de 1999, quando a chegada do bug do milênio era tão certa quanto o ataque das cavalarias tártaras.

 

Ora, falar em catástrofe iminente e definitiva nos remete a Paul Virilio. Entre as muitas histórias que conta o urbanista e pensador francês, destaca-se a do grande acidente. Em um ensaio intitulado “Quelques bonnes raisons d’entrer en résistance”[7] ele afirma que “la mégacité, c’est Babel... et Babel, c’est la guerre civile!”. Mas não haveria outro modo de contar as histórias dessas cidades de concreto, aço e informação, cidades em que concreto e aço já vão sendo substituídos por informação ou, pior ainda, por simulacros de informação? Não haveria como narrar essas histórias preparando um outro porvir?! Não seria possível construir, a partir delas, uma cidade ao menos, aquela em que “parfois il me suffit d’une échapée qui s’ouvre au beau milieu d’un paysage incongru, de l’apparition de lumières dans la brume, de la conversation de deux passants qui se rencontrent dans la foule, pour penser qu’en partant de là, je pourrai assembler pièce à pièce la ville parfaite...”[8]?! Não é o que conta Virilio. Ao contrário do personagem de Buzzati, ele se dá conta de que o tempo é a verdadeira ameaça, o verdadeiro invasor (mas que, paradoxalmente, faz de nós o que somos!). Contudo, examinando mais detidamente o que diz Virilio, pode-se concluir que, mais do que o tempo, o problema é que nós próprios estaríamos acelerando o percurso em direção ao acidente: “Nous sommes en phase d’assister à l’accident des accidents, à l’accident du temps. Ce n’est plus l’accident d’une histoire particulière comme l’ont été Auschwitz ou Hiroshima.[9] E não teríamos mais olhos para enxergar o acidente se preparando: nós olhamos seus prenúncios, mas não os vemos. Curioso é que nem o próprio autor de Cybermonde vê que Auschwitz e Hiroshima nunca foram histórias particulares!

 

Por vezes, Virilio parece estar contando a história pintada por Bruegel no quadro A Parábola dos Cegos, sobretudo quando fala das “máquinas de visão”. Haveria nelas não uma ordem das razões como a cartesiana, mas uma cadeia de desrazões em que o cegamento é condição sine qua non para a vida nessa coletividade tecnicizada. A narrativa que ele faz da “industrialização do não-olhar[10] contemporânea leva à conclusão de que não seríamos mais capazes de reinventar o homem! Como se as ilusões se tornassem as únicas objetividades tangíveis, fazendo com que tudo se transformasse imediata e irremediavelmente em simulacros! Ou como se todos os vestígios dessa grande farsa deixassem de ser farsa e deixassem de ser vestígios, diante de sua presença tão avassaladora! Ou como se as ondas de choque do grande acidente, de tão grandes, passassem a fazer parte da paisagem contemporânea, a desenhar as fisionomias dos indivíduos e as geografias das coletividades! Ora, é possível contar uma outra história, mesmo se essa trama narrada por Virilio aconteça aqui e ali, às vezes com freqüência incômoda. É claro que podemos ver e experimentar esse movimento célere e acelerado que põe máscaras e simulações em jogo, que faz com que estas sejam as únicas regras evidentes do jogo contemporâneo, movimento que borra a fisionomia das pessoas e a disposição interna de sua intimidade, ao construir, paradoxalmente, uma hipernitidez da paisagem externa e dos outros (sempre mascarados, então!). Porém, esse movimento pode ser desmontado, quando contraposto a um gesto criativo, esse que descobre certa velocidade de narração, uma dada perspectiva ficcional, alguma freqüência de ressonância que faça vibrar e explodir os simulacros, as máscaras, que impele nossa narrativa em ritmos incomodamente diferentes daqueles das grandes narrativas tecnológicas (sim, elas estão aí, nesses tempos pretensamente pós-modernos!). Aliás, essas grandes narrativas tecnológicas sempre se obstinam em mapear vinculações imediatas entre as técnicas e as artes, estabelecendo, evidentemente, o primado daquelas sobre estas. Não se trata, então, de recusar obstinadamente, como um luddista anacrônico, qualquer espécie de vínculo entre umas e outras, mas de colocar-se mais como criador e menos como engenheiro[11].

 

Nesse sentido, uma obra já velha de décadas me parece agradavelmente atual e, mais importante, de leitura bastante proveitosa. Paolo Rossi lançou Os Filósofos e as Máquinas há coisa de quatro décadas, mais exatamente em 1961. Trata-se de um estudo que nos conta, de maneira muito instigante, a história das relações entre arte, ciência e técnicas, abrangendo um período que vai da efervescência do Quatroccento ao século XVIII. Mas não apenas! A partir desse horizonte temporal bem delimitado, podemos repensar essas relações todas, em várias épocas, sobretudo na nossa. É possível, também aqui, contar outra história, de outro jeito: de que modo o artístico pode dar novas ferramentas ao técnico, enquanto este ensina novos processos àquele, abrindo um espaço de diálogo em que arte, ciência e técnica não mais se acomodam aos figurinos anteriormente desenhados para elas, nem se conformam com os espaços limitados em que foram circunscritas. Ou, em outra perspectiva, trata-se não de abrir um “processo contra a modernidade”, pelo viés de suas tecnologias de produção, dotando-a de “um único sentido, positivo ou negativo[12], mas de narrar como se podem tecer diálogos entre indivíduos de especialidades diferentes. Em outras palavras, trata-se de descobrir ou mesmo de construir novos sentidos, tanto nas tecnologias de produção, quanto nas técnicas de criação. Como diz Rossi:

 

É nesses laboratórios, ao mesmo tempo oficinas e ateliês de arte, e não nas escolas, que se formam os pintores e escultores, os engenheiros e técnicos, os construtores de máquinas. Aqui, ao lado da arte de talhar pedras e pintar o bronze, ao lado da pintura e da escultura, ensinavam-se rudimentos de anatomia e óptica, cálculo, perspectiva e geometria, projetavam-se a construção de arcos e a escavação de canais.[13]

 

No caso, é importante entender que “ao lado de” não significa paralelamente ou à parte, mas sim que arte, ciência e tecnologia estão misturadas umas às outras de forma muito complexa. Nunca poderemos medir a influência das ciências e das técnicas na criação artística, mas, do outro lado, certamente algo da anatomia e da óptica, alguns dos elementos do cálculo, da perspectiva e da geometria devem seu sentido e seu uso à criação artística que surgia junto deles e com eles. Freqüentemente se conta a história da influência das ciências e das técnicas na criação artística (e o caso das relações entre a fotografia e a pintura impressionista, no século XIX, é eloqüente). Muito mais rara é a narrativa desse processo no sentido inverso, isto é, do papel importante das técnicas de criação artística, não apenas como vulgarizadoras, para as ciências e para as técnicas. Como aponta o ensaísta italiano, os projetos técnicos de Leonardo da Vinci não atendiam apenas a requisitos de ordem funcional ou mesmo a critérios econômicos (se é que o faziam), mas apostavam também na irrelevância[14]. De certa forma, há uma irrelevância sempre espreitando por detrás do tecnológico e mesmo do científico[15]. E ela não pode ser entendida apenas como uma deriva artística do tecnológico e do científico, mas também como uma influência do artístico que se manifesta no científico e no tecnológico, acomodando-os a lógicas de uso e a sentidos culturais nascidos fora deles dois.

 

É importante salientar que a convivência de pintores e escultores com engenheiros, técnicos e construtores de máquinas, como aponta Paolo Rossi, não se faz entre profissionais de áreas e visões distintas convivendo generosamente e compartilhando um mesmo espaço de criação e trabalho. Trata-se de olhares e perspectivas diferentes associados e postos a funcionar em um mesmo corpo, de um mesmo espaço habitado e vivido, de um mesmo arsenal de gestos expressivos e criativos postos em funcionamento e que não distinguem necessariamente o geômetra e o artista. E, assim como no berço do Renascimento, mais do que em outros períodos, podemos hoje em dia contar uma história semelhante de convivência entre técnicos, artesãos e artistas. Atualmente, ela está-se dando entre informáticos, programadores, engenheiros de computação, projetistas de páginas eletrônicas, programadores visuais e artistas digitais.

 

De minha parte, também tento estabelecer uma série de diálogos neste ensaio. Mas não se trata apenas de dialogar criativa e criticamente com contextos tecnológicos específicos ou limitados, mas, sobretudo de buscar em alguns momentos de várias épocas distintas aquilo que nos interessa como motor e móvel de uma outra narrativa. E qual seria ela? Justamente essa que permite nos apropriarmos dos processos e das ferramentas informáticas do ciberespaço, sem que tenhamos obrigatoriamente que narrar ou imitar o primado dos simulacros e do hiper-realismo, ou a inevitabilidade insidiosa dos grandes acidentes. E aqui vou eu também ressuscitar minhas antiqualhas, com a esperança de que elas ajudem a entender melhor as possibilidades que temos de contar e recontar, sempre diferentemente, e talvez com mais proveito, essas relações entre as técnicas, as ciências e as artes, especialmente a literatura, e, dentro desta, a narrativa de ficção. E é claro que, quando me refiro a contar e recontar diferentemente tais relações, estou pensando nas narrativas que podem se dar nos meios digitais. A utilização de formas ficcionais no ciberespaço tem atrás de si várias tradições muito fortes e parece que ainda não encontrou seu caminho. Ora, este certamente não será gerado a partir do nada, mas estará constantemente exposto a três possibilidades ao menos: contar, viver, representar. Sem querer arriscar aqui falar de formas simples das ficções postas no ciberespaço, podemos, de todo modo, pensar em como essas três instâncias estão presentes no horizonte de expectativas e de possibilidades do leitor e do escritor[16]. Contar se refere a muita coisa, mas pode ser associado de imediato às narrativas tradicionais[17]. Viver não carrega aqui, obviamente, seu sentido mais aberto, mas diz respeito às histórias que se produzem e se disseminam através de salas de bate-papos, dos sítios de contatos e de convivência (como a comunidade Orkut), ou mesmo daquilo que Janet Murray chama de holodeck. Finalmente, representar está ligado a jogos, como os RPG’s, que se transformaram nos MUD’s e MOO’s[18]. Fazer com que ficções surjam e circulem no ciberespaço está certamente ligado a algum tipo de compromisso, em proporções variadas, entre essas três possibilidades. Mas, para estabelecer qualquer tipologia que se queira, a partir da observação das narrativas no e do ciberespaço, temos de prestar contas do pano-de-fundo sobre o qual elas se recortam. E esse pano-de-fundo impõe um diálogo constante com as tecnologias digitais. Uma solução fácil e falsa consistiria em atentar para o papel das técnicas e das ciências apenas como temática das narrativas. Todavia, o que nos interessa é entender como ciência, tecnologia e ficção literária, desde o início, estabeleceram padrões complexos de influência mútua, para podermos entender melhor o que se passa atualmente nos meios digitais[19]. É o que se quer explorar a seguir, através de um recorte, o das tecnologias associadas ao tempo.

 

 

Tecnologia e tempo

 

É quase um truísmo afirmar que tempo e ritmo são elementos sine quibus non de toda narrativa. Das formas simples de Jolles às hiperficções em meio digital, os ritmos da trama, da narração e da leitura se recortam contra os vários planos temporais trazidos ao espaço ficcional. O modo como cada época desenvolve técnicas e modelos científicos ligados ao tempo, influi de algum modo na maneira como as histórias desse período articulam sua armação temporal. Nas narrativas de cada época, encontramos vestígios ou fundamentos de sua cosmovisão, segundo a maneira como a história se organiza e, a partir daí, como tempo de narração, tempo narrado, tempo lido e tempo vivido se dispõem diante do leitor. Isso está em muitos teóricos, de Mendilow e seu clássico O Tempo e o Romance a Le Temps Sensible de Julia Kristeva, e seria tedioso uma rememoração dessa vulgata da teoria do texto ficcional. O que nos interessa de perto, nas narrativas ficcionais, não são apenas as marcas da cosmovisão de sua época, com suas arquiteturas sociais, seus recortes culturais, seus paradigmas científicos, seus processos e ferramentas tecnológicas etc., mas, sobretudo, a oportunidade que temos de ler, nesses processos tecnológicos todos, uma história que escape às injunções ou aos esquematismos dos paradigmas científicos correntes ou dominantes. Ainda não estamos tratando, aqui, das interferências ou das influências da tecnologia nos modos de contar. O que queremos, agora, é inverter essa equação: não mapear a presença de certos modelos técnicos e científicos de tempo nas narrativas, mas como as modificações nesses modelos constituem também uma história interessante. É assim que pretendemos contar a história de alguns processos e ferramentas tecnológicos, todos associados ao tempo, utilizando processos e ferramentas do espaço ficcional da literatura. Para isso, vamos pensar em quatro instâncias: os utensílios de contagem do tempo; os instrumentos de controle do tempo; as ferramentas de armazenamento do tempo; as estratégias de esquecimento. Assim, ler a tecnologia é condição necessária, mesmo que não suficiente, para um diálogo mais produtivo entre narrativa e ferramentas tecnológicas, ainda mais quando tal diálogo se dá em meios e em situações que podemos caracterizar como de alta saturação técnica (mais até do que científica), condição que parece descrever o espaço de escrita ficcional de que dispomos hoje em dia.

 

Lendo a tecnologia através de seus utensílios de contagem do tempo, podemos mapear um percurso que, grosso modo, vai do relógio solar ao relógio digital. Os relógios de sol estão presentes em várias civilizações, desde os primórdios da história humana, e se encontram associados a instalações rituais e celebrações litúrgicas, sem que tivessem necessariamente que medir qualquer intervalo. Eles celebravam o calendário dos anos e dos séculos, e não marcavam propriamente a passagem dos instantes. Já os relógios digitais representam uma apropriação individual dos ritmos da sociedade contemporânea e também uma exigência de acomodação do ritmo de cada indivíduo a interesses que estão fora dele, mas que o conduzem pelo braço. Mas que história podemos compor, nessa passagem de um tipo de relógio a outro, sem perambular pelos descaminhos de um frenesi evolucionista, imposto por uma idéia de progresso linear ou constante? Talvez possamos começar aprofundando as diferenças entre ambos. No primeiro tipo de relógio, a energia que o movia vinha de fora. Ela se deve obviamente ao Sol, que, mesmo em dias nublados, permitia a medição do tempo. Já, à noite, essa operação era impossível. Em certo sentido, a noite não apenas liberava os temores do homem, mas os libertava do fardo do tempo. De seu lado, os relógios digitais representam uma alteração com respeito não só a esses primeiros, mas também com relação àqueles que se moviam com corda[20]; ou, ainda, àqueles cuja corda era dada pelo balançar do braço associado à força da gravidade. A energia elétrica que os move não vem do céu nem do Sol; não se deve à força imposta por alguém que torce alguma rosca; não deriva da atração gravitacional cujo centro empírico se encontra no interior da Terra. E essa diferença se reflete diretamente nas leituras que ambos os tipos de relógio exigem. O relógio de sol implicava ou impunha uma leitura pública. Seu espaço era o espaço da coletividade. Em outras palavras, o tempo do relógio de sol só se dava ao indivíduo se fosse compartilhado. Ou, ainda, o tempo só era do indivíduo se fosse dos outros, o que vale dizer que, na verdade, ele nunca era apenas de um só. O relógio digital só admite a leitura solitária. O tempo se torna dotado, assim, de um fechamento quase solipsista. Se observamos uma metrópole atual, com inúmeras pessoas carregando seus relógios digitais, enroscados nos pulsos ou fechados em agendas eletrônicas ou celulares escondidos dentro de bolsas ou pastas, podemos imaginar, a partir daí, que cada pessoa constrói e habita uma temporalidade própria e toda sua. Quase que se poderia dizer que tempo só é tempo, nessas condições, se for de um único sujeito. O relógio de sol devia ser observado de longe ou a distância; em algumas circunstâncias era até mesmo reverenciado. Isso reforçava a estatura mítica do tempo. O relógio digital, seguindo a lógica de sua incorporação ao vestuário como relógio de pulso, parece pôr o tempo ao alcance da mão e sob o controle de cada um (isso é, claro, apenas ilusório!). Conseqüentemente, de um a outro, do relógio de sol ao digital, transitamos do mito à ilusão. É quase uma história de descida aos infernos, esta que se acabou de contar aqui: do Sol à pilha, do céu ao braço, do supralunar ao sublunar. Mas não se atribua a ela necessariamente um desfecho trágico: dessas descidas, pode-se voltar derrotado, como Orfeu, mas também mais sábio ainda, como Ulisses. A ilusão, o jogo-de-cena, quando submetidos à ficção literária, podem nos despertar para um conhecimento não mais sujeito aos utilitarismos imediatos da técnicas e das ferramentas. A ilusão de um tempo feito sob medida e prêt-à-porter, como essa do relógio digital, parece estar por trás já da economia narrativa de algumas obras impressas, como as de Georges Pérec[21] e de Ítalo Calvino[22]. Sua utilização como estratégia de pluralização de temporalidades, nas narrativas digitais do ciberespaço parece ser, no mínimo, promissora.

 

Podemos falar dos instrumentos de controle do tempo, narrando a história dos meios de transporte. Da tração animal aos atuais propelentes de foguetes, a diminuição dos tempos de deslocamento significou o estabelecimento de uma nova temporalidade humana, independente em parte da temporalidade da natureza (que se media em estações do ano, em gerações de indivíduos etc.). Mas os efeitos dessas técnicas não apareceram apenas na aceleração das viagens: foi inaugurada uma nova maneira de ter ou de ver a espacialidade diante de si. No que podemos chamar de civilização pedestre (incluídos aí os animais de carga), viajar era entronizar-se na paisagem, aderir ao percurso. O espaço era habitado diretamente, no transcurso da viagem. Os naturalistas que, desde o século XVII, pintaram e desenharam paisagens, fauna e flora do Brasil são um ótimo exemplo. Não se pretende aqui discutir se a visão que traziam era justa e ajustada à realidade brasileira. Se eles puderam olhar, ver, enxergar essa terra, foi porque a velocidade de deslocamento era produzida por um diálogo direto e imediato entre corpo e paisagem, sem a intermediação de instrumentos ou de estratégias de movimentação que impusessem uma velocidade maior do que aquela possível ao corpo humano. De fato, o emprego de alimárias se devia à necessidade de deslocar maiores quantidades de carga, não por uma vontade de acelerar o ritmo e diminuir o tempo de viagem. Na verdade, não interessava de forma alguma diminuir esse tempo, pois isso significaria subtrair do olhar boa parte do espaço visível, impondo entre corpo e paisagem uma distância fatal para o (re)conhecimento desta. Nesse sentido, o ritmo dos passos era como que ditado pelo piscar dos olhos e, em conseqüência, não havia mais distância intransponível entre tocar e olhar, entre pisar e conhecer, entre percorrer e (re)conhecer.

 

Na outra ponta do processo de controle do tempo pelos meios de transporte, situa-se esta nossa civilização do trem, do automóvel, do avião. Desde o século XIX, viajar veio se transformando, inexoravelmente, em colocar-se fora da paisagem. No mero deslocamento diário, em ônibus urbanos ou no metrô, entre residência e local de trabalho, fomos colocando obstáculos entre nosso corpo e a paisagem. Nos ônibus urbanos, temos freqüentemente a multidão que os toma de assalto e tampa a paisagem para a maioria dos usuários; no metrô, no enfiamos num subespaço sufocado por paredões que lembram calabouços; nos ônibus intermunicipais, sobretudo naqueles de percurso mais longo, um videocassete vai exibindo filmes da penúltima moda e atraindo o olhar para fora do indíviduo e, também, para fora da paisagem externa. Debret não falaria de um “lá fora”, ao se referir à paisagem que ia observando durante seus deslocamentos. Nós usamos exatamente essa expressão com respeito às coisas e às pessoas que, fora dos veículos, parecem se deslocar e conviver com outras lógicas e até mesmo com outras leis da física. O que seria, por exemplo, uma posição normal de equilíbrio quando se vai ao banheiro em terra firme, num desses ônibus torna-se uma complicada logística corporal a que não estamos nunca suficientemente habituados. E ainda, viajar também se transformou não apenas em colocar-se fora, mas também em estar acima do percurso (no caso dos aviões, isso é literal!), como se viajar significasse pôr-se em suspenso e, freqüentemente, pôr em suspenso até o próprio deslocamento: quantas vezes não ficamos mais tempo aguardando em salas desinfetadas de aeroportos, do que voando dentro dos aviões? Aos poucos, vamos deixando de esperar durante a viagem, para esperar a viagem, antes que ela ocorra efetiva e quase imperceptivelmente.

 

Desde a invenção do instantâneo e do funcionamento do motor cinemático, nossa época se encaminhou em etapas rumo ao fim de um ciclo da aparência, não somente o da observação direta, mas hoje o da percepção indireta, e isto sem que nos inquietemos demais com estas destruições sucessivas... [23]

 

Contudo, um afastamento entre o indivíduo e o espaço externo não precisa necessariamente ser pintado com as cores da catástrofe, nem contado como se fosse a retomada do mito da queda. Pensemos numa coincidência: o século XIX, que assistiu, já em seu início, a esse processo de ir colocando distância, aos poucos, entre o eu-individual e o mundo exterior, viu, em seu final, o surgimento da psicanálise de Freud. É como se, colocado o espaço exterior a uma distância mínima e prudente, se abrisse o caminho para a delicada exploração do espaço íntimo. De fato, o controle do tempo por meios de transporte cada vez mais rápidos já encerrava em si a promessa de extinção do tempo de viagem — ainda que de forma assintótica —, tempo cronológico e consciente que a psicanálise também afasta, de certa forma. Em Freud, esse processo pode ser contado como uma história em que é personagem o próprio tempo externo, cronológico, esse da consciência e do calendário. Personagem de uma narrativa de afastamento. O mesmo tempo também é protagonista de uma narrativa de H. G. Wells, A Máquina do Tempo, em que o tempo físico, tirado da cronologia habitual, se torna objeto de manipulação dos personagens e, claro!, do acaso. Temos aí outra coincidência interessante: Sigmund Freud nasceu em 1856 e faleceu em 1939; Herbert George Wells viveu de 1866 a 1946. Ambos são praticamente da mesma geração. Ambos publicaram suas primeiras obras de destaque em 1895: Estudos sobre a Histeria, de Freud, e A Máquina do Tempo, de Wells. Assim, psicanálise, meios de transporte cada vez mais rápidos, especulações científicas rondando a Relatividade, tudo isso certamente alimentou narrativas sobre o tempo, como as que produziram o romance de H. G. Wells. Todavia, através dele e de outras ficções, também podemos recontar essas histórias todas em que o tempo se torna objeto de controle e de manipulação. Mas serão narrativas não mais seguindo os ditames das epistemologias ou das teorias do conhecimento, mas obedecendo à multiplicidade das lógicas e à causalidade complexa e aparentemente inútil do espaço literário.

 

De alguma forma, a história das ferramentas de armazenamento do tempo está ligada às atitudes de acumular e de transmitir informações. Guardar conhecimentos, saberes tradicionais, fatos relevantes, processos técnicos, estratégias administrativas, sempre foi uma maneira de vencer o tempo, vencendo o esquecimento. É como se, junto com as informações, o próprio tempo fosse guardado e posto à disposição para manipulações, sempre que necessário ou desejável. Por isso se pode dizer que a história de armazenamento do tempo também pode ser contada como o relato de uma divinização do humano. Vamos explicar isso. Nos relatos míticos tradicionais se conta que, através e por meio dos deuses, as sociedades humanas adquiriram capacidade de guardar e transmitir seus conhecimentos: eles criaram a escrita e a deram aos homens; eles inspiraram artistas na criação de esculturas e de pinturas. Ora, esses mesmos relatos míticos a respeito dos deuses eram também depositórios das tradições, da sabedoria, dos costumes e da história de um dado povo. Tais relatos, através de sua contínua movimentação no espaço cultural desse povo, permitiam aos homens participação ativa nesse processo de guardar informações. Nesse sentido, também eles se tornaram capazes de armazenar o tempo. Como se fossem deuses. Os relatos que aprendiam com os antepassados míticos somente podiam ser transmitidos, na tradição oral, graças à participação de vários indivíduos (xamãs, feiticeiros, sacerdotes, ou mesmo homens comuns). Não bastava, então, ser inspirado e ter conhecimento do mito, era necessária a intervenção humana. A invenção humana completava e, aos poucos, ia substituindo a criação divina. É assim que, numa etapa posterior, esses relatos míticos foram incorporados definitivamente ao domínio do profano e a ações não mais rituais, através de sua utilização em outras esferas. Por exemplo, na Teogonia de Hesíodo, é e sempre foi impossível separar o que é mítico, o que é poético e o que é filosófico, mas parece claro que a primazia sempre coube aos dois últimos.

 

Esse processo de armazenamento de informações começou pela oralidade e, depois, pela escultura e pela pintura, espraiou-se pela escrita, passou pela fotografia e pelo filme, chegando, nos dias de hoje, às memórias eletrônicas e digitais. Em toda essa linha, nota-se um esforço coerente e constante de condensação das informações, multiplicando não apenas sua quantidade, mas o detalhismo com que são recolhidas, armazenadas e, posteriormente, postas em uso. Há algum tempo, participei de um debate em que um dos contendores afirmava com olhos sôfregos e boca trêmula que a humanidade já dispunha de memória eletrônica suficiente para armazenar todo o conhecimento humano. Não atinei se ele brandia essa frase como ameaça ou como promessa. Talvez como ameaça. E talvez sem se dar conta de que ele falava mais ou menos do que se conta em “Funes el memorioso”, de Jorge Luis Borges:

 

Nosotros, de un vistazo, percibimos tres copas en una mesa; Funes, todos los vástagos y racimos y frutos que comprende una parra. Sabía las formas de las nubes australes del amanecer del 30 de abril de 1882 y podía compararlas en el recuerdo con las vetas de un libro en pasta española que sólo había mirado una vez y con las líneas de la espuma que un remo levantó en el Río Negro la víspera de la acción del Quebracho. Esos recuerdos no eran simples; cada imagen visual estaba ligada a sensaciones musculares, térmicas, etcétera. Podía reconstruir todos los sueños, todos los entre sueños.

Dos o tres veces había reconstruido un día entero; no había dudado nunca, pero cada reconstrucción había requerido un día entero. Me dijo: "Más recuerdos tengo yo solo que los que habrán tenido todos los hombres desde que el mundo es mundo". Y también: "Mis sueños son como la vigilia de ustedes". Y también, hacia el alba: "Mi memoria, señor, es como vaciadero de basuras". Una circunferencia en un pizarrón, un triángulo rectángulo, un rombo, son formas que podemos intuir plenamente; lo mismo le pasaba a Ireneo con las aborrascadas crines de un potro, con una punta de ganado en una cuchilla, con el fuego cambiante y con la innumerable ceniza, con las muchas caras de un muerto en un largo velorio. No sé cuántas estrellas veía en el cielo.[24]

 

Assim como ocorre com Funes, as técnicas de armazenamento de informações parecem estar chegando a um paroxismo, guardando mais e mais detalhes, impondo-se a obsessão de nada perder, de nada esquecer, como se tudo fosse igualmente importante, imprescindível, inadiável. Todavia, o que é ameaça para uns, espanto para o interlocutor de Funes e sofrimento para o próprio Funes, pode-se converter, de um lado, na ficção construída por Borges, por meio dessa obsessão que se acelera a partir da segunda metade do século XIX (não coincidentemente, época em que se passa a história de Borges). Do outro lado, o das técnicas e dos processos tecnológicos, essa infinitização da memória é claramente uma completa impossibilidade, a despeito dos gritos de alarma de apocalípticos e das aclamações de integrados. Uma memória eletrônica e digital capaz de guardar tudo poderia ser vista como uma hierofania direta e imediata, transformação imediata de ferramentas em instâncias supra-humanas. Sonho de uns, pesadelo de muitos, mas impossibilidade para todos: conhecer tudo pressuporia também deter um conhecimento segundo daquele conhecimento primeiro. E essa cadeia de metaconhecimentos não pararia nunca, teríamos de guardar também o conhecimento terceiro desse conhecimento segundo, e assim por diante. Impossibilidade evidente! E ainda: como as panes, as falhas, os fracassos, os erros, as quebras seriam incorporados a essa memória pretensamente totalizadora?! O fato é que, mesmo nesta nossa época de memórias eletrônicas e digitais de avassaladora capacidade, o jogo ainda se dá entre guardar e perder, entre lembrar e esquecer. Em certo sentido, as memórias dos computadores representam, até mesmo teatralmente, esse jogo. As memórias ROM (sigla em Inglês para Read Only Memory, ou memória exclusiva para leitura), no mais das vezes, apenas se dão a ler, não podem ser reescritas, borradas, alteradas, atrapalhadas. Faríamos melhor se pudéssemos aprender com elas que guardar sempre o mesmo (como elas fazem usualmente) não é mesmo que lembrar, mas, sim, aprisionar o saber. E saber aprisionado pode ser muita coisa, mas, certamente, já não é mais saber. As memórias RAM (Random Access Memory, ou memória de acesso aleatório) situam-se no outro extremo desse espectro: elas são nada mais do que volatilidade plena e constante, fugacidade extrema. Nelas, o acaso é o grande mestre de cerimônias, escrevendo dados onde antes havia outras informações. O acaso vai apagando os vestígios de uma memória que, estranhamente, funciona porque desparece incessantemente, que funciona melhor quando se esquece sem parar. Aqui, nas memórias RAM, saber é esquecer, ou seja, apagar o programa que havia sido colocado em algumas posições de memória, na sessão anterior aberta pelo usuário. Nelas, o presente é o único tempo disponível, eterno presente de uma memória que se desmemorializa repetidamente e somente assim pode funcionar.

 

Essas ferramentas de armazenamento do tempo nos contam, então, uma história que não está no exibicionismo de dados das memórias de computador, na superfície pedrês do papel branco pintalgado pela tinta preta das letras, nas substâncias químicas que vão formando imagens e fotos, e que ganham movimento através do celulóide do cinema. Elas nos permitem narrar, mais uma vez, de outras maneiras ainda, as histórias da recordação, da lembrança e da memória, associando estas três de modo diverso a cada relato, estabelecendo entre elas uma outra hierarquia a cada nova ficcionalização. E, mais ainda, essas ferramentas deveriam nos despertar para uma questão importante, tanto com respeito à tecnologia quanto com relação à escrita ficcional contemporânea: o que está em jogo nos meios digitais, na atualidade, não é o tamanho da memória eletrônica, não é o aumento contínuo da capacidade de armazenamento de dados dos computadores. O que deveria nos interessar mais de perto não seriam as estratégias de memória, essa lógica produtivista de incrementar de forma espantosa a capacidade de armazenamento de dados dos sistemas informáticos. O que interessa, mesmo, são as estratégias de esquecimento, coisa que alguns, prazerosamente entregues aos tempos mínimos do meio digital, parecem querer esconder. Se é possível, e até desejável, que contemos a história das memórias dos computadores, temos de entender quais estratégias de esquecimento eles tornam possível para a nossa civilização. Cada época, cada cultura, cada sociedade tem as suas maneiras de esquecer. Nestes nossos tempos de frenesi informático, estamos já desenvolvendo certamente modos diversos de esquecimento. Contar essas histórias talvez seja o desafio mais importante a ser encarado pelos ficcionistas e narradores das próximas décadas. E contá-las não passa apenas pela capacidade maior ou menor de tematizar essa questão, mas, sobretudo, de torná-las parte da estratégia de integração das ferramentas e das técnicas do ciberespaço à ficção.

 

 

 

De fato, a escrita de narrativas no ciberespaço sempre tem sido contada como a história da adaptação (ou da sujeição) do ficcional ao digital, quando teríamos também de contar uma história outra, propondo uma perspectiva oposta: como o ficcional nos faria ler, usar, deformar, alterar o digital? É assim que, associando essas duas perspectivas, inúmeras histórias das técnicas e das ciências poderiam ser contadas e, através delas, estaríamos encontrando novos gestos de expressão ficcional. Algumas delas me parecem interessante e de interesse imediato, mas isso diz respeito, claro, a minhas escolhas pessoais, como a discussão acima acerca das tecnologias ligadas ao tempo. Sem esquecer, então, dessas muitas outras, posso indicar resumidamente algumas dessas narrativas. Talvez pudéssemos rever e alterar o papel do narrador e das estratégias de foco narrativo, se nos puséssemos a contar a história de como instrumentos técnicos e modelos científicos lidaram com a incerteza. Teríamos aí um percurso que começa na observação das estrelas, passa pela bússola e chega ao GPS (sem esquecer a influência paradigmática do Princípio da Incerteza de Heisenberg). Podemos ler neles a história de ferramentas que tendem a construir uma exatidão cada vez maior na determinação da posição física de objetos ou pessoas, numa época em que disposições físicas e posições ideológicas tendem cada vez mais a uma efemeridade pragmática. Um outro exemplo: o conceito de verossimilhança, de longa história nas teorias da ficção, teria certamente algo a ganhar se contássemos, através dele, a história dos autômatos. Trata-se aí da tentativa de copiar artificialmente o real, mas que incluiu também monstros míticos como o Golem e criaturas da ficcção literária como Frankenstein. Através deles, vemos como verossimilhança pode rapidamente cair no exagero e no grotesco. E ainda um último exemplo: as técnicas de registros de individualidades, como o sistema de classificação de Lombroso, para seres humanos, ou o sistema Dewey, para publicações, que poderiam ser associados à criação de individualidades no espaço ficcional, mostrando como as histórias também são jogos envolvendo várias subjetividades. Em Todos os Nomes de José Saramago, há uma evidente tematização dessas técnicas e processos, mas ainda gostaria de ver uma leitura crítica desvendar as técnicas de narração do romancista português e mostrar o quanto elas devem a essas tecnologias de catalogação, sem que se tenha que passar obrigatoriamente pelo assunto de seu livro. De toda maneira, o que proponho aqui são apenas algumas incursões. Mas o que interessa, verdadeiramente, é o sentido que quero dar a isso: não apenas o esforço de aprender a técnica e de dominar alguns instrumentos, para enfiar neles a narrativa ficcional, mas também o trabalho de ter primeiramente a narrativa ficcional nas mãos, para contar, através dela, como os literatos vemos ciência e tecnologia, sobretudo nesses anos, como disse acima, de alta saturação técnica.

 

 

<REVISTA TEXTO DIGITAL>

 

 

 



[1] Citado por Paolo Rossi, Os Filósofos e as Máquinas, São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 99.

[2] MURRAY, Janet. Hamlet no Holodeck. O futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: Instituto Itaú Cultural – Editora da Unesp, 2003. A primeira edição no original é de 1997.

[3] MERLEAU-PONTY, Maurice. Phénoménologie de la Perception. Paris: Gallimard, 1989, p. 199.

[4] LEVY, Pierre. A Inteligência Coletiva. Por uma antropologia do cciberespaço, trad. de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Edições Loyola, 1998, p. 14.

[5] BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio de Água, 1991, p. 8.

[6] Como afirma o próprio Baudrillard, ibid.

[7] VIRILIO, Paul. Cybermonde. La politique du pire. Paris: Les Editions Textuel, 1996, p. 74.

[8] CALVINO, Italo. Les Villes Invisibles

[9] Op. cit., p. 79.

[10] VIRILIO, Paul. A Arte do Motor. São Paulo: Estação Liberdade, 1996, p. 62.

[11]  Id., p. 66.

[12] ROSSI, Paolo. Os Filósofos e as Máquinas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 13.

[13] Id., p. 35.

[14] Id., p. 38.

[15] Haja vista a entrega do Prêmio Ig Nobel, que ocorre todo ano. Consulte-se http://www.improb.com/ig/ig-top.html.

[16] Vamos chamá-los assim mesmo, não paga a pena nos metermos em neologias neste momento!

[17] Aquelas que André Jolles, aí sim, explorou através de suas formas simples: legenda, saga, mito, adivinha, ditado, caso, memorável, conto, chiste.

[18] RPG vem de Role-Playing Game; MUD é sigla para Multi-User Dungeon; MOO, para Multi-user dungeon, Object Oriented. São nomes para jogos interativos, baseados em narrativas que vão sendo construídas colaborativamente, a partir de uma base mínima que dá início à produção ficcional. Os dois últimos se dão em meio digital, ao contrário do primeiro.

[19] No caso, não posso deixar de remeter ao curso organizado na internete por Marcos Palácios, da Universidade Federal da Bahia, sobre hipertexto e ficção literária, que continua disponível em www.facom.ufba.br/sala_de_aula/sala2.html, com informações valiosíssimas e ainda atuais.

[20] O uso dessa palavra representa um curioso caso de anacronismo, do mesmo modo do que ocorre quando empregamos o verbo discar para telefones celulares.

[21] Vide La Vie, Mode d’Emploi e W, ou le souvenir dl’enfance.

[22] Deste, penso especialmente em Se una notte d’inverno um viaggiatore.

[23] VIRILIO, Paul. Op. cit., p. 67.

[24] Disponível, entre outros, em www.zap.cl/cuentos/cuento158.html. Acessado em 3 de novembro de 2004.