<REVISTA TEXTO DIGITAL>

ISSN 1807-9288

- ano 4 n.2 2008 –

http://www.textodigital.ufsc.br/


 

A TRAPAÇA E OS TRAPACEIROS: ALGUMAS SUGESTÕES PARA UMA ABORDAGEM RETÓRICA DOS GÊNEROS DO DISCURSO

CHEATING AND CHEATS: SOME SUGGESTIONS FOR A RHETORIC OF GENRES OF DISCOURSE

 

 

Marco Antônio Gutierrez

Mestre em Lingüística

Universidade do Grande Rio

Duque de Caxias, Brasil

magut@ism.com.br

 

 

 

RESUMO: A correspondência indesejada (spam) representa na melhor hipótese um incômodo e, na pior, um risco à segurança e à privacidade dos usuários. No entanto, trata-se de fenômeno típico do uso massivo da Internet e só isso parece-nos suficiente para indicar a necessidade de sua compreensão. O presente artigo aborda uma das categorias mais insidiosas desse tipo de correspondência – as mensagens de Cavalo de Tróia, elaboradas por criminosos com o objetivo de instalar programas maliciosos nos computadores de usuários incautos. Nossa abordagem, porém, será eminentemente retórica, buscando compreender o fenômeno como um jogo argumentativo, como parte de um contexto mais amplo destinado a situar e categorizar gêneros emergentes do discurso em meio digital.

 

PALAVRAS-CHAVE: Retórica; Gêneros digitais; Teoria dos Jogos; Correspondência eletrônica.

 

ABSTRACT: Undesired bulk electronic messages (spam) are at least an annoyance and at most a security and privacy risk. However, it is a typical phenomenon of Internet massive use, and therefore suggests the need of understanding. This article discusses one of the most insidious kinds of correspondence - Trojan horse messages. These are sent by criminals in order to install malicious programs on computers of unaware users. However, our approach is mainly rhetoric. We seek to understand this phenomenon as an argumentative game, as part of the broader context of locating and categorizing emerging genres of discourse within digital environment.

 

Keywords: Rhetoric; Digital genres; Theory of Games; Eletronic mail.

 

 

 

 

AÇÕES COMUNICATIVAS

 

Ora, se um evento comunicativo do tipo que chamamos gênero do discurso tem um propósito (SWALES, 1990), é razoável supor que seu iniciador tenha objetivos tais que possam ser alcançados se aquele for igualmente alcançado. Do mesmo modo, os objetivos dos demais participantes do evento devem ser minimamente consistentes com aquele propósito; caso contrário, as convenções do gênero não serão atendidas e o evento comunicativo não ocorrerá como esperado. Até que ponto essas convenções não precisam ser atendidas e ainda assim sejamos capazes de reconhecer no evento um exemplar do gênero é matéria para discussão. No entanto, é razoável supor que deve haver um limite para a liberdade de escolha dos participantes, limite onde, se transposto, deixamos de reconhecer no evento um exemplar do gênero. Neste caso, dizemos que o evento não foi bem sucedido. Isto significa que para que uma instância de um gênero do discurso seja bem sucedida (isto é, seu propósito seja alcançado em algum grau), seus participantes devem interagir com vistas a objetivos minimamente consistentes entre si.

 

Suponhamos dois interlocutores, A e B. O objetivo de A é convidar B para um evento social qualquer (digamos uma festa). A pode empreender um conjunto bastante amplo de ações com a finalidade de alcançar este objetivo. A primeira delas consiste na escolha do gênero do discurso apropriado a esse objetivo. É possível, por exemplo, escolher o gênero “convite de casamento” ou “convite profissional” ou qualquer outra modalidade de convite. A questão fundamental nessa escolha é obviamente, a consistência entre o propósito do gênero e os objetivos do iniciador do evento comunicativo. A conseqüência dessa primeira ação é, naturalmente, delimitar o conjunto de convenções que poderão ser seguidas pelos participantes – o que do nosso ponto de vista se traduz em determinar o conjunto de ações subseqüentes possíveis de serem tomadas pelos participantes ou, dizendo mais simplesmente, as regras aplicáveis à classe do evento.

 

B, no entanto, não é um interlocutor passivo. Ele pode escolher um curso de ação totalmente imprevisto por A. A, por exemplo, pode escolher o gênero misto “convite íntimo através de conversa telefônica” e B recusar-se a atender à ligação ou simplesmente interrompê-la abruptamente antes do convite ser feito. Portanto, o resultado da interação depende igualmente das escolhas realizadas por B, escolhas que dependem dos seus próprios objetivos.  Evidentemente, o objetivo de B não precisa ser “ir a uma festa” para que o evento do exemplo seja bem sucedido. Em alguns casos, seu objetivo pode mesmo ser contraditório com o de A; quaisquer que sejam os objetivos de B, porém, eles não podem ser de natureza a impedir a ocorrência do evento. Isto significa que os participantes do evento, ainda que possam escolher que ações tomarão, não têm irrestrita liberdade. Em geral, os objetivos de B devem ser minimamente consistentes com o propósito do gênero escolhido por A e suas escolhas, obedecer às restrições do gênero, de modo que suas ações possam contribuir com sua satisfação.

 

A natureza desse tipo de interação comunicativa é bem conhecida dos estudos contemporâneos sobre os gêneros do discurso: ela envolve a construção de artefatos comunicativos. Ora, no contexto do nosso raciocínio, essa construção de artefatos semióticos durante a ocorrência dos eventos comunicativos é interpretada como uma ação tomada por um dos participantes. Portanto, para a presente discussão, uma ação é simplesmente a criação, produção ou seleção de um enunciado (BAKHTIN, 2003) durante a ocorrência de um evento comunicativo dotado de propósito. Uma ação tem uma conseqüência e um enunciado, uma resposta – para nós a equivalência é claramente possível. Mais especificamente, a conseqüência de uma ação comunicativa é um enunciado-resposta, isto é, outra ação comunicativa. Os conceitos de enunciado e ação (comunicativa) apenas se referem a dimensões diversas: a do discurso e a dos portadores das vozes do discurso, respectivamente.

 

Para o presente estágio da nossa discussão, não é relevante se tais enunciados são criados (pela transformação de material não semiótico diretamente em material semiótico), produzidos (pela transformação de material semiótico existente em material novo) ou simplesmente selecionados de um repertório finito. Como não queremos observar o ato em si (de criação, produção ou seleção), mas os eventos ocorridos após esse ato, podemos dizer que, para os nossos propósitos, tudo se passa como se os enunciados fossem selecionados de um conjunto finito – o repertório do gênero. Em outras palavras, admitimos com Bakhtin que “falamos apenas através de determinados gêneros do discurso, isto é, todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estáveis e típicas de construção do todo” (BAKHTIN, 2003: 282). Uma ação comunicativa será vista, portanto, como a seleção de um enunciado cuja conseqüência afeta de algum modo a satisfação dos objetivos do seu enunciador no contexto da satisfação do propósito do gênero onde ocorre. Nesse caso, a eficácia de um enunciado pode ser determinada pelo grau com que sua resposta satisfaz os objetivos do enunciador.

 

Do que dissemos, é fácil concluir que podemos modelar um evento comunicativo como uma árvore de decisão (mais precisamente como uma árvore que  modela decisões mutuamente dependentes de mais de um tomador de decisões, isto é, uma árvore de jogo) que descreve as escolhas dos participantes. Nessa árvore, os nós intermediários recebem na entrada enunciados e produzem na saída escolhas, que conduzem às ações dos participantes (os ramos da árvore). Os nós terminais, as folhas da árvore são apenas enunciados, enquanto que sua raiz é apenas uma escolha. Os vários níveis da árvore representam, no nosso ponto de vista, a alternância dos sujeitos do discurso durante a interação.

 

O raciocínio anterior indica que assumimos que os envolvidos numa instância de um gênero se comportam racionalmente – isto é, eles tomam decisões com base em objetivos bem definidos[1]. Essas decisões envolvem, a cada passo do processo, a escolha de uma determinada ação comunicativa dentre um conjunto de ações possíveis. E se o conjunto de decisões tomadas ao longo da interação é de algum modo coerente com os objetivos postos pelos participantes do evento, é razoável supor que possamos concebê-las como tomadas em obediência a um plano bem definido.

 

Em outras palavras, assumimos que os envolvidos num evento comunicativo dotado de propósito raciocinam estrategicamente. Isto é, na tomada de decisão, eles levam em conta seus conhecimentos e expectativas a propósito dos demais envolvidos, tomando decisões também com base nos planos e estratégias supostamente assumidos pelos demais. Do ponto de vista estritamente discursivo, isto é o mesmo que dizer que todos os enunciados produzidos no interior de um evento comunicativo estão orientados à audiência, ao outro do diálogo (BAKHTIN, 2003). Nesse contexto, dizer que o participante do evento comunicativo raciocina estrategicamente é apenas um modo de interpretar os enunciados do ponto de vista da tomada de decisão de seus enunciadores.

 

Se todos raciocinam estrategicamente, diferentes tomadores de decisão podem, no entanto, tomar decisões diferentes quando submetidos a diferentes eventos no contexto de um mesmo gênero. É isso que faz com que “exemplares ou instâncias dos gêneros variem em sua prototipicidade” (SWALES, 1990: 49). Uma variedade bastante grande de fatores contribui para essas diferenças nos planos e decisões de diferentes tomadores de decisão, desde fatores individuais até fatores sociais e culturais.  Neste momento, é suficiente simplificar o problema e tratar esses diferentes fatores de modo homogêneo. Assim, diremos que o raciocínio estratégico dos participantes dos eventos comunicativos é conduzido com base em preferências bem definidas.

 

Resumindo o enfoque proposto, podemos afirmar que, do ponto de vista dos participantes de um evento, a interação comunicativa do gênero envolve:

i.               objetivos consistentes (ou pelo menos não contraditórios) com o propósito do gênero;

ii.           ações comunicativas escolhidas para alcançar esses objetivos e

iii.      escolhas realizadas com base em planos e preferências bem definidas.

 

JOGOS E GÊNEROS DO DISCURSO

 

Está agora evidente que os parágrafos anteriores procuram justificar a premissa de que podemos modelar o evento comunicativo dos gêneros do discurso como um jogo, tal como descrito originalmente por Von Neumann & Morgenstern (2004). Numa definição didática (OSBORNE & RUBINSTEIN, 1994), um jogo é simplesmente a descrição de uma interação estratégica que inclui restrições para as ações que os jogadores podem tomar (as regras do jogo) e os interesses dos jogadores, aqui entendidos como indivíduos ou grupo de indivíduos que tomam uma decisão com base nas informações disponíveis e em conformidade com suas preferências. A palavra chave aqui é interação: as ações escolhidas pelos tomadores de decisão devem afetar outros tomadores de decisão e ser escolhidas precisamente por isso. Para que essa abordagem seja possível, porém, é necessário ainda que interpretemos a satisfação em qualquer grau dos objetivos postos pelos participantes de um evento comunicativo como o pagamento dos jogadores (os seus ganhos). A primeira vista, trata-se de operação excessivamente arbitrária, no mínimo porque a satisfação de um objetivo no contexto de uma interação comunicativa não parece quantificável e um ganho não é outra coisa senão uma quantidade definida de alguma coisa qualquer. Assim, cabe justificativa.

 

Suponhamos que Lisandro, um rico ateniense, esteja num dilema ético e, para solucioná-lo, contrata três sofistas, Górgias, Polo e Cálicles, prometendo um prêmio adicional para  aquele cuja argumentação convencê-lo de que o erro não existe. Estabelece, porém, uma restrição: mesmo que mais de um argumento seja convincente, pagará somente um único prêmio. Ora, os três sofistas têm o mesmo objetivo: fornecer o melhor argumento para obter o prêmio, convencendo o interlocutor. O objetivo de Lisandro é aplacar sua consciência através dos argumentos fornecidos pelos demais. Digamos que os argumentos de Górgias e Polo sejam suficientes para convencer Lisandro, enquanto que o de Cálicles, não. Ora, o único modo de Lisandro conceder o prêmio é quantificar as conseqüências da sua decisão de escolher entre os argumentos de Górgias e Polo, de tal modo que possa dizer que um argumento é melhor que o outro. Digamos que ele conceda o prêmio a Górgias. Isso significa que o argumento de Górgias satisfez o objetivo de Lisandro em grau maior que o de Polo: aquele argumento produz um ganho maior para Lisandro. Não importa que Lisandro seja incapaz de atribuir um valor preciso ao ganho obtido: basta que seja capaz de determinar qual é o maior.

 

Nosso argumento é que, sempre que os tomadores de decisão avaliam as conseqüências de uma ação, eles quantificam (mesmo que de modo vago e impreciso) seus resultados: este é o único modo disponível para comparar as conseqüências de uma decisão de modo a poder dizer que uma é de algum modo melhor do que outra. Por essa interpretação, dizer que uma decisão é melhor do que outra equivale a afirmar que o resultado de uma delas satisfaz em grau maior os objetivos propostos que o da outra. É isso o que interpretamos pelos ganhos de um tomador de decisão no contexto de interações comunicativas.

 

Se esse modelo para os eventos comunicativos for aceitável, podemos admitir que o comportamento dos seus participantes (agora, os jogadores) seja inteiramente descrito por um conjunto A de ações a partir do qual fazem suas escolhas; um conjunto C de conseqüências possíveis daquelas ações; uma função de conseqüência g: A C que associa cada ação a uma conseqüência e, por fim, uma relação de preferência σ no conjunto C. Assumimos que os tomadores de decisão conhecem todas as alternativas disponíveis; desenvolvem expectativas a propósito de qualquer fator desconhecido; têm preferências claras e escolhem deliberadamente suas ações após algum processo de otimização. Assim, dado um conjunto B A de ações calculáveis em algum caso particular, um tomador de decisões racional escolhe uma ação a* que é calculável (isto é, pertence a B) e ótima no sentido de que g(a*) σ g(a) para todo a B. Esta última proposição significa simplesmente que a escolha g(a*) é preferível a qualquer outra escolha g(a) para o jogador, levando em consideração o estado corrente da informação disponível para ele. Com isto se quer dizer simplesmente que o tomador de decisão efetua uma escolha que resulta no maior ganho possível, isto é, ele resolve o problema maxa B U(g(a)).

 

É evidente que aquelas premissas não correspondem à realidade em todos os seus casos: os jogadores reais não conhecem sempre todas as alternativas disponíveis, nem sempre têm preferências claras, etc. Em outras palavras, os jogadores reais erram, decidem com base em informações incorretas e costumam escolher planos e estratégias que não necessariamente maximizam seus resultados. Isso é o mesmo que dizer que os jogadores reais não são tomadores de decisão racionais ou simplesmente que nem sempre tomam decisões racionais. Isto não importa realmente: basta que definamos que uma decisão racional é aquela que resulta no maior ganho possível em face da informação disponível. Isso nos permitirá avaliar as decisões tomadas pelos jogadores reais durante as partidas. Em outras palavras, estamos interessados nos jogos e não nas partidas; estas nos importam somente como um meio de avaliarmos os modelos propostos para os jogos. No caso que nos interessa, isto é, os gêneros do discurso, a distância entre jogo e partida pode ser conceitualmente equivalente à estabelecida entre gênero e instância.

 

A questão que precisa ser resolvida consiste no fato de que, para a Lingüística, mais especialmente para a(s) Análise(s) do Discurso, as partidas (as instâncias dos gêneros) são muito importantes – em algumas abordagens são mesmo os únicos objetos de estudo possíveis. Nosso interesse não é a matemática, mas a linguagem em uso. A Teoria dos Jogos nos interessa mais como um modelo teórico segundo o qual podemos formular hipóteses sobre as interações comunicativas e menos como uma teoria matemática em si e por si. Trata-se de utilizá-la como uma ferramenta de modelagem, um artifício de compreensão destinado a “descobrir” e interpretar fenômenos interessantes na linguagem em uso. Nosso interesse de fato é a Retórica, que pretendemos abordar menos do ângulo dos argumentos e mais do ângulo da argumentação. A noção de jogo entra aqui como um modelo teórico (e, portanto, arbitrário e possivelmente descartável) para a compreensão do comportamento dos argumentadores, cujas decisões conduzem às ações que produzem aqueles argumentos.

 

No caso, o que pretendemos obter é um ferramental conceitual para abordar as várias famílias de interações comunicativas do ângulo das estratégias que podem ser utilizadas pelos argumentadores. De modo simplificado, entendemos uma estratégia como um movimento admitido pelas regras do jogo num dado momento em atendimento ao estado corrente da informação. Note-se que o que chamamos o estado da informação se refere ao conhecimento do jogador num momento determinado a propósito dos valores das diferentes variáveis que afetam o jogo. Mais especificamente, o interesse consiste em determinar as estratégias de equilíbrio das diversas famílias de interações, isto é, as “estratégias que podem ser escolhidas pelos jogadores de modo a maximizar seus resultados individuais” (RASMUNSEN, 2000, p.39).

 

Ora, se admitirmos que a noção de jogo é aplicável à teoria dos gêneros, teremos disponível um modelo para a previsão e interpretação do comportamento dos participantes de um evento comunicativo que pode ser aplicado a eventos reais. Nosso argumento consiste em afirmar que esse modelo é inteiramente admissível mesmo no contexto das teorias dos gêneros de Swales e Bakhtin, embora partindo de premissas filosóficas distintas. Isso, porém, não basta para justificar sua utilização. Uma boa teoria nos permite formular perguntas novas (e interessantes) e um bom modelo nos fornece respostas satisfatórias a essas perguntas.

 

JOGOS DE SOMA-ZERO[2]

 

Se este modelo interpretativo é aceitável, ele deve nos fornecer meios para descobrir (ou pelo menos salientar) gêneros discursivos emergentes não identificados por outras abordagens. Pensamos sobretudo no inventário (de cunho estrutural) apresentado por Marcuschi (2004) em abordagem pioneira no Brasil sobre os gêneros digitais. Naquele texto, o pesquisador cataloga apenas três gêneros distintos na correspondência eletrônica: o e-mail, o e-mail educacional e a lista de discussão. Coloquemos o problema não do ponto de vista das características estruturais, como o pesquisador, mas do ponto de vista das interações estratégicas ocorrentes e indaguemos a existência de “jogos de soma-zero” nas interações discursivas. A correspondência eletrônica nos fornece bons exemplos desse tipo de interação. Pensamos especialmente nas mensagens de e-mail portadoras de “cavalos de Tróia”[3] que circulam na Internet. O objetivo dessas mensagens (e, portanto, o propósito do gênero) é convencer o destinatário a clicar em links que apontam para programas maliciosos, de modo a instalá-los, com isso permitindo escravizar a máquina do destinatário ou simplesmente roubar informações confidenciais. Como a satisfação desse objetivo do remetente é feita a expensas do destinatário, podemos interpretar essa classe de eventos como um jogo de soma-zero. Para alcançar seus objetivos, as escolhas do locutor devem construir argumentos que convençam o interlocutor a clicar no link malicioso.

 

É evidente que se o objetivo do locutor for conhecido ele não será alcançado, salvo se o interlocutor tiver estabelecido para si objetivos suicidas. Pelas nossas premissas isto não é possível, já que os jogadores sempre buscam o melhor resultado possível. Assim, para que os objetivos do locutor sejam alcançados, o interlocutor não pode saber que está participando de um gênero “cavalo de Tróia”. Do mesmo modo, se o conteúdo do link for conhecido pelo interlocutor (isto é, se ele souber interpretar o significado do enunciado malicioso), o objetivo do locutor também não será satisfeito. Isto significa que o interlocutor não pode ser capaz de inferir, sendo dados somente os enunciados do locutor, as escolhas que resultaram na mensagem recebida. Isso é o mesmo que afirmar que a interação do “cavalo de Tróia” não pode ser um “jogo de informação perfeita”[4].

 

A satisfação dessas condições requer estratégias que sinalizem para o destinatário um estado da informação distinto dos valores efetivamente assumidos. Isto é, o destinatário não pode ser capaz de dizer em que nível da árvore do jogo ele se encontra, sabendo apenas que é a sua vez de jogar. A melhor solução para o problema é apresentar um outro objetivo para a correspondência, selecionando enunciados consistentes com este objetivo e não o verdadeiro. A condição para esses enunciados deve ser tal que o interlocutor não seja capaz de inferir o estado da informação (as jogadas anteriores, isto é, as escolhas do locutor). Tais condições indicam que o cavalo de Tróia deve ser um gênero de interação discursiva onde o propósito (oculto) para o locutor é distinto do propósito (manifesto) para o interlocutor.

 

Essa estratégia, contudo, não é suficiente para maximizar os resultados. O problema do locutor nessa interação é que qualquer curso de ação adotado pelo interlocutor é ganhador, exceto um – clicar no link. Trata-se, evidentemente, de enorme desvantagem para o jogador. Isto significa que, qualquer que seja a estratégia adotada, ela deve reduzir a quantidade de escolhas à disposição do interlocutor. Isso diminui a probabilidade dele escolher a estratégia vencedora. Idealmente, a estratégia dos enunciados do locutor deveria ser tal que a única escolha disponível para o interlocutor fosse clicar no link malicioso.

 

Para o destinatário da mensagem, a solução mais simples (jamais clicar num link enviado num e-mail, a sugestão dos especialistas em segurança dos computadores) não é satisfatória do seu ponto de vista: como ele não sabe a priori que a interação corrente é um cavalo de Tróia, recusar links pode simplesmente não corresponder a seus interesses e objetivos, às suas preferências. Em outras palavras, qualquer curso de ação que não aceite um link maximiza os resultados numa interação de cavalo de Tróia, mas não necessariamente em outras interações! Isso ficará claro se imaginarmos uma outra interação de correio eletrônico onde clicar num link sugerido seja do interesse do destinatário. Suponhamos que participo de uma lista de discussão sobre Teoria dos Jogos e recebo mensagem informando que acaba de ser publicado na Internet um artigo até então inédito de John Nash. Um jogador avesso a riscos não clicará no link, ainda que esteja profundamente interessado na matéria: como ele não é capaz de observar as escolhas precedentes do remetente, como ele tem disponível somente o resultado final dessas escolhas, não tem como avaliar com certeza os resultados de sua escolha. O problema é que o resultado da escolha “não clicar no link” só é um ganho para ele numa interação de Cavalo de Tróia. Se, ao contrário, tratar-se de uma interação do tipo “informar o destinatário sobre assunto de seu interesse”, essa mesma escolha resulta em perda, não sendo, portanto, a estratégia de equilíbrio.

 

Portanto, a melhor solução para o destinatário é obter informações sobre o estado corrente do jogo, procurando inferir da jogada corrente as escolhas precedentes. Assim, a estratégia adotada pelo destinatário deve buscar invalidar as condições de êxito inicialmente apontadas para o remetente: seu curso de ação deve conduzir a investigar o estado da informação da interação, de modo a determinar o seu propósito. Em outras palavras, seus enunciados, suas respostas devem ser de tal ordem que os valores das variáveis que afetam o jogo se tornem conhecidos.

 

Alguns exemplos tornarão concreta essa discussão. Um modo de reduzir as escolhas disponíveis para um interlocutor é a ameaça. Num jogo como o xadrez, uma ameaça aparece geralmente na forma de um lance que coloca em risco uma peça do adversário sem que este possa obter uma compensação adequada. Com isto, ele se vê na contingência de defender a peça ameaçada, tendo reduzidas assim suas escolhas disponíveis. O problema numa interação comunicativa é que a ameaça só é crível se for feita por um enunciador que fala de uma posição de poder: qual a credibilidade de uma ameaça feita por um desconhecido num mundo estritamente virtual como a Internet? Isso significa que os enunciados do locutor devem indicar um enunciador que fala de uma posição de poder. Isto é, ele deve personificar uma identidade tal que torne a ameaça plausível.

 

Na Figura 1 temos uma interação típica de cavalo de Tróia. Ali a ameaça é o gasto com uma compra que, naturalmente, o destinatário não fez. Para que essa ameaça tenha credibilidade, o locutor se faz passar pela companhia aérea: do nome de exibição do endereço de e-mail ao telefone do serviço de atendimento, passando pela imagem do site Internet da companhia, a composição geral da mensagem exibe características de “autenticidade” suficientes para indicar o remetente da mensagem, pelo menos para quem jamais tenha comprado uma passagem aérea da Gol. As alternativas do interlocutor se reduzem agora a apenas duas: ignorar a ameaça ou combatê-la. Com isso, a árvore de decisão da interação se reduziu drasticamente, tal como esperado.

 


Figura 1: A ameaça da Gol...

 

O enunciado malicioso é oferecido como opção para combater a ameaça ainda dentro da interação. Este enunciado incorpora mais um argumento, expresso no advérbio. Ele existe porque, mesmo tomando a decisão de combater a ameaça, o interlocutor, no passo seguinte, pode ainda decidir combatê-la mais tarde (digamos, ligando para o SAC da Gol), encerrando a interação. Assim, o locutor informa que a compra pode ser desfeita de imediato, bastando um simples e rápido clique do mouse.

 

A credibilidade da ameaça é estritamente discursiva: são os elementos da composição dos enunciados que a garantem (ou não). Como vimos, essa composição se resume a “autenticar” a origem da mensagem através de um conjunto de sinais (sentenças, fragmentos de texto e imagens) que compõem um único enunciado: “eu sou a Gol Linhas Aéreas Inteligentes”. Se a resposta do interlocutor a este enunciado for algo como “acredito que você seja a Gol”, isto é, se ele decidir aceitar a identidade manifesta do remetente, então a ameaça subseqüente, os fragmentos de sentenças que compõem o enunciado “você comprou uma passagem aérea”, passa a ser plausível. Se a ameaça for aceita, a resposta desejada ao enunciado “afaste rapidamente a ameaça” (clicar no link malicioso) é uma decisão “natural”.

 

A questão aqui é que a estratégia adotada pelo locutor só é vencedora se o conhecimento de mundo do interlocutor, particularmente aquele que se refere ao meio em que se encontra, a Internet tal como utilizada pelos agentes sociais, for insuficiente. Isto é, se o interlocutor não escolher a estratégia sugerida de investigar o estado da informação. Se admitirmos que esse conhecimento de mundo faz parte do discurso (ou pelo menos da interação comunicativa), então os enunciados do locutor não satisfazem à condição estabelecida para o estado da informação. Como dissemos, o interlocutor não pode ser capaz de inferir, dado somente o enunciado do locutor (isto é, nos domínios do jogo), que escolhas antecedentes resultaram na mensagem recebida. Ora, um pouco de experiência na Internet é suficiente para tornar suspeito o endereço de e-mail do remetente: normalmente, as grandes empresas registram domínios próprios (no caso, voegol.com.br, domínio, aliás, indicado na mensagem). Esse conhecimento é inconsistente com o domínio do remetente (web8.zone53.net).

 

Outro conhecimento de mundo, este de natureza tecnológica e, por isso mesmo, menos difundido na comunidade de usuários, é suficiente para invalidar a estratégia do locutor. Dissemos que o significado do enunciado malicioso não pode ser corretamente interpretado pelo interlocutor. Ora, o significado de um link é sempre polissêmico: ele é sempre dado pelo significado da expressão sígnica (em linguagem natural ou imagem) e pelo endereço Internet (URL – Uniform Resource Locator) para onde aponta. E este último significado é invariavelmente sinalizado pelos aplicativos de correio eletrônico e pelos navegadores utilizados na leitura das mensagens (web mail). Este sinal é obtido simplesmente fazendo flutuar o ponteiro do mouse sobre o link, sem pressionar os botões de clique. No caso do exemplo, o link aponta para o endereço http://roots.footprints.org.nz/backend/dat/GOL/passagem.html. Novamente este endereço é inconsistente com o pretenso “autor” da mensagem: ele aponta para um domínio na Nova Zelândia e não para o esperado voegol.com.br.

 

Uma estratégia distinta de redução das escolhas disponíveis para o interlocutor pode ser observada da Figura 2. Trata-se de uma “armadilha do mel”, isto é, uma estratégia que visa estabelecer um propósito manifesto para a interação consistente com objetivos e preferências possivelmente assumidos pelo interlocutor. Neste caso, o locutor constrói um conjunto de enunciados que procura oferecer uma única escolha em conformidade com as preferências do interlocutor, escolha tal que possa satisfazer seus objetivos. Aqui o principal argumento é o enunciado constituído pela imagem da modelo; o texto da mensagem procura apenas conferir verossimilhança às fotos.

 


Figura 2: A armadilha de Gabriela Monteiro

 

Note-se que a identidade do remetente é indiferente ao argumento: qualquer identidade falsa deve ser satisfatória, já que a origem da mensagem não aumenta a sedução do argumento. Na verdade, as fotos da modelo são “autenticadas” por si mesmas. O destaque dado à foto, em tamanho bem superior ao texto da mensagem, assegura que ela seja recebida primeiro pelo interlocutor. Sob esse aspecto, este enunciado se apresenta como o tema da mensagem. No entanto, ela se dispõe à direita do fragmento de texto, o que lhe confere igualmente, em leitura completa, caráter de rema, pelas convenções de escrita e leitura ocidentais. Sob este último aspecto, este sinal se apresenta como “argumento” de um outro enunciado – o anúncio do ensaio fotográfico, agora apresentado como tema da mensagem e expresso no fragmento de texto. Isso quer dizer que a mesma imagem participa de dois enunciados distintos, desempenhando funções diversas em cada caso.

 

Na verdade, a mensagem incorpora três enunciados. O primeiro é dado, como vimos, pela foto da modelo, disposta de tal modo que é sempre recebida primeiro. Sua função é selecionar, dentre todos os destinatários possíveis da mensagem (o e-mail é um caso de spam), aqueles que se tornarão os interlocutores da interação. E isto é feito fixando um tema para mensagem – modelos fotográficos expostos como vieram ao mundo. A estratégia empregada é, portanto, de redução das escolhas disponíveis: ao interlocutor só resta aceitar ou recusar esse tópico para a conversação e, com ele, a interação. Caso suas preferências coincidam com o tema da mensagem, o propósito manifesto do gênero coincide com seus objetivos, e a escolha de continuidade da interação pode, então, ser feita.

 

O segundo enunciado é composto de duas proposições: a que anuncia o ensaio fotográfico (os elementos textuais) e a que “corrobora” o anúncio (novamente a foto da modelo). Ainda uma vez, a estratégia adotada visa reduzir as escolhas do interlocutor: o argumento pode apenas ser aceito ou recusado. E, finalmente, se a escolha do destinatário for aceitar o argumento, o último enunciado (os fragmentos com o link malicioso) passa a funcionar como “decorrência” quase-lógica daquela decisão. É interessante observar que este último enunciado continua a “argumentar” com o interlocutor: a foto temática é novamente reproduzida, em escala menor, como “comprovação” da autenticidade do ensaio.

 

Aqui o estado da informação é melhor obliterado que no exemplo da Figura 1. Como a origem da mensagem e irrelevante para a argumentação, ela nada informa sobre o propósito oculto da interação. Apenas a natureza dual do link no hipertexto e a tecnologia de transparência empregada nos aplicativos de correio eletrônico deixar “vazar” a informação sobre o propósito oculto da mensagem. No caso, o link aponta para o endereço http://webeye. to/wgi_htdocs/kor/distribute/data/ensaio.scr, que é um programa executável localizado em servidor sediado, naturalmente, em país bem distante.

 

O que fizemos foi simplesmente sugerir alguns caminhos para a pesquisa sobre os gêneros do discurso abertos pelo emprego da noção de jogo. Ela nos permitiu, numa primeira aproximação, salientar um gênero digital emergente, descrever suas características interacionais e possivelmente explicar o comportamento dos envolvidos. Isso, porém, está longe de ser convincente. Se a abordagem proposta é produtiva, devemos ser capazes de inventariar diferentes famílias de interações de gênero, descrevendo sistematicamente suas soluções estratégicas. Idealmente, as interpretações obtidas pelas sugestões da teoria não devem poder ser obtidos pelas abordagens clássicas do problema; caso contrário, não teremos justificado seu emprego. No entanto, os resultados obtidos por uma abordagem preliminar, sumarizados aqui, nos encorajam a prosseguir nessa direção, na expectativa de agregar alguns modestos conhecimentos às pesquisas retóricas.

 

Referências

 

BAKHTIN, M.. Estética da criação verbal. Tradução do russo de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

 

MARCUSCHI, L.A.; XAVIER, A.C. Hipertexto e gêneros digitais: novas formas de construção do sentido. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.

 

OSBORNE, M.J.; RUBINSTEIN, A. A course in game theory. Cambridge: MIT Press, 2004.

 

RASMUNSEN, E. Games and information. An introduction to game theory. 3. ed. Indiana: Blackwell Publishers, 2000.

 

SWALES, J. M. Genre analysis: English in academic and research settings. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.

 

VON NEUMANN, J; MORGENSTERN, O. Theory of games and economic behavior. 60th-anniversary ed. Princeton: Princeton University Press, 2004.

  

 

 

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[1]     É relevante ressaltar que por comportamento racional entendemos tão somente a tomada de decisão com base em objetivos bem definidos e mais nada, sobretudo sem as implicações filosóficas do racionalismo. Nesse sentido, uma leoa na caça tem um comportamento racional, independente do fato de tal comportamento ser adquirido ou instintivo.

[2]     Um jogo de soma-zero é aquele onde a soma de todos os pagamentos é igual a zero, o que significa que um jogador só pode ganhar o que for perdido pelo(s)  outro(s) jogador(es). O pôquer é o clássico mais estudado.

[3]     No mundo da computação, um cavalo de Tróia é um software malicioso projetado para enganar o usuário de modo que este pense que se trata de software benigno. Tal como o equivalente grego que serviu de analogia, um cavalo de Tróia é incorporado ao computador por decisões deliberadas de usuários iludidos.

[4]     Num jogo de informação perfeita, como o xadrez, por exemplo, todos “os kk jogadores que fazem um movimento (pessoal) [por oposição a um movimento ao acaso (chance move) realizado por um dispositivo e não por um jogador] Mk estão informados sobre o resultado das escolhas de todos os M1, ..., Mk-1 movimentos anteriores” (VON NEUMANN & MORGENSTERN, 2004: 51).