<REVISTA TEXTO DIGITAL>

ISSN 1807-9288

- ano 4 n.2 2008 –

http://www.textodigital.ufsc.br/


 

ANOTAÇÕES CRÍTICAS A DUAS PROPOSTAS RECENTES DE TEORIAS ESTÉTICAS

 

 CRITICAL NOTES ON TWO RECENT AESTHETICAL THEORY PROPOSITIONS 

 

Enrique V. Nuesch

Mestre em Literatura

Universidade Federal de Santa Catarina

Florianópolis, Brasil

enrique_nuesch@yahoo.com.br

 

 

 

RESUMO: O artigo examina e critica, de um ponto de vista conservador, alguns passos argumentativos de duas propostas de Estética Digital (Marchand, 2005 e Gianetti, 2006).

 

PALAVRAS-CHAVE: Estética digital – crítica; Filosofia da arte; Conceitos tradicionais.

 

 

ABSTRACT: The paper examines and criticizes from a conservative point of view some argumentative steps of two recent propositions of Digital Aesthetical Theories (Marchand, 2005 e Gianetti, 2006).

 

Keywords: Digital Aesthetics – criticism; Philosophy of Art; Traditional concepts.

 

 

 

Ao amigo Jessé, que há de estar em culto colóquio com Sto. Ambrósio.

 

 

 

 

Introdução

 

A dilatação de nossas próprias experiências de mundo talvez nos ajude a compreender melhor a importância e as conseqüências de nossas ações sobre nosso meio, e a assumir, com modéstia e tolerância, nosso papel na construção de “realidades” sociais. (Gianetti, 2006, p. 201)

 

 

Poder-se-ia dizer que a emergência de um tipo de obra de arte funda uma nova humanidade? Fundando-a, no fato de trazer à sua experiência percepções e sensações –afecções– que, até o surgimento de tal tipo de obra de arte, eram inauditos, inacessíveis à sensibilidade humana, apenas imagináveis, mas não sensíveis e, por tanto, sem ser fonte de verdadeira experiência? Pode-se confiar em tal julgamento? Ora, se tal pergunta fosse respondida positivamente, afirmaríamos, sem dúvida, que essa abertura de um novo horizonte da sensação é um feito notável das artes nas últimas décadas. Um fato admirável como foi o acesso dos cientistas, por via do desenvolvimento tecnológico, a observação da efetivação de algumas teorias. A “era nuclear” tem seu caminho aberto, por exemplo, pela a capacidade de dominar a fissão de átomos, ou seja, de realizar experimentos segundo a aplicação da teoria atômica. Abriu-se então um outro horizonte de manipulação humana (eis a técnica heideggeriana, que a tudo calcula), o nível atômico da natureza tornou-se campo de ação do fazer humano, o fazer científico. Muito decorreu desde então e a humanidade soube-se passível de auto-aniquilação, acessou a uma nova consciência de si após testemunhar e experimentar atrozmente os eventos possibilitados pela manipulação do núcleo dos átomos.

 

Se àquela pergunta se respondesse positivamente, a arte, pela obra dos artistas, abriria também, pois, um novo campo da ação humana e da experiência humana, uma nova consciência do sensível, ou seja, fonte de um novo tipo de percepção, uma nova sensibilidade a ser estimulada por meio de um dado tipo de obra de arte. Bastar-lhe-ia, logo, apenas a propagação para tornar-se, para a humanidade, uma nova consciência de si (enquanto ser sensível)... porém, a arte não se propaga como a radioatividade. Ainda assim, ao que nos indica a citação acima, esse novo horizonte de percepção, essa nova fonte de experiência, existe e, se seguirmos certos esforços teóricos que tratam de atestá-lo, encontramos, entre as suas premissas, postulados afirmando ser necessário abandonar os modos de explicação da arte cunhados até o advento desse tipo de obra. Abandoná-los, porque não são mais operacionais para referir-se às percepções, às sensações, enfim, às experiências decorrentes desse advento. Segundo o que afirmam tais posições teóricas, o tipo de obra de arte que torna possível esse advento é a obra de arte digital, ou seja, um produto do fazer humano pelo emprego de tecnologia digital. Mas tal produto, diz-se, é arte, arte digital, ou seja, não um mero produto utilitário, como um software de balanços bancários ou um simulador de vôo, mas sim arte. Esta distinção é essencial, pois, se tal obra de arte se produz pelo emprego de tecnologia digital, então ela necessariamente deve ter algo a mais que os objetos produzidos nesse meio e segundo as suas possibilidades. Daí que a obra de arte digital é o que efetivamente possibilita a abertura deste suposto novo horizonte de percepção, de experiência, pois, para que esta se dê, não basta apenas a existência da tecnologia digital, mas há que empregá-la de tal e tal modo. Ora, é justamente nessa distinção essencial que vemos falhar os mencionados esforços teóricos, pois, como dissemos, entre as suas premissas estão postulados que encorajam a abandonar certos conceitos tradicionais da estética e da filosofia da arte, dentre eles, por exemplo, essência. Se, por um lado advertem a respeito do improdutiva que pode ser a tecnofilia (a identificação digital = artístico), por outro, eliminam todos os meios de evitá-la quando sugerem o abandono de categorias e conceitos, que, a nosso ver, são imprescindíveis para referir-se a qualquer objeto da experiência e, assim, a qualquer objeto que possa vir a ser determinado como artístico.

 

Nosso intuito neste ensaio é examinar criticamente estas posições teóricas e, neste exame, demonstrar como conceitos aristotélicos e fenomenológicos não podem ser descartados –e não o são, de fato, ainda que se afirme o contrário– ao referir-se àquilo que os teóricos em questão descrevem como arte digital. Procederemos ao exame de alguns argumentos e propostas colocados por dois discursos teóricos, que afirmam categoricamente o necessário abandono de toda posição ontológica e fenomenológica, em virtude de certas características da arte digital. Em nosso arrazoado haveremos de dar atenção, pois, ao modo como tais discursos propõem o premente descarte de conceitos aristotélicos e fenomenológicos, ao modo como tratam de justificar as suas próprias posições e ao modo como exemplificam as concreções das suas posições, ou seja, como descrevem as obras de arte digital que são abordadas em suas argumentações a modo de exemplos.

 

§1. A obra “desmaterializada”

 

A primeira posição teórica a que nos referiremos é a exposta por Marchand (2005, p. 29-52) na conferência “Entre el retorno de lo real y la inmersión en lo virtual”. Atentaremos à sua definição de obra de arte digital e a como e por que são ditos inócuos para a sua abordagem conceitos como sujeito, objeto, essência e atributo ou predicado.

 

Ora, o primeiramente constatamos é que não há em qualquer momento da argumentação de Marchand um intento de definição mais preciso do que seria a obra de arte digital. Isto é muito significativo e não deve ser, de forma alguma, atribuído a qualquer tipo de lapso. Deve-se mais precisamente ao fato de que não definir o objeto a que se refere é, com efeito, um dos modos como se estrutura a argumentação em função das vertentes teóricas que segue. Assim, se alinhamos agora dois termos empregados no texto, em passos ora assertivos, ora assertivo-interrogativos, uma certa linha de pensamento pode ser claramente determinada: “rizomático” (p.46), “inversión del platonismo” (p.52). Para quem acompanha os debates acadêmicos –não é necessário ir longe no tempo– dos últimos dez anos, é evidente que tais termos congregam-se, de forma geral, sob a égide da morte do sujeito. Não poderíamos historiar e esmiuçar semelhante óbito aqui –coisa, ademais, já feita em um número acachapante de trabalhos nos últimos vinte anos–, mas apenas nos atemos a estes conceitos dele derivados que se fazem valer como operatórios na argumentação que ora colocamos em questão.

 

Ora, na acepção “rizomática” de dita morte, o sujeito falece, entre outros motivos, porque se dá por fato consumado a sua indistinção em relação ao objeto. E esta indistinção infere-se de uma descrição do mundo em que há uma total intersecção, ligamento ou conexão entre tudo[1]. Desaparece assim a mínima autonomia de um sujeito independente perante um objeto. E assim, pela constituição mútua e intestina entre as duas realidades em relação, torna-se sem sentido manter noções como sujeito e objeto. Assim, decreta-se retroativamente que tudo o que se acreditou ser ao longo de milênios de existência da espécie humana até os dias de hoje a sua posição subjetiva diante de objetos que lhe seriam autônomos –e vice-versa[2]– nunca passou de uma projeção e constituição mútua entre sujeito e objeto, ou seja, essa distinção jamais se deu efetivamente em toda a existência da humanidade: não há e nunca houve sujeito e objeto. Já desponta aqui um motivo pelo qual Marchand não procede a uma definição da obra de arte digital: definições se fazem pela consideração ou observação de objetos, de entes dos quais se predicam atributos; mas não há objeto –veremos que não há mais ente– sobre o qual predicar e, portanto, não pode haver definição[3]. Mas deixemos por enquanto o rizoma para abordar o outro termo acima destacado: inversão do platonismo.

 

Como via de escape a uma determinada “falácia da igualação” atribuída aos Estudos Culturais, Marchand propõe, como opção teórica de uma “estética do futuro” destinada a lidar com o que as artes digitais propõem enquanto experiência perceptiva, seguir a idéia da inversão do platonismo, qual seja –nas palavras do postulador desta expressão na acepção admitidamente subscrita por Marchand (p. 44 e 52 )–, “fazer subir os simulacros, afirmar seus direitos entre os ícones ou as cópias” (Deleuze, 2003, p. 267). Ou seja, superar a dialética entre real e virtual pela via do simulacro, pois só assim seria possível posicionar-se diante da síntese propiciada pela arte digital entre real e virtual. Ora, qual é o sentido desta opção teórica pela emergência do simulacro? Evidentemente, isto só se elucida pelo entendimento do que significa este termo na acepção em que o autor a adotou. Este termo provém das leituras feitas por Deleuze dos textos de Platão, principalmente do Sofista e A república. Às cópias ou imitações que se produzem segundo a Idéia opõem-se os simulacros. Se há uma relação noética entre a Idéia e a produção que a imita, no caso do simulacro esta não existe; não obstante, ambas mantêm uma semelhança com a Idéia: a cópia, uma relação noética, ideal e, portanto, direta; o simulacro uma relação indireta, exterior ao imitar as cópias. Ora, é daí que provém toda a potência do simulacro, haja vista que se passa por uma imitação, enquanto que não o é: sendo que o mundo da experiência seria –no sentido platônico em que se situa a discussão– feito de cópias dos arquétipos ou idéias, o simulacro é uma cópia que não os imita e, não obstante, se apresenta no mundo da experiência como se assim o fizesse, confundindo os homens. Como aponta Deleuze –e pode ser seguido perfeitamente no texto platônico– no fim do Sofista, a descrição do filósofo e do sofista é a mesma, sendo que o primeiro baseia as suas afirmações em verdadeiras contemplações das idéias, enquanto que o segundo não o faz, e tal semelhança entre as características dos dois faz com que os seus discursos alcancem os mesmos efeitos entre os seus ouvintes: o convencimento. O simulacro tem, assim, a potência de impor-se como uma realidade sem ter qualquer relação com o fundamento ontológico dos entes reais.

 

O sentido dessa subscrição ao simulacro por parte de Marchand, pois, é o do desaparecimento das bases ontológicas do objeto, neste caso, da obra de arte. Isto não ajuda em nada a encontrar uma via de escape da mencionada “falácia da igualação” por ele atribuída aos Estudos Culturais, visto que, como bem colocará o autor adiante, a arte digital baseia o seu fazer, acima de tudo, em determinadas bases tecnológicas, e a dita “falácia” se dá a posteriori, na avaliação dos produtos, sejam estes produzidos no meio digital ou não. O que nos importa apontar aqui é, de fato, esse desaparecimento das bases ontológicas do objeto, pois é nele que se concentra todo o peso do argumento de Marchand sobre a “desmaterialização” da obra e onde se encontra o fundamento da sua “estética do futuro”, que postula, assim, também, uma teoria da percepção.

 

Devemos agora juntar os dois conceitos empregados por Marchand na sua teorização da obra de arte digital que descrevemos separadamente: rizoma e simulacro (ou “inversão do platonismo”). Do primeiro, decorre que não há constituição de um objeto na experiência provinda da percepção de uma obra de arte digital; do segundo, decorre que o experimentado nessa percepção não possui qualquer base ontológica –por isso não há objeto–. Levando em conta esses dois conceitos, pode-se entender então o que a nosso ver é a tese principal exposta pelo autor:

 

En la obra de arte digital cualquier reflexión sobre su identidad ontológica es deudora, por consiguiente, de las consideraciones fenomenológicas respecto a las presencias alteradas y cambiantes de su mismo aparecer. Si las obras tradicional y moderna se adscriben a las categorías del hardware, propias de una estética de la producción, las que cultivan la apariencia digital se inscriben en el software, que entra de lleno en la estética de la circulación, acelerada ahora por la velocidad de la información electrónica. Los impulsos heraclitianos de la procesualidad y de la permutabilidad culminan en unas obras flotantes, que, en vez de integrarse en el sistema de los objetos, adentran nuestra visión e imaginación en el de unos signos que no son percibidos linealmente sino que, a la manera del laberinto rizomático, se desparraman y se entrelazan como una red, como un condensado no jerarquizado de coexistencias. Unas obras flotantes que no solamente escoran hacia la desmaterialización, sino a una implosión de las constantes espacio-temporales, a una desrealización que no consiente una visión holística. Incluso bordean su propia disolución encaminándose hacia la desaparición (Marchand, 2005, p. 46-7).

 

Entenda-se: não há mais objeto, porque este desaparece no seu esparramar-se rizomático, dissolvendo-se de tal forma que, sem uma hierarquização dos constituintes da obra enquanto objeto de percepção (os signos), não há mais percepção de um objeto. Há, sim, uma experiência de fuga dos elementos percebidos, sem qualquer possibilidade de sua síntese num algo identificável, num substrato passível de ser objeto de predicação, ou seja, sem possibilidade de haver um todo (“visión holística”) predicável.

 

Uma estranha concepção de obra de arte, ainda que digital, pois ao mesmo tempo em que afirma a sua efetiva existência, em que se trata de dar-lhe um lugar na experiência humana, não obstante, elimina-se toda possibilidade de torná-la objeto ou substância de uma predicação qualquer. Isto trata de se justificar através de uma divisão entre obras de hardware e obras de software, sendo as primeiras aquelas que persistem na existência –enquanto objetos físicos, “transcendentes” na terminologia de Husserl– mesmo após a sua experimentação pelo sujeito receptor, e sendo as segundas aquelas que supostamente “desaparecem” ou se “desmaterializam” em função da volatividade característica dos objetos que se constituem pela programação telemática, baseados em códigos facilmente modificáveis.

 

Ora, vemos nisto um engano, mas que, na lógica interna da argumentação de Marchand, faz sentido. Ao se aceitar uma concepção rizomática da relação sujeito-objeto, e ao se aceitar igualmente a lógica do simulacro como modo de produção dos objetos da experiência, é natural que daí se deduza a total incapacidade de um sujeito consciente para reter na sua memória um objeto qualquer da experiência. É a própria noção de intencionalidade que se está destruindo neste ponto. Vale reiterar: “en la obra digital qualquier reflexión sobre su identidad ontológica es deudora, por consiguiente, de las consideraciones fenomenológicas respecto a las presencias alteradas y cambiantes de su mismo aparecer”. Perguntamo-nos se mesmo a reflexão de Marchand, o seu intento de delinear a obra de arte digital sem a definir, sem tratá-la como um objeto não é, ao fim e ao cabo, devedora em alto grau de considerações fenomenológicas e, porque não, mesmo ontológicas, ou seja, do próprio tipo de reflexão que a sua argumentação trata de evitar.

 

Permitir-nos-emos aqui lançar mão de alguns termos da fenomenologia de Husserl sem passar pela sua explicação, supondo-os de conhecimento geral no campo da estética e da filosofia da arte num tempo em que já se passaram tantos anos desde a publicação e tradução das suas Ideen e também da publicação dos trabalhos de Ingarden –sendo o mais destacado o seu Das literarische Kunstwerk, mas também o não menos importante Phenomenological Aesthetics[4].

 

Ora, queira Marchand ou não, todo o esparramamento rizomático e a simulação daquilo que ele chama obra de arte digital –da qual ele ainda descreve os modos de percepção, ou seja, o como da sua recepção– são construtos e categorizações a posteriori, predicados de um objeto de percepção que necessitou de investigação para ser predicado em tais termos. Em termos husserlianos, antes de mais nada é um objeto que se doa a uma intencionalidade o que está sendo aqui a substância da qual se predicam certos atributos. Mais ainda, para que a caracterização da obra de arte digital da forma como a propõe Marchand possa tornar-se um instrumento realmente efetivo de avaliação, esta não pode ficar em termos tão gerais como o rizomático e o simulacro. Se assim acontecesse, correr-se-ia o risco de dissolver pobremente a infinidade de objetos com intenções artísticas que se possam produzir em meio digital. O caminho para não incorrer nisso –o único que somos capazes de vislumbrar– é, novamente, a resignação a designar o rizomático e o simulacro (“simulacróide”?) como características de essência da obra de arte digital. Ou seja, assim como se diz que é da essência de um romance o ser construído de palavras, há de se dizer –aceitando a argumentação de Marchand– que é da essência da obra de arte digital ser rizomática e simulatória. Deste modo, aceitando estes dois termos como atinentes ao eidos da obra de arte digital, então partir-se-ia para as predicações e julgamentos das infinitas concreções em que o objeto obra de arte digital pode-se encarnar, ou seja, as diversas produções de obras de arte digital que se forem apresentando à percepção como objetos da experiência.  O rizomatismo e o suposto a-fundamento ontológico da obra de arte digital como in-definida por Marchand são, com efeito, dados da experiência, que justamente necessitam ser buscados, concretizados pelo sujeito perceptor que os sintetiza num objeto da experiência e que, não obstante o “sumiço”, a “dissolução” e a “desmaterialização” da fonte material da experiência, passa a ser um objeto intencional que se torna possível, a posteriori, como objeto de um discurso: um discurso crítico e analítico ou simplesmente um discurso leigo, do público em geral que vai ao encontro da obra de arte de arte digital sem compromisso com a prática acadêmica.

 

Há, pois, uma ilusão nessa concepção de obra “desmaterializada”. O argumento que a quer sustentar procede numa apostasia de apenas um aspecto da obra de arte digital em detrimento de outro –que, desfeita a ilusão, mostra-se infinitamente mais importante–. Como já apontamos, a variabilidade e a inconstância do aparecer dessa obra no ato da sua experimentação são, na verdade, atributos ou predicados de uma substância, e a falácia do argumento anti-ontológico de Marchand baseia-se na supervalorização dos atributos sobre a essência do objeto. Se procedêssemos assim em relação ao homem, por exemplo, seria como se tratássemos de provar que a racionalidade precede ao animal quando dizemos que o homem é um animal racional: uma inversão categorial que pode ser até encantadora num primeiro momento, mas que não resiste ao mais primário exame crítico. Na prática, pois, o caráter rizomático e simulatório diz-se de uma obra de arte digital, desta ou daquela obra. Num momento posterior, quando fosse empreendida uma tentativa de historiar ou sistematizar a produção das obras de arte digital, tais atributos passariam a ser categorias analíticas, as quais seriam apontadas em maior ou menor grau nos diversos objetos historiados ou sistematizados. Haveríamos, pois, de retificar as palavras de Marchand. Onde este diz: “en la obra digital qualquier reflexión sobre su identidad ontológica es deudora, por consiguiente, de las consideraciones fenomenológicas...”, deve-se dizer: qualquer reflexão sobre a “desmaterialização” da sua identidade ontológica é devedora de considerações fenomenológicas.

 

§2. “Endoestética”

 

A segunda posição teórica que ora abordamos é batizada pela sua autora, Cláudia Gianetti (2006), como “Endoestética”, e, igualmente a Marchand, ela a faz emergir de uma suposta necessidade de superação ou destruição de categorias fenomenológicas e ontológicas como objeto e seus conceitos explicativos e descritivos correlatos. Necessidade imposta por manifestações artísticas que têm como meio de produção a tecnologia digital.

 

Para os efeitos da nossa análise, a abordagem de Gianetti é mais sofisticada que a de Marchand; em primeiro lugar, porque a proposta deste se faz numa conferência e a daquela se faz em todo um livro, que culmina com a sua proposta de “endoestética”. Mas não apenas por isso. Enquanto Marchand lança mão de fontes filosóficas que, por sua vez, em suas próprias formulações lançam mão da ciência (das biológicas, principalmente) –em grande medida de forma altamente questionável–, Gianetti vai diretamente aos textos científicos, justamente em passos cruciais da sua argumentação, de modo que esta só vai adiante apoiando-se na aceitação do leitor –por credulidade ou até mesmo por ignorância (o que não deve ser motivo algum de embaraço para o estudioso de humanidades)– dos postulados científicos trazidos à baila. Há de ver-se como o neurobiólogo chileno Maturana é essencial, funcionando como argumento de autoridade no arrazoado de Gianetti.

 

Quanto a nós, cabe-nos apontar  mais uma vez o quão desnecessário e pernicioso é o intento de demolir uma herança construída ao longo de mais de dois milênios de reflexão, e demonstrar que a tradição conceitual clássica legada pela filosofia ocidental é ainda adequada e produtiva.

 

Dirijamo-nos, pois, antes de tudo, ao modo como a tradição é dispensada e, em seguida, a como tal dispensa é fundamentada numa conceitualidade científica, provinda da neurobiologia.

 

(...) os sistemas sociais humanos se constituem como redes dialógicas e, portanto, são sistemas de coordenações de operações na linguagem. A arte, ao produzir-se e existir nessa rede dialógica e no domínio das interações entre os seres humanos e entre estes e o meio, não pode limitar-se a ser um tipo “especial” de objeto, nem implicar um significado autônomo, nem tampouco ser uma forma de experiência independente do observador. Todos os atos de percepção encontram-se profundamente unidos à pré-história da experiência individual e coletiva, isto é, à memória (do observador, da sociedade), e são sempre valorados emocionalmente pelo sujeito. Cada ato de percepção é, além disso, um ato de ação virtual. Esse argumento vai contra os fundamentos tanto da estética racionalista como da metafísica, segundo os quais é possível encontrar, fora do sujeito e da obra (no mundo natural ou real), um critério objetivo de valor estético. (Gianetti, 2006, p. 177. Grifo nosso).

 

Custa-nos ver como tal enunciado pode “ir contra” os fundamentos de uma estética racionalista e da metafísica (seja lá o que for aquilo a que a autora se estiver referindo com este último termo). É realmente enfadonho termos que nos deter sobre conceitos como racionalismo e metafísica, mas necessário para o nosso primeiro fim aqui, pois este descarte e falsa destruição de fundamentos é um passo importante no argumento geral da autora. Ora, mesmo se considerarmos esse racionalismo como platônico, a importância dada pela autora à memória seria recoberta pela reminiscência em sentido platônico. Poder-se-ia retrucar a isto que a reminiscência implica toda a metafísica do ciclo da alma como descrito no Fedro, mas haver-se-ia de travar uma longa discussão sobre o que está sendo referido aqui, da parte da autora, como “pré-história da experiência individual”, e até que ponto esta não é uma questão tão metafísica quanto a reminiscência platônica, funcionando ambas como origens não-empíricas do reconhecimento auto-consciente do agora de uma experiência individual de um objeto qualquer. Mas isto não é o ponto fulcral da questão. O fato é que uma leitura atenta deste trecho fundamental da argumentação de Gianetti mostra que ela, por um lado, quer descartar todo racionalismo, seja platônico, seja kantiano, e que por outro lado, também quer descartar todo recurso à empíria. Veja-se que num enunciado por demais confuso, atribui-se à “metafísica” justamente um modo de valorar que vasculha os seus objetos como entes “naturais ou reais”, ou seja, que considera que o conhecimento de uma coisa provém do acúmulo dos dados da experiência sensível, de um objeto real que afeta enquanto res os sentidos de um sujeito sensível. Neste sentido, por exemplo, Aristóteles foi um empirista se comparado com Platão. Dizer “fora do sujeito e da obra” é construir um enunciado oximoresco, pois “fora do sujeito” é uma dicção empirista e “fora da obra” (logo, “dentro” do sujeito) é uma idealista.

 

Ora, para onde há de dirigir-se então a tentativa de se estudar a obra de arte e a sua recepção e experimentação? A resposta está, acima de tudo, no subtítulo do artigo de Humberto Maturana onde a autora vai buscar o argumento de autoridade necessário ao seu arrazoado: “Fundamentos biológicos de la realidad” (Gianetti, 2006, p. 177,  n.4).  É na ciência e não mais na filosofia ou nos ramos desta –como a filosofia da arte ou a estética– que estão seus subsídios. A dispositio dos assuntos colhidos na ciência é feita da seguinte forma: primeiro entra a neurobiologia como postulante da total relatividade de toda explicação de fenômenos; em seguida, entra a física –como “endofísica”– enquanto modelo de uma nova estética, a dita “endoestética”. Atentemo-nos primeiro ao recurso a essa neurobiologia; ele se dá como se segue:

 

(...) as definições ou explicações sobre a arte, seus sistemas e produtos, não podem ser nem reducionistas nem transcendentais, porque não é factível a verificação de uma única e definitiva explicação por nenhuma entidade. Os observadores vivem num “multiversa, isto é, em muitas e diferentes e igualmente legítimas, porém não igualmente desejáveis, realidades explicativas e que, nessas, um desacordo explicativo constitui um convite à uma reflexão responsável de coexistência, e não uma negação irresponsável do outro”. (p. 177)[5]

 

Seria uma gravíssima falta de atenção  não dar-se conta da função retórica desse recurso à ciência. Se na linha de raciocínio da autora se está tratando, antes de qualquer colocação de um fato positivo, da derrocada da tradição filosófica, é patente que a “negação irresponsável do outro” é um atributo que se está predicando justamente dos intentos explicativos levados a cabo por esta tradição. Eis aí o estabelecimento de uma contraposição moral, onde o vilão irresponsável e “negador do outro” seria a tradição, enquanto que o mocinho seria esta a nova posição, aberta aos diversos modos explicativos: posição que se afirma sob o beneplácito omni-sapiente e neutro da ciência. Ora, para quem está bastante indisposto em relação à “metafísica”, esta sereno-jovial parceria com a ciência faz vista grossa de tudo o que disse um dos primeiros cruzados contra a metafísica: Nietzsche[6], que via uma linha contínua ao longo da história, ligando a metafísica, a religião e a ciência e estabelecendo também uma ligação direta entre a função sacerdotal e o discurso científico.

 

Há de notar-se ainda que, neste momento, o intento da autora não se limita apenas à arte digital. Pelo contrário, é à totalidade do campo da arte que ela se está dirigindo: “a arte, seus sistemas e produtos”. As palavras do cientista abrem a totalidade do campo artístico a toda a diversidade de “realidades explicativas” e, para o bem da argumentação da autora, para a realidade explicativa da qual irá se servir em seguida, que é a da física, mas que poderia ser também a da química, da astrologia, e de seja lá qual for a “realidade explicativa” a partir da qual se queira falar. Eis o que a nosso ver é um dos perigos dessa posição e da transdisciplinaridade em geral: diluir o campo específico de uma disciplina numa totalidade que se permite todo tipo de explicação. É desta abertura que brotam as mais diversas “interpretações” e “leituras” de obras de arte que se impõem como “legítimas” pelo simples fato de ter uma certa concisão interna enquanto discurso. E quando se retruca que tal posição culmina num “vale-tudo”, sempre é possível dizer que não é assim; mas na prática, o novo imperativo moral de não cair numa “negação irresponsável do outro” impede aos defensores desta posição uma postura rígida que se atreva a negar como inválidas as mais espeluznantes basófias que grassam no mundo dos congressos e simpósios como legítimas “interpretações” e “leituras” de obras de arte, ou, igualmente, as mais diversas quimeras que os curadores de uma multidão de exposições tratam de impor ao público –leigo e especializado– como “obras de arte”.

 

Fazem-se necessárias ainda algumas palavras sobre o recurso à neurobiologia de Maturana. Num tempo em que a busca por respostas na obra deste autor é cada vez mais freqüente por parte dos estudiosos das humanidades, é prudente tornar explícito o domínio específico de onde partem os postulados deste autor. Sem entrar em detalhes –acima de tudo, porque não somos neurobiólogos nem cientistas!– devemos apontar que os estudos deste autor passam invariavelmente pela descrição do sistema nervoso humano, em termos como “sinapses”, “acoplamento estrutural”, “rede neuronal fechada”, “perturbação do sistema” e outros diversos[7]. Em suma, é dos a prioris neuro-fisiológicos que se está tratando, de cujas interações com o meio emerge –em sentido biológico– aquilo que é para um ser dotado de sistema nervoso a realidade e os objetos nela encontrados. Há, pois, um verdadeiro “grand canion” separando os domínios da biologia e da reflexão sobre a obra de arte, sobre o qual é dado um salto que o leitor se vê obrigado a aceitar, passando logo para a “realidade explicativa” da “endofísica” enquanto modelo de base para a proposta da “endoestética”.

 

Vejamos agora em que consiste, pois, a aplicação do modelo “endofísico” à reflexão sobre arte, culminando numa “endoestética”: “Da mesma forma que a Endofísica, a Endoestética trata dos mundos artificiais baseados na interface, nos quais podemos participar (endo) e observar (exo) ao mesmo tempo. Com essa dupla atuação do interator num universo simulado se podem explorar as propriedades do nosso mundo” (Gianetti, 2006, p.188).

 

Trata-se de incluir na experiência da obra de arte o próprio ponto de vista do receptor da obra. Porém há a condição de que a obra é seja necessariamente interativa, de modo que o receptor (denominado interator) pode experimentar não só a sua perspectiva, digamos, “em primeira pessoa”, mas também acompanhar os mesmos efeitos da sua interação com a obra como um observador dessa interação: este interage com a obra e se observa interagindo, sendo que a sua interação em “primeira pessoa” constitui um ponto de vista interno e a observação desta interação um ponto de vista externo: “nesse tipo de mundo simulado, nos transformamos em observadores internos e externos simultaneamente” (p. 191). Ora, esta descrição do modo como este determinado tipo de obra é experimentado é realmente de interesse, de maneira alguma há algum problema com ela. O nosso ponto de discordância está nas conclusões a que chega a autora, após todo um percurso descritivo que, per se, é instigante. É que não vemos como pode ser possível manter a obstinação em negar o estatuto ontológico e objetual às obras e à experimentação delas tal como o faz a autora, após longas descrições de todo o aparato material (ou seja, tecnológico) necessário para se produzir a obra em que se fundamentam as experiências das mesmas[8]. Não podemos concordar, de maneira alguma com enunciados como: “A interação, quer explícita ou simulada, reclama a estruturação aberta e contingente da obra, o que indica o predomínio do processo sobre as concepções material, objetual e concluída, próprias da estética ontológica” (p. 188).

 

Há uma confusão aqui, entre o que é o aspecto material inelutável, necessário para a existência da obra, e o que é a sua experimentação. Toda a abertura e contingência recai sobre este segundo aspecto da obra, mas não sobre aquele primeiro. E ainda, a mesma interação com a obra em funcionamento não é totalmente contingente e aberta ao infinito, pois o que emana da base material como a parte realmente experimentável da obra, aquilo mesmo com o qual o experimentador irá interagir, é produto de uma disposição de um criador que, neste caso, deve ser chamado de “programador”. Não há qualquer problema em se falar de uma obra, por mais interativa que seja, que ela é “concluída”, desde que se entenda que há, sim, um trabalho nela que chegou à sua conclusão, que é a sua programação, aquilo que será o ponto de partida da sua existência enquanto objeto disponível para a experimentação dos interatores.

 

Por fim, voltando à descrição da “endoestética”, a dupla “exo-endo” de que nos fala a autora é, a nosso ver, objeto de uma experiência. E é aqui onde insistiremos que é precipitado o descarte de um conceito como objeto –já nos referimos a ele enquanto material, ou seja “transcendente”, agora falamos do seu aspecto imanente–, ou seja, objeto de uma intencionalidade: a dupla exo-endo que se experimenta no tipo de obra descrito é um dado da experiência que constitui um vivido, dado numa temporalidade própria ao experimentador. Da nossa parte, acreditamos que é justamente do recurso à neurobiologia –que não mencionamos à toa, por pura sanha– que decorre esse escamoteamento de conceitos tão fundamentais para se refletir sobre a obra de arte. A ênfase no aspecto “naturalista” –para usar um termo husserliano– da questão ocasiona a perda do foco do que é a experiência da obra de arte enquanto um vivido intencional.

 

Essa ênfase “naturalista”, que tem por intuito primordial anular o conceito de sujeito no sentido em que tradição o emprega –substituindo-o por uma “rede neural” e tutti quanti–, faz ainda surgir um paradoxo que se torna no mínimo incômodo –ainda que não notado pela autora– no que se refere à descrição das obras de arte por ela feitas, pois estas são descritas justamente enquanto objetos idênticos a si mesmos, ou seja, com uma identidade que se perfaz pela descrição de seus atributos essenciais, quais sejam: os seus aspectos “endo” e “exo”. O paradoxo consiste, pois, nisto: que ao mesmo tempo em que se empregam postulados neuro-biológicos que decretam a total relatividade das coisas em relação a um organismo –e, logo, a impossibilidade de uma descrição objetiva e transcendente de algo–, faz-se uma descrição extremamente objetiva das condições sine qua non de uma dada espécie de obra de arte. E uma vez anulado todo conceito legado pela tradição sobre o sujeito, a própria experiência da obra de arte se reduz a nada mais que às possibilidades propiciadas pelas obras. Assim, segundo o modelo “endoestético”, as obras, objetivamente, possibilitam que se interaja com elas e que, ao mesmo tempo, se veja essa interação e os seus efeitos sobre a obra; e, subjetivamente, o único que se faz é por em ato essa possibilidade –ou, pelo menos, é o único que a autora descreve no respeitante à experiência das obras–. Esta “castração” do sujeito, é, reiteramos, conseqüência direta da sua redução a um mero ente biológico –talvez deveríamos dizer com Heidegger que a dimensão ontológica é reduzida à dimensão ôntica, do Ser ao ser-simplesmente-dado–. De todos modos, não podemos dizer que há uma incoerência nisso, pois na medida em que o sujeito enquanto ego é descartado, por que se faria logo o esforço de se descrever a experiência da obra de arte se esta é infinitamente diferente para cada organismo que a experimenta, sendo totalmente “contextual”? Qual seria o interesse em se descrever como seria o vivido intencional para todo e qualquer sujeito, se já se diz de partida que não existe uma subjetividade transcendente correlata ao que é um objeto cujos atributos essenciais são tais e tais? Nenhum, de fato.

 

§3. Síntese das nossas críticas e conclusão: o retorno sub-reptício da representação ingênua

 

Los objetos que rodean mi cuerpo reflejan la acción posible de mi cuerpo sobre ellos.

 

Bergson, Materia y memoria,cap. I.

 

Como replicaríamos a Bergson se adotássemos qualquer uma das concepções teóricas que nos dispusemos a criticar? Certamente, que quando ele diz “meu corpo”, ele realmente está dizendo que se refere ao seu, e nada mais que ao seu –e nada lhe garante que o corpo do seu leitor esteja na mesma condição–. Também, que o que ele diz ser “meu corpo” é muito mais e muito menos do que ele pensa: mais, porque, na verdade, o seu corpo faz “rizoma” com o mundo; menos, porque, sendo “rizoma”, o seu corpo não lhe pertence enquanto posse, tal sensação de posse nada mais é que um condicionamento histórico. Os “objetos” e as “ações possíveis” nele “refletidas”, em conseqüência, são desarticulados igualmente, pois nada mais garante que o que é um “objeto” para um corpo o é para outro.

 

Em síntese, seguidos à risca os pressupostos lançados pelas concepções criticadas, perde-se a humanitas enquanto disposição e empatia de um ser humano para com outro. A eliminação do sujeito e da sua intencionalidade redunda na perda da obra de arte como produto de uma ação que dá forma a uma matéria, produzindo um objeto com determinados atributos que é capaz de refletir as ações possíveis que nele um ser humano possa reconhecer como possíveis, ações possíveis estas que, justamente, se fazem reconhecíveis no objeto graças ao modo como o sujeito produtor dá forma à matéria. Que não se entenda aqui, de forma grosseira, que, pelo simples fato de que os objetos produzidos em meio digital não sejam compostos de matérias palpáveis, estes não estejam subsumidos ao conceito de matéria enquanto aquilo capaz de afetar os sentidos. A questão é que, ao receber uma forma, o som bruto torna-se palavra ou música, e os feixes de luzes tornam-se figuras numa tela ou hologramas numa instalação. Foi o lingüista Hjelmslev que –com ecos aristotélicos–  nos legou a distinção entre forma, substância e matéria: é uma matéria a que recebe uma forma e torna-se uma substância de expressão; este é o ponto de partida de qualquer semiótica ou de qualquer ato expressivo. Ao eliminarmos o sujeito que com a sua intencionalidade dá uma determinada forma a uma matéria e, assim mesmo, eliminarmos o sujeito que reconhece uma forma expressiva nessa matéria (agora, substância de expressão), nada resta que se possa denominar arte. Não obstante, vimos que, ato seguido das obstinadas investidas contra esses sujeitos e suas correspondentes intencionalidades, continua-se lepidamente a falar em obras de arte, só que agora enquanto objetos produzidos de “rizoma” para “rizoma”, ou de organismo-redeneural-condicionado-a-um-contexto[9] para os seus similares.

 

O que vemos nisso tudo, em conclusão, é que essas tentativas que supõem a caducidade de conceitos arduamente cunhados pela filosofia, pela filosofia da arte e pela estética ao longo de mais de vinte séculos, sem dar-se conta recaem num crime de lesa-majestade inventado e impingido à tradição pelos seus próprios detratores quando toda esta maré da “morte do sujeito” e da “morte do autor” se iniciou nos idos dos anos 60: que os conceitos da tradição referidos à arte a tratavam como uma “imitação” ou “representação” da realidade. Outras tantas laudas nos tomaria demonstrar que sequer a Aristóteles isso se aplica. Mas, de fato, uma vez que –como vimos com Marchand leitor de Deleuze– o próprio sujeito é “rizoma” relacionado com o mundo (também “rizoma”), a sua percepção é “rizomática” e a obra de arte é “rizomática” (lembremos das “obras flotantes” mencionadas pelo autor), nada mais se pode concluir a não ser que a obra de arte é, efetivamente, uma perfeita imitação do mundo, o realismo levado à perfeição. Neste sentido, devemos novamente dizer que Gianetti é mais sofisticada, pelos mesmos motivos acima mencionados. Mas ainda assim não escapa a esse mimetismo ingênuo, quando adota um modelo da física (a “endofísica”) que tem como principal novidade incluir na sua metodologia as supostas deformações que um observador impõe ao seu observado; é deste modo que a sua abordagem “endoestética” faz das obras de arte –ao que parece, sem o querer, de forma alguma– uma representação de como o interator inclui na sua interação com a obra os mesmos efeitos desta interação.[10]

 

Não negaríamos o caráter conservador e, por que não, até retrógrado de tudo o que dissemos nestas linhas. São estas, porém, as nossas convicções após meditar acerca de duas tentativas contemporâneas de lançar bases para teorias estéticas a partir da destruição dos mesmos fundamentos que deram à existência os próprios conceitos de arte e estética. Parece-nos, no entanto, que melhor é ter uma convicção firme do que estar-se a flutuar como veleiro à deriva, empurrado sem direção por qualquer vento liberado pela deusa Novidade.

 

 

Referências

 

Bergson, H. Materia y memoria. In: Obras escogidas. Traducción de José Antonio Miguez. Madrid: Aguilar, 1963. p.225-474.

 

Deleuze, G. Lógica do sentido. Tradução de Luiz Roberto Fontes. São Paulo: Perspectiva, 2003.

 

Deleuze, G. e Guattari, F. Mil platôs. Tradução de Aurélio Neto e Célia Costa. São Paulo: 34, 2000. v. 1.

 

Gianetti, C. Estética digital. Tradução de Maria Melendi. Belo Horizonte: C/Arte, 2006.

 

Hjelmslev, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. Tradução de J. Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 2003.

 

Husserl, E. Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Tradução de Márcio Suzuki. Prefácio de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. Aparecida: Idéias e Letras, 2006.

 

Ingarden, R. Phenomenological aesthetics. Translated by Adam Czerniawski, in: The Journal of Asethetics and Art Criticism. v. 33, Nº 3 (Spring, 1975). pp. 257-269. Georgia, US: The American Society for Aesthetics.

 

Marchand. S. Entre el retorno de lo real y la inmersión en lo virtual. In: Marchand, S. (Comp.) Real/Virtual en la estética y la teoría de las artes. Barcelona: Paidós, 2005. p. 29-52.

 

Maturana, H. A ontologia da realidade. Vários tradutores. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.

 

 

  

 

 

<REVISTA TEXTO DIGITAL>

 

 




[1] Abstemo-nos de citar todos os trechos –que já podem-se dizer até clássicos– do primeiro ensaio de Mil platôs (Deleuze e Guattari, 2000: pp 7- 37). Preferimos citar apenas um, que sintetiza os princípios do rizoma –que no texto de Deleuze e Guattari são o 1º (conectividade) o 2º (heterogeneidade) e o 3º (multiplicidade)– explicitamente adotados por Marchand: “Os fios da marionete, considerados como rizoma ou multiplicidade, não remetem à vontade suposta una de um artista ou de um operador, mas à multiplicidade das fibras nervosas que formam por sua vez uma outra marionete seguindo outras dimensões conectadas às primeiras. Os fios ou as hastes que movem as marionetes –chamemo-los trama. Poder-se-ia objetar que sua multiplicidade reside na pessoa do ator que a projeta no texto. Seja, mas suas fibras nervosas formam por sua vez uma trama. E eles mergulham através de uma massa cinza, a grade, até o indiferenciado” (Deleuze e Guattari, 2000: 16). Dentre os muitos modos de expor essa multi-conexão –ao longo dos muitos ensaios que compõem os Mil platôs– onde tudo se constitui de tudo e nada é autônomo, escolhemos propositadamente esta porque, ademais de ser a mais simples a nosso ver, ela em nada perde seu valor perante as mais complexas. Esta manobra retórica nos é permitida justamente pelo modo em que se alinham descrições supostamente científicas (provindos da neurobiologia dos anos 80) a descrições literárias e excentricidades científicas (provindas da biologia do século XIX e início do XX) já depostas, tudo com o intuito de demonstrar a hipótese-rizoma e o “corpo sem órgãos” que perpassam a obra inteira. Veja-se, por exemplo (2000: pp.60-2), o emprego de noções de Geofroy Saint-Hilaire e Cuvier. O que todas essas descrições das quais os autores lançam mão têm em comum é o fato de que o seu emprego jamais é feito a modo de argumento de autoridade, mas como pontos de articulação, ainda que de modo muito mais figurativo do que lógico-argumentativo, de sua teoria.

[2] Sendo aqui o inverso do objeto autônomo o sujeito autônomo: a consciência individual, o eu-desperto em sentido husserliano. Mencionamos de antemão que não estamos pregando uma “autonomia” como se fosse possível conhecer as coisas em si mesmas, de um ponto de vista absoluto. Em termos kantianos: não dizemos que a autonomia torna possível o conhecimento do em-si. Mas também não concedemos que se diga a respeito do sujeito que ele é completamente volúvel, variando totalmente diante de cada objeto a que dirige a sua atenção. Igualmente, não negamos que só haja sujeito enquanto há objeto (ainda que o objeto possa ser o próprio sujeito quando se trata de uma auto-reflexão), mas daí a dizer que o sujeito humano, cognoscente, é um objeto como qualquer outro no mundo, é, a nosso ver, uma falácia materialista inaceitável. Não se pode, a nosso ver, simplesmente “descartar” Descartes, a res cogitans ainda é defensável, mesmo após séculos de anti-cartesianismo.

[3] Devemos deixar claro que a subscrição de Marchand a alguns aspectos do rizoma enquanto descrição da realidade não abrange explicitamente o efeito retroativo mencionado. Isto deve permanecer, pois, em suspenso e indiscutido, pelo dito e por não vir ao caso no nosso exame. Apenas expusemos em curtas frases aonde se chega quando conhecido in loco o desenvolvimento do conceito de rizoma.

[4] Publicado originalmente em polonês, no volume III do seu Studia z estetyki, Varsóvia, 1970.

[5] Referência da citação dada pela autora: Maturana, Humberto. La realidad:¿objetiva o construída? I. Fundamentos biológicos de la realidad. Etc.

[6] Que, apesar de tudo, quando teve os papéis de seu espólio abertos ao estudo, revelou ser, por exemplo,  um frustrado perseguidor de fundamento científico para a sua concepção do “eterno retorno”. Hoje, os comentadores só podem limitar-se a salvar essa concepção como “imperativo ético” (Deleuze, e, no Brasil, Scarlett Marton) ou como uma metáfora empregada no seu Zarathustra para dar forma a uma cosmologia.

[7] Entre os artigos contidos na sua coletânea A ontologia da realidade (Maturana, 2002), os que mais interessam mencionar aqui são: “O que é ver?” (pp.77-105); “Biologia do psíquico: onde está a mente?” (pp.107-120); “Biologia da linguagem: A epistemologia da realidade” (pp.123-166). Todos eles com um item específico intitulado “O sistema nervoso”. Além destes, é de interesse também o artigo “Biologia da autoconsciência” (pp.212-241), que igualmente dedica alguns parágrafos ao sistema nervoso.

[8] Basta reparar nas figuras dos esquemas de montagem e componentes das obras exploradas pela autora, nas páginas 184 e 191.

[9] Ora, se já há “obras de arte” que consistem em programar um computador para simular o movimento de reprodução de microorganismos, quem sabe um dia poderemos contemplar, maravilhados com tamanha criatividade, uma nova categoria: a amoeba art!

[10] Não estamos sofismando. Explicamos: o sujeito interage com a obra vendo os efeitos que essa interação causa de forma global sobre a obra; ele logo leva em consideração estes efeitos na continuidade da sua interação com a mesma.