<REVISTA TEXTO DIGITAL>
ISSN 1807-9288
- ano 4 n.1 2008 –
http://www.textodigital.ufsc.br/
JARDIM JUNIOR, José Carlos.
Apontamentos de análise informatizada em torno das cartas chilenas. Texto Digital, Florianópolis, ano 4, n.
1, Julho/2008.
APONTAMENTOS
DE ANÁLISE INFORMATIZADA EM TORNO DAS CARTAS CHILENAS
COMPUTER
ANALYSIS ANNOTATIONS REGARDING THE CARTAS CHILENAS
José Carlos
Jardim Junior
Mestrando
em Literatura
Universidade
Federal de Santa Catarina
Florianópolis,
Brasil
RESUMO: Este artigo consiste de apontamentos prospectivos em torno da análise
informatizada da obra poética denominada Cartas Chilenas escrita no século
XVIII cuja autoria permanece discutida. Para tanto são agenciadas ferramentas
(Word e Excel) que puderam auxiliar no reconhecimento de características
quantitativas e qualitativas distribuídas entre as 14 cartas que compõem o
conjunto da obra (incluindo uma carta introdutória designada por Epístola).
PALAVRAS-CHAVE:
Cartas Chilenas. Análise lexicométrica.
ABSTRACT: This article
consists on prospective annotations regarding the computer analysis of the
poetic work denominated Cartas Chilenas, written in the
18th century, whose authorship remains questionable. For such, tools (Word e
Excel) were used which could aid in the recognition of quantitative and
qualitative characteristics distributed among the 14 letters that compose the
work (including an introductory letter designated as Epístola).
KEYWORDS: Cartas
Chilenas.
Lexicometric analysis.
À memória de Jessé Gabriel
da Silva,
amigo e pesquisador das Cartas.
I.
Os apontamentos investigativos aqui
apresentados retomam, em grande medida, esforços anteriores já bem firmados
nesse espaço específico da discussão literária. São estes convencionalmente
diferenciados entre investigações de natureza “sócio-histórica” e aquelas
outras de inclinação “estilística”. Sem deixar de prontamente reconhecer a
fecundidade – senão, a necessidade – da colaboração entre ambas as linhas de
pesquisa na aproximação com seu objeto, a contribuição a seguir decide-se pela
prioridade metodológica da análise textual de caráter “estilométrico” (BRANDÃO,
2006) na discussão da autoria (não descuidando certos reparos de ordem
histórica - apenas sugestivos - como será o caso na consideração particular da 1a Carta). Portanto, o objetivo assumido nesse
trabalho será o de agregar elementos estilísticos outros à já secular discussão
em torno da autoria das Cartas Chilenas, obra satírica composta no séc. XVIII dividida em catorze partes (ou
“cartas”, a primeira das quais designada Epístola).
Inicialmente, então, a análise
orientou-se pela aferição da regularidade estilística entre as partes e
procurou inicialmente identificar, dentre os versos da obra, aqueles que obedecem
o metro de tipo sáfico
(acentos fortes nas 4a e 10a sílabas e previsível, mas não fatal, na 8a sílaba)
e outros poucos versos de metro incerto. O resultado sem dúvida mereceria uma
revisão calcada em pormenores fonéticos formais - e mesmo, idiossincráticos,
supondo a pluralidade de autoria – especialmente atenta à variação do emprego
acentual em vocábulos átonos[1].
De todo modo, ficou patente que possíveis impugnações não alterariam
sensivelmente o conjunto apresentado do Apêndice A[2].
Esse conjunto de decassílabos sáficos resultou no seguinte quadro onde,
em termos de porcentagem de ocorrências, destacam-se a Epístola e a 1a Carta:
Epístola... Total: 208 / sáficos:
53 = 25,48%
1a Carta... Total: 291 / sáficos:
40 = 13,74%
2a Carta... Total: 306 / sáficos:
10 = 3,26%
3a Carta... Total: 296 / sáficos:
24 = 8,10%
4a Carta... Total: 354 / sáficos:
8 = 2,25%
5a Carta... Total: 342 / sáficos:
20 = 5,84%
6ª Carta... Total: 434 / sáficos:
18 = 4,14%
7ª Carta... Total: 91 /
sáficos: 2 =
2,19%
8ª Carta... Total: 365 / sáficos:
4 = 1,09%
9a Carta... Total: 404 / sáficos:
9 = 2,22%
10a Carta.. Total: 319 / sáficos:
9 = 2,82%
11a Carta.. Total: 433 / sáficos:
15 = 3,46%
12a Carta.. Total: 299 / sáficos:
11 = 3,67%
13a Carta..
Total: 29 /
sáficos: 2 =
6,89%
Total de versos: 4171
/ sáficos: 215
= 5,15%
A partir dessa identificação foi
possível examinar alguns aspectos da realização interna do verso. Assim, primeiramente,
foi dedicada atenção especial à 6a sílaba como posição previsível de início de
vocábulo após a 4a sílaba forte do sáfico e ponto intermediário do decassílabo
no qual a presença de palavras/locuções
funcionais se faz notar com maior
regularidade. Em seguida, foi também possível apontar nesse conjunto a
ocorrência de sinalefa não antecedida de pausa na 5a sílaba forte e, do mesmo
modo, verificar a distribuição dessa ocorrência entre todas as cartas. Em outra
direção, baseada no trabalho de Moura (2006), a análise retorna para a
integralidade da obra, apontando a ocorrência de expressões ativadoras
de presença ou negação de pressupostos (verbos factivos, implicativos, de mudança
de estado, iterativos, expressões temporais e “bloqueios”) novamente
objetivando o registro da distribuição dessa ocorrência nas Cartas Chilenas.
II.
Regularidades
diferenciais na 6ª sílaba
(ocorrência diferencial de palavras/locuções
funcionais na “epístola” e “1ª carta” contrastando com as demais cartas, a
partir da 6ª sílaba dos decassílabos
sáficos)
que da
20 Quem me
dirá que da estultice as obras (epístola)
104 Um
cidadão, que da província as rédeas (epístola)
42 Inda que
o vento, que d'alheta sopra, (1ª carta)
[obs: “que
da” não ocorre em mais nenhuma posição de quaisquer versos – heróicos ou
sáficos - de todas as Cartas]
que do
21 Não falta tempo em que do sono gozes: (1a carta)
[obs: “que do” não ocorre em mais em quaisquer versos – heróicos ou
sáficos - de todas as Cartas; anota-se apenas um “que dos” ainda na 1a Carta em
verso heróico: “Um rifão que nos diz, que dos
domingos”]
de uma
55 Que teus escritos, de uma idade a outra (epístola)
196 Os ímpios chefes de uma igual conduta (epístola)
de seus
89 Não desordene de seus pais a glória. (epístola)
[obs: “de seus” ocorre em
apenas mais dois outros versos heróicos
da Epístola e não aparece mais nas Cartas]
os seus
79 Que regulados os seus votos sejam. (epístola)
o/os
79 Que regulados os seus votos sejam. (epístola)
101 É quem a todas o caráter dava. (epístola)
13 Movem dos troncos os frondosos ramos?" (1a carta)
19 Que então me pintam os ligeiros sonhos. (1a carta)
38 Que à mesa trazem os fumantes pratos? (1a carta)
203 E a exemplo destes, o congresso todo. (1a carta)
a/as
(não ocorrem na epístola
e 1ª carta)
72 De quantos presos as cadeias guardam: (2a carta)
214 De sujas moças, a quem chamam filhas. (2a carta)
207 Para crescerem as soberbas obras. (4a carta)
199 Até que montam a dourada sege. (5a carta)
150 Trazem os pajens as compridas lanças, (6a carta)
269 Somente deram, a figura de homem! (10a carta)
129 Aqueles
vícios, a que os gênios puxam. (11a carta)
na/nas/no/nos (não
ocorrem na epístola e 1a carta)
31 E mal
estendo nos lençóis o corpo, (2a carta)
26 Um já
montado na comprida cana (3a carta)
300 Que em
grande cópia nas janelas ardem. (5a carta)
323 E
põe-lhe peso, na cabeça leve. (5a carta)
6 Que vou
entrando na formosa praça. (6a carta)
112 Ponho
os meus olhos no caduco Adônis: (6a carta)
115 Com ar
risonho no seu peito a prega. (6a carta)
22 Descanse
o corpo na franjada rede. (9a carta)
255
Primeiro que ele no governo morra, (11a carta)
114 Lá vai aquele, que de avara sede (epístola)
320 Que mais de estorvo que de arrimo serve, (5a carta)
[obs: “que de” volta a ocorrer em apenas mais dois
outros versos heróicos: “Em fazer que de Roma ao Consulado” (epístola) e “Que
de todas as partes o cercavam” (1a carta)]
de um
51
Escuta a história de um moderno chefe,
(1a carta)
171 Cobrem-se os membros de um suor já frio, (4a carta)
Quadro de registro das palavras funcionais (a/as,
na/nas, no/nos à parte):
1o
subconjunto sáfico (epístola+1a carta): 16 ocorrências positivas em 93 versos
ou 17,2%
2o
subconjunto (demais cartas): 2 ocorrências em 132 versos ou 1,51% (frequência
11,4 vezes menor)
Em
seguida (a/as,
na/nas, no/nos):
1o
subconjunto sáfico (epístola+1a carta): 0 ocorrências em 93 versos.
2o
subconjunto (demais cartas): 17 ocorrências em 132 versos (1 para cada 7,76).
Mesmo
recordando ainda o padrão de distribuição semelhante na aplicação para o
conjunto integral dos versos da obra de quatro das palavras/locuções funcionais
acima (tanto quanto a centralidade semântica de todas as quinze), é prudente
reconhecer que o foco em outras funcionalidades poderia apresentar uma
configuração de subconjuntos de cartas completamente diferente. Registre-se
porém que essa hipótese não foi revelada de modo substancialmente
representativo no decorrer da análise.
III.
Sinalefa
não antecedida de pausa na 5a sílaba (“fraquíssima”) do conjunto sáfico:
Epístola
33
Que devo rir-me e sufocar o pranto
45
Eu me conformo ao interesse, quando
113
O vosso império aos abortivos chefes!
129
Da vossa casa o pundonor herdado.
179
Que nos intima a religião, somente
195
Que as cores toma e que reflete a imagem,
1a
Carta
21
Não falta tempo em que do sono gozes:
9a
Carta
221
Que dêem o peito a uns e a outros papa.
13a
Carta
4
Ergueu a Marte e levantou a Jano.
Quadro
de registro de sinalefas na 5a sílaba não antecedidas de pausa:
1º
subconjunto sáfico (epístola + 1ª carta) = 8 ocorrências em 93 versos ou 8,6%)
2º
subconjunto (demais cartas) = 2 em 132 versos ou 1,51% (freq. 5,6 vezes menor)
IV.
A abordagem semântica aplicada ao conteúdo das Cartas
Chilenas vem somar-se à caracterização
formal de seus versos para fornecer outras possibilidades de investigação dos
problemas concernentes à autoria da obra. Dessa forma, procura-se explorar
certas regularidades relativas a conteúdos proposicionais distinguidos a partir
da presença de expressões que ativam pressupostos.
Para efeito de aplicação, define-se “pressuposto”
(ou pressuposição) as informações que podem ser inferidas a partir da
enunciação de sentenças, em conformidade com seu conteúdo intrínseco ou com o
conhecimento compartilhado/agenciado entre interlocutores.
Isto
posto, cabe então assinalar que a presença ou negação do pressuposto numa
sentença pode ser ativada a partir de palavras/expressões particulares (MOURA,
2006) que se fazem registrar em diversos momentos das Cartas Chilenas:
Verbos
factivos epistêmicos (saber, descobrir) e sensitivos/emocionais (lamentar)-
verbos que introduzem fatos dados como certos:
169
Soubeste descrever. Sim, que o teu chefe
Carta
3
215 O
grande Salomão lamenta o povo
217 Eu lamento a conquista, a quem
governa
Carta
5
50 Enquanto
não souberes a lei própria
278 Descobre esta feliz e nova traça:
237 Descobre um ramo, aqui, de bom
comércio:
53 Que os chefes descobriram para terem
Verbos implicativos
(conseguir, esquecer):
Carta 5
44 Não esquecem, enfim, as cavalhadas.
Carta
8
349 E, vendo que Matúsio se esquecia,
Carta
9
259 Do esforço do seu chefe, conseguiram
209 Lhe remate umas casas. e consegue
117 Agora já consegues ter entrada
147 O intento conseguir; só eu, mais
forte...”
Verbos de
mudança de estado (deixou, começou):
Carta 2
192 Que tratem da polícia e que não deixem
206 Este deixa
crescer a ruça barba,
60
Começam a apontar de partes várias.
270 Mas
outra nova conta se começa.
305
Começam os vapores do ribeiro
Carta 8
198 Eu já te deixo em paz, roubando o
mundo,
73 O deixa quase morto, a punhaladas.
182
Deixemos de falar na paga tropa
Carta 10
28 Do intento começado. Tu mil vezes
Verbos
iterativos ( v.+ de novo/novamente/ outra vez; retornar:
44 Fecho os olhos de novo, e cruzo os
braços
45 Para ver
se outra vez me torna o sono.
48 Outra vez, Doroteu, o corpo volto,
49 Outra vez me agasalho, mas que
importa?
378 Que é isso, Doroteu, de novo
pasmas?
379 De novo desconfias da verdade?
392 Acena-lhe o capinha novamente,
393 De novo raspa o chão e logo
investe:
Carta
7
353 Suponho
que juraram novamente
Carta 10
170 Da
sórdida masmorra, novamente,
Carta 11
290 De
novo inquirirás: “Então um chefe,
Expressões temporais (depois de, antes de):
Carta
4
152 Depois de bem moer, a chama ateia
Carta
6
265
Depois de dar seus giros, vai sentar-se
89 Depois de se passarem alguns anos,
197 Depois de cativar a muitos peitos,
Bloqueios
(verbos de atitude proposicional: acreditar que, querer que, imaginar que,
temer que; dizer que, contar que, falar que)- impedem a preservação dos
pressupostos:
Carta
3
72 Talvez, prezado amigo, que imagine
73 Que neste monumento se conserve,
Carta
4
325 Por
quem aqui se conta que pratica
Carta 8
70 Por dizer
que adorara, ao pio Enéias,
313 Com dizer que os gentios, bem que
tinham
Carta
11
11 Um conta
que o ministro, à meia-noite,
303 Por todos os caminhos, e acredita
304 Que o brio e pundonor, que nós
prezamos,
Carta
12
156 Não
pôs, não pôs, amigo, porque disse
157 Que deste passador não tinha
efeitos.
Quadro
do registro de expressões ativadoras de presença ou bloqueio de pressupostos:
1º
subconjunto sáfico (epístola + 1ª carta) = 1 ocorrência em 93 versos ou 1,07 %
2º subconjunto (demais cartas) = 44 em 132
versos ou 33,3% (freq. 31,2 vezes maior)
V.
Breve desvio funcional para Cláudio Manuel
da Costa
Nessa
altura, cabe um parêntese no percurso metodológico para se apontar
prospectivamente a possibilidade de correspondências funcionais entre a 1a Carta e a obra de Cláudio Manuel da Costa. Foram,
assim, identificadas três locuções funcionais merecedoras de destaque nessa 1a Carta (as quais, sugestivamente não ocorrem, por exemplo, em
Alvarenga Peixoto[3]
). São elas: “mais o”, “já do(a/os)” e “o como” presentes nos versos:
70 Que o
gesto, mais o traje, nas pessoas
143 Já
do mistério do Pilar, um dia
241 Eis
aqui, Doroteu, o como param”
Correspondências
em Cláudio Manuel da Costa:
Se não
distingue já do meu cuidado.
Écloga I
Se abalam já do
centro;
Écloga III
Explica-nos, Pastor, o
como a sorte
Écloga XIII
Agora já dos
versos esquecido,
Écloga XV
Se ateia da
memória mais o fogo.
Cantata I (O Pastor Divino)
Fé. Já do monte descendo
Écloga (O Parnaso Obsequioso)
O campo, ou já do rico, ou já do pobre;
Ou já do branco leite, ou do mel doce.
Ode (No nascimento de um filho do Ilmo. e Esmo. Sr. D. Rodrigo José de Menezes...)
Que entoou já do Ródope a montanha.
Ode (Descobrindo-se a traição maquinada por João
Batista Pelle...)
Dádiva, ou prêmio já do Céu benigno,
Fala (Ao Ilmo. e Exmo. Sr. D. Antônio de Noronha...)
Já do Tanais,
do Ina ou já do Volga
Daquele Herói, que livre já do insulto
Canto heróico (Ao Ilmo. e Esmo. Sr. D.
Antônio de Noronha...)
Que os fastos enchem já da Lusa História:
Vila Rica
Em meu dano o parente e mais
o amigo;
Detestávamos já dos
nossos Numes
Já dos rebeldes o esquadrão ferino
Já dos parentes,
dos amigos vossos
Já do pardo
Uraguai busca a corrente;
Mas ai! que já do
Tejo os horizontes
Já dos vossos Senhores; por herança
Conclusão
O
percurso de investigação estilística partiu de um corpo primário de análise – o
conjunto de decassílabos sáficos identificados nas Cartas Chilenas – em cuja distribuição interna assomam,
sensivelmente, a Epístola e a 1a Carta. Os apontamentos
subseqüentes reforçam com ênfase aproximada aquela concentração inicial,
distinguindo em sucessão dois subconjuntos estilísticos que problematizam a
aferição da autoria nos termos atualmente mais votados: a Epístola atribuída a Claudio Manuel
da Costa e as demais cartas a Tomás Antonio Gonzaga. Como se sabe, a discussão
em torno da autoria das Cartas
Chilenas oscilou seja entre críticos diferentes seja para o mesmo
crítico em momentos distintos. No âmbito estilístico, destaca-se o trabalho de
Bandeira (1940) que, mesmo suspeitando da Epístola, é positivamente taxativo quanto a autoria de Gonzaga
para as cartas restantes. O poeta pretende ali encerrar as divergências quanto
a 1a Carta - âmbito que aqui nos toca especialmente –
apontando sobretudo a coincidência extremada na composição sintática e lexical
de dois versos nela presentes (42 Inda
que o vento, que d’alheta sopra/43 Lhes inche os soltos desrinzados panos) com outros constantes de
Marília de Dirceu e sem
paralelo noutros autores suspeitos. De nossa parte, sugerimos apenas que a
própria importância da obra (tanto quanto a exoticidade lexical dos referidos
versos) pode não servir menos como apelo para imitação, involuntária até, do
que para a suposição de uma “assinatura” estilística. Ocorre que ambas as
situações estilísticas – seja a presunção dessa “assinatura”, seja a notória
configuração de subconjuntos sáficos – parecem apontar para a necessidade de
uma solução de conjunto. Isso é o que ainda aponta a funcionalidade
concomitante verificada acima entre Cláudio e a 1a Carta. E nessa direção não seria demais reafirmar a
importância de uma apreciação renovada das asserções sócio-históricas usuais
que acometem a 1a Carta que,
ora professam apressadamente uma contiguidade temporal com a 2a Carta (p. ex.: ARINOS, 1940) ora
se desdobram em impeditivos ideológicos para a autoria de Cláudio:
“monarquista”, “formalista”, “polido” (OLIVEIRA, 1972). Tampouco, nos parece,
deve-se subestimar, com a percepção da necessidade dessa solução de conjunto, o
rendimento da investigação sócio-histórica orientada para o esclarecimento das
vicissitudes nebulosas que ainda pairam sobre os primeiros dias da obra, sua
elaboração primária, transcrição apócrifa e circulação, e que tanto pode
contribuir para o enquadramento de situações estilísticas insistentes como as
que foram aqui expostas.
Bibliografia
ARINOS, A. Introdução: As Cartas Chilenas. In: GONZAGA, T. A. (Critilo). Cartas Chilenas. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1940.
BANDEIRA, M. A autoria das Cartas Chilenas: prova de estilo
favorável a Gonzaga. Revista do Brasil, São Paulo, ano 3, n. 22, 1940, p.1-25.
BRANDÃO, S. C. Atribuição de autoria: um problema
antigo, novas ferramentas. Texto Digital, Florianópolis, ano
2, n.1, 2006. Disponível em <http://www.textodigital.ufsc.br/num02/saulo.htm>.
Acessado em: 19.jun.2008.
CHOCIAY, R. Teoria do verso. São Paulo:
McGraw-Hill, 1974.
GONZAGA,T.A.(Critilo). Cartas Chilenas. Rio de
Janeiro, 1940.
MOURA, H. M. de M. Significação e Contexto: uma
introdução à questões de semântica e pragmática. Florianópolis: Insular, 2006.
OLIVEIRA, T. J. Cartas Chilenas: fontes textuais. São
Paulo: Referência, 1972.
PROENÇA, D. (Org.). A poesia
dos Inconfidentes:
poesia completa de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga
Peixoto. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996.
Artigo recebido em 10/12/07
Artigo aprovado em 18/03/08
_____________________________________________________________
Apêndice A
Epístola
1 Vejo, ó Critilo, do chileno chefe,
15 Trata-se aqui da humanidade aflita;
20 Quem me dirá que da estultice as obras
30 Por inimigos lhes assina os matos,
31 Que atacar manda com guerreiro estrondo.
33 Que devo rir-me e sufocar o pranto
42 Nos seus teatros, paixões humanas,
45 Eu me conformo ao interesse, quando
55 Que teus escritos, de uma idade a outra
56 Passarão, sempre de esplendor cingidos;
60 Tintos do fresco, gotejado sangue.
73 Daqueles chefes, que a remotos climas
78 Pelo
escrutínio da virtude espero
79 Que regulados os seus votos sejam.
82 Eles, amigo, argumentar não devem
85 As longas calças pelo embigo atadas,
89 Não
desordene de seus pais a glória.
90 Nem sempre as águias de outras águias
nascem,
101 É quem a todas o caráter dava.
104 Um cidadão, que da província as rédeas
113 O vosso
império aos abortivos chefes!
114 Lá vai aquele, que de avara sede
117 Se há-de esgotar a aferrolhada soma.
123 Ao grave peso de selada firma!
128 Pais de
família, zelareis vós outros
129 Da
vossa casa o pundonor herdado.
130 Aos vis ataques do atrevido orgulho
131 Hão-de ceder as prevenções mais fortes;
139 Não
sofre aquele, que o vassalo oculte
142 Deixar, morrendo, uma opulenta herança.
143 Um
falso crime lhe figura, aonde
144 Esgote
as forças, que levar procura
145 Além das frias, apagadas cinzas.
155 É cos ministros de menor esfera
158 Gozar da sombra do copado tronco
162 Turbadas águas em maior distância.
168 Destro pintor, em um só quadro a muitos
179 Que nos intima a religião, somente
188 Nem seus teatros de lascívia cheios
190 Pede o congresso, de terror ferido,
193 Este, ó Critilo, o precioso efeito
195 Que as cores toma e que reflete a imagem,
196 Os ímpios chefes de uma igual conduta
199 Que,
nos defeitos de um, castiga a tantos.
200 Lições prudentes, de um discreto aviso,
203 É este o prêmio das fadigas tuas.
207 Nossos delitos, e buscar nos fazes
209 E, mais ainda, pelo sangue herdado?
1a Carta
6
Ergue
a cabeça da engomada fronha,
13 Movem dos troncos os frondosos ramos?"
19 Que então me pintam os ligeiros sonhos.
21 Não falta tempo em que do sono gozes:
30 Levanta o corpo das macias penas;
32 Estranhos casos, que jamais pintaram
34 Agudas febres, desvairados sonhos.
37 O que se
conta dos barbados monos
38 Que à mesa trazem os fumantes pratos?
42 Inda que
o vento, que d'alheta sopra,
43 Lhes inche os soltos, desrinzados panos?
47 E outras que matam, com piedade falsa,
51 Escuta a história de um moderno chefe,
63 E tenha um bando de gatunos filhos,
76 Feições compridas e olhadura feia,
79 Em rouco, baixo som de mau falsete;
88 De cada
bolso da fardeta pendem
89 Listadas
pontas de dois brancos lenços;
104
Seguindo as modas e rapando as barbas.
109 Ou pôr
nas abas do chapéu os dedos.
113
Delgadas pernas e pançudo ventre,
114 Sobejo
de ombros, de pescoço falto;
118 De ser
aos olhos das madamas grato,
143 Já do
mistério do Pilar, um dia,
155 Ah!
pobre Chile, que desgraça esperas!
169 Não
vejo estrelas que, serenas, brilhem,
170 Nem
vejo a lua que prateia os mares:
188 À
noite, em casa do benigno chefe
197 E, mais
ainda, pelo sangue herdado?
203 E a
exemplo destes, o congresso todo.
205 Que
teve mestres, que habitou na corte,
232
Chegou-se o dia da funesta posse:
247 Co’a
mesma pompa com que foi ao templo.
251 Que,
bem que humildes em tropel o sigam,
266 Na rua
esperam que seu amo desça,
269 Todo o
congresso se confunde e pasma.
2a Carta
19 Aonde há
dias que o rapaz que serve
31 E mal
estendo nos lençóis o corpo,
40 Passar
um carro, que me abala o leito.
72 De
quantos presos as cadeias guardam:
102 Ainda
menos do que leves faltas.
107 Igual
quantia de metal diverso.
136 Por vários crimes convencido e preso.
141 Que
tudo pode, que ele aperta e beija.
211
Despido, o braço que só cobre o lenço,
214 De
sujas moças, a quem chamam filhas.
3a Carta
5 Forma
regatos, que os portais inundam.
6 Rompem os
ares colubrinas fachas
22 O seu
Vergílio, o seu Camões e Tasso.
26 Um já
montado na comprida cana
28 Da mãe
formosa, que, risonho, abraça.
30 Nada lhe
importa, nem do mundo sabe;
31 Ao som
do vento, dos trovões e chuva,
34 Ao lento
fogo, com que, sábio, tira
39 De cá,
tão longe, a murmurar contigo.
71 Para
sepulcros seus, os reis do Egito.
90 Moram em
casas de madeira a pique.
98 Uma
formosa, regular varanda;
102 Estão
as armas deste reino abertas
103 No liso
centro de vistosa tarja.
137 Enche a
cadeia de alentados negros.
160 Mostram
os pios corações de feras.
189 De magistrados uma nova classe.
199 Algum
recurso para mor alçada.
220 Não
sabe ainda que nasceu vassalo.
231 Com
grossos rios de salgado pranto.
258 Miúdas
gotas de pisado sangue.
269 Dos cem
açoites, que no meio estava,
295 Por
isso é justo que suspenda a história,
4a Carta
98 Despreza
os meios de poder achá-la.
168 Os
débeis pulsos que, parando, fogem.
171
Cobrem-se os membros de um suor já frio,
172 Os
cheios peitos, arquejando, roncam
174 Que só
lhes descem dos esquerdos olhos;
178 Nenhum
mais bole, nenhum mais respira.
186 Mandar
alqueires dos anéis, tirados
207 Para
crescerem as soberbas obras.
5a. Carta
3 Os secos olhos dos cruéis Ulisses.
9 Por mais que a boca, com a mão, apertes,
25 Obrar um fato bom no seu governo.
30 Quer que, a despesas do senado e povo,
58 Vermelhas capas de galões cobertas,
64 Do rei prudente, que a virtude preza.
94 E, enquanto entende que o senado zela
100 Trocando as varas em chicote e relho.
158 Gemer, debaixo dos pesados ferros."
175 Capas com bandas de vistosas sedas.
191 E julgo, afoito, que a razão foi esta:
199 Até que montam a dourada sege.
267 Onde tremulam do seu reino, as armas;
300 Que em grande cópia nas janelas ardem.
310 Em tosca frase do país somente
311 Escreve trovas, que os mulatos cantem.
320 Que mais de estorvo que de arrimo serve,
322 Lhe tira as forças dos robustos membros
323 E põe-lhe peso, na cabeça leve.
325 Este sucesso, que parece estranho:
6ª. Carta
6 Que vou entrando na formosa praça.
71 Da cor
mimosa com que o céu se veste.
73 Quando
se cobre de cheirosas flores!
81 Aos seus troianos das soberbas ondas,
95 Novo sucesso,
que me aflige e cansa.
112 Ponho
os meus olhos no caduco Adônis:
115 Com ar
risonho no seu peito a prega.
150 Trazem
os pajens as compridas lanças,
166 Logo se
formam em diversos corpos,
231 Doze
tigelas do grosseiro barro.
249 Ações
mais feias, que a modéstia oculta.
283 E,
desta sorte, faz que as belas moças,
358 Um
triste rosto que se alaga em pranto.
385 Para,
com eles acudir-lhe ao peito.
399 Não
segue o meio de fingir-se morto.
413 Que a
pele rompam do ligeiro bruto,
414 Nos
destros dedos do capinha estalam.
7ª. Carta
57 Aqueles
mesmos que as denúncias deram:
91 Que,
enquanto estes as rompem, poupam [???]
8ª. Carta
36 Das
lisas tetas, que no chão lhe arrastam.
41
Fabriquem rumas de gostosos favos
72 Havia
coisa de trezentos anos.
99 Outras
fianças dar à nova renda.
9a. Carta
22 Descanse
o corpo na franjada rede.
51 Que
timbre fazem dos seus próprios vícios?
59 Aos
vícios fogem, porque as penas temem.
137 Quais
as feridas que no corpo mostra?
201 Já vão
vestidos com a curta farda.
205 Lhe
assenta o chefe de cadete a praça.
221 Que
dêem o peito a uns e a outros papa.
265 Os
ternos filhos e os avós cansados.
10a Carta
6 No meu já
roto, destroncado Ovídio.
88 Bebendo
o sangue de inocentes filhos.
223 Se
ninguém mais me oferece, arremato".
229 Ao
mesmo tempo que lhe entrega o ramo.
239 Para
que possa de mais perto vê-lo.
269 Somente
deram, a figura de homem!
294 Fez
novas penas de Moisés a vara.
298 Que
viva isento de delitos graves,
305 Estão
cobertos de insepultos ossos
11a Carta
32 Plantado
todo de loureiros machos!
68 Vai
dando aquelas que primeiro encontra.
89 “Quem
é?” a um vulto, que lhe não responde.
101
Fingindo a moça que levanta a saia
126 Ah! que
isto, sendo pouco, é muito! [???]
129 Aqueles
vícios, a que os gênios puxam.
207 Os
muitos dias que nas obras faltam.
238 Formar não podem uma só palavra.
255
Primeiro que ele no governo morra,
333 Estão
cobertos dos cheirosos cravos.
343 Co’a branca ponta da pendente estola.
372 Dos
férreos copos da comprida espada.
377 Cos
grandes cachos das lustrosas flores.
384 Como
está belo! Como está casquilho!
390 E o seu
cabelo com a mão afaga.
12a Carta
18 Ah!
sofre, amigo, que te gaste o tempo,
35 Nociva
audácia que lhes dá seu amo.
43 Sentado
à mesa dos mais altos deuses.
58 Robério
assim o faz; supõe, coitado,
81 Dá nova
prova de fervor e zelo:
93 Da negra
terra, em que foi gerado.
115 Outras,
que sejam de diversa classe.
127 E que,
nos dias da função, repitam
240
Cobrindo a testa da insolente esquadra.
295 De mal
oculto, que a modéstia cala.
13a Carta
4 Ergueu a
Marte e levantou a Jano.
17 Ensinado
por uma branca cerva,
Apêndice B
Vocábulos que passaram a ser fortemente
acentuados na posição da 6a sílaba com a caracterização do decassílabo heróico
e que poderiam suscitar alguma dúvida na classificação:
Ler
164 Que já
chegam a ler as cartas tuas: (Epístola - heróico)
225
Escusavas de ler os entremezes, (2a Carta - heróico)
323 Sabendo apenas ler redonda letra, (7a Carta –
acentos das sílabas 4a, 6a e 8a)
30 Não
careces de os ler nos meus escritos. (10a Carta - heróico)
166 De
vivo pejo, ao ver os seus delitos, (Epístola – acentos da 4a, 6a e 8a)
26 Porém
que têm que ver estes delírios (1a Carta – acentos da 4a e 6a)
283
Esforço para ver correr o sangue, (3a Carta – heróico)
56 Ainda o hás-de ver obrar milagres. (6a Carta –
acentos da 4a, 6a e 8a)
425 Com rosto enxuto ver
tamanhos males ?
(6a Carta – acentos da 4a, 6a e 8a)
191 Mais faminto de ver
galões e fardas (9a Carta – heróico)
24 E quem se alegra, ao ver que a sua moça (11a
Carta – acentos da 4a, 6a e 8a)
217 Com rosto baixo, a ver Angola ou Índia”. (12a Carta
– acentos da 4a, 6a e 8a)
239 Apenas pode ver quem mora em Chile! (12a Carta –
acentos da 4a, 6a e 8a)
80 Sem ser velho, já tem cabelo ruço, (1a Carta –
heróico)
111 Que entre os criados tem respeito de aio: (1a
Carta – acentos da 4a, 6a e 8a)
149 Que
num corpo, que tem de nabo a forma, (1a Carta – heróico)
216 Que sobre o trono tem um rei menino; (3a
Carta – acentos da 4a, 6a e 8a)
261 Este
diz que não tem algum delito (3a
Carta – heróico)
282 Que
ele, Cristo, não tem nenhumas rendas (4a Carta – heróico)
111 Ao
estado que tem o rei do Congo! (6a Carta – heróico)
255 Que
alguma noção tem das sacras letras, (6a Carta –heróico)
222 Aquele
que não tem cativo, ou jóia, (8a Carta – heróico)
59
Expõe-lhe que não tem com que alimente (10a Carta – heróico)
150 Para a vitória tem melhor direito; (10a Carta
– heróico)
300 O
sistema que tem tão vil canalha. (11a Carta – heróico)
181 Com
fazê-las no ar em dois pedaços. (6a Carta – heróico)
197 Aceita
a oferta em ar de majestade, (6a Carta – acentos da 4a e 6a)
194 Em
honra dele ser lugar-tenente. (5a Carta – acentos da 4a, 6a e 8a)
37 Devem
daqueles ser que mais os pagam. (6a Carta – acentos da 4a, 6a e 8a)
49 Que
dizem filha ser do seu lacaio. (6a Carta – acentos da 4a, 6a e 8a)
34
Cuidando que, por ser mui cedo ainda, (11a Carta – heróico)
173 Que,
conhecendo ser a queixa justa, (12a Carta – acentos da 4a, 6a e 8a)
154 Se
tiram muito bem os dias santos. (1a Carta – acentos da 4a, 6a e 8a)
63 E que
vêm muito bem ao nosso caso. (2a Carta – acentos da 4a, 6a e 8a)
97 E sabes
muito bem que pena incorram (3a Carta – acentos da 4a, 6a e 8a)
255 Só
sabemos mui bem que o bom tenente, (4a Carta – heróico)
290 Que
ele sabe mui bem que o mesmo Cristo (4a Carta – heróico)
276 Podia
muito bem querer meter-se (5a Carta - acentos da 4a, 6a e 8a)
354 Não
pode muito bem à nossa historia, (5a Carta - acentos da 4a, 6a e 8a)
170 Aqui
se mostra bem que as outras mocas (11a Carta – acentos 4a, 6a e 8a)
<REVISTA TEXTO
DIGITAL>
[1] Mesmo assim, no intuito de preservar a
importância desse aspecto da versificação, foi possível realizar uma
investigação preliminar identificando vocábulos na 6a sílaba que
passaram a ser “fortemente” acentuados (devido a ausência de acento da 4a
sílaba, caracterizando assim o heróico) e cuja situação talvez pareça
passível de dúvida. Tais casos foram
preventivamente descartados para a caracterização do tipo sáfico e são
apresentados no Apêndice B.
[2]
A numeração dos versos segue aquela
constante no livro Cartas Chilenas: fontes textuais de Tarquínio
Oliveira.
[3] Constante em Domício Proença Filho (org.) – A
Poesia dos Inconfidentes – Poesia completa de Cláudio Manuel da Costa,
Tomás Antonio Gonzaga e Alvarenga Peixoto, Rio de Janeiro, Nova Aguilar,
1996.