<REVISTA TEXTO DIGITAL>

ISSN 1807-9288

- ano 3 n.2 2007 –

http://www.textodigital.ufsc.br/


FERNÁNDEZ, K. de F. S. O corpo lê a holopoesia. Texto Digital, Florianópolis, ano 3, n. 2, Dezembro 2007.

 

 

O CORPO LÊ A HOLOPOESIA

THE BODY READS THE HOLOPOETRY

 

 

Karina de Freitas Silva Fernández

Doutoranda em Comunicação e Semiótica

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

São Paulo, Brasil

e-mail: karina_jrj@yahoo.es

 

 

RESUMO: Este artigo tem por finalidade analisar a nova forma de leitura do texto literário proposta pela holopoesia. A partir do estudo das características específicas deste tipo de poema, pretendemos discutir a relação entre leitor e texto, destacando para a utilização do corpo no ato da leitura. Como objeto de estudo escolhemos obra do brasileiro Eduardo Kac posto que tem deixado relevante contribuição para o estudo da recepção na arte contemporânea. 

 

PALAVRAS-CHAVE: Holopoesia. Corpo. Leitura

 

ABSTRACT: This article has the objective to analyze the new form of reading of the literary text proposal by the holopoetry. From the study of the specific characteristics of this type of poem, we intend to argue the relation between reader and text, pointing for  the use of the body in the act of the reading. As study object we choose the workmanship of the Brazilian Eduardo Kac because excellent contribution for the study of the reception in contemporary art.

 

KEYWORDS: Holopoetry. Body. Reading

 

 

 

1    INTRODUÇÃO

 

Eduardo Kac, artista brasileiro das novas mídias, desenvolveu, entre 1983 e 1993, a holopoesia, tipo de arte que segue, por um lado, os preceitos de construção poética estabelecidos pela arte concreta dos irmãos Campos, Haroldo e Augusto, que questionaram a forma tradicional de apresentar a palavra no espaço, criando, assim, uma estética visual para a poesia; e, por outro lado, segue a nova matriz de arte moderna, difundida especialmente por Hélio Oiticica e Lygia Clarck, que propuseram uma forma artística que se realiza a partir de sensações corporais e emoções do leitor/espectador.

 

Ao todo, Kac produziu 23 holopoemas no período de 10 anos (1983-1993), entre os quais figuram Holo/Olho (1983), Abracadabra (1984/85), Chaos (1986), Wordsl 1 e 2 (1986), Quando? (When?) (1987/88), Lilith (1987/89), Phoenix (1989), Albeit (1989), Shema (1989), Multiple (1989), Omen (1990), Souvenir D’Andromedra (1990), Amalgan (1990), Eccentric (1990), Zero (1991), Adrift (1991), Adhuc (1991), Maybe then, if only as (1993)[1]. Este tipo de arte surgiu como um projeto de pesquisa, pois pretendia investigar as possibilidades de intercalar técnica holográfica e arte verbal.

 

Trata-se de poemas construídos a partir de hologramas o que determina elevado grau de sofisticação. Em resumo, a técnica holográfica consiste em reproduzir, em espaço tridimensional, um objeto luminoso, de forma que, se corretamente iluminado, reconstrói a informação ótica no espaço.

 

Eduardo Kac (2004) explica que todas essas produções, de modo geral, expressam “mudanças globais em curso neste fin de siècle, tais como o relativismo cultural promovido pelo pós-estruturalismo e pela desconstrução, o novo pensamento impulsionado pelas técnicas digitais de visualização, o holismo das redes de telecomunicação, e o cyberespace [cyberespaço] interativo dos terrenos emergentes da realidade virtual e da telepresença”. Todos os holopoemas, de forma singular, investigam uma “sintaxe de interrupções, uma linguagem de animação que se afasta de e que rebata interpretações conclusivas”.

 

Sua obra intenciona transgredir as formas canônicas de reprodução artística, ao estabelecer novos princípios de construção poética, tais como o domínio da luz, a focalização no espaço, a imaterialização da imagem, a neutralização da gravidade e a superação da perspectiva. O artista conseguiu, pela holografia, incorporar a linguagem poética aos processos visuais fornecidos por essa técnica, apresentando letras e palavras que flutuam sobre um fundo negro, espaço simultaneamente real (para fora da superfície do suporte) e virtual (para dentro da superfície) (ROELS JR; apud KAC, 1995, p. 08).

 

O artista Eduardo Kac, no artigo “Holopoesia y más allá” (1997), define o poema holográfico, ou holopoema, como sendo aquele que se organiza de forma não seqüencial em ambiente tridimensional. Este poema só adquire existência quando o leitor o lê movendo-se ao redor do holograma, reconfigurando a ordem das letras no espaço e estabelecendo novas onstruções sintáticas. Arlindo Machado (2001) explica que, quando o holopoema explora as possibilidades de uma escrita tridimensional, não há uma seqüência “lógica” de leitura, muito menos uma hierarquia. O ângulo adotado pelo leitor em relação ao arranjo tridimensional faz com que a estrutura da palavra se altere.

 

Quando acontece de o holopoema explorar as possibilidades de uma escritura verdadeiramente tridimensional, o resultado pode ser desconcertante, pois ele coloca o leitor diante de um texto paradoxal, um texto onde as palavras não estão mais arranjadas por nexos absolutos de linearidade e cujas relações sintáticas encontram-se em permanente transformação (MACHADO, 2001, p. 167).

 

Acerca do processo de registro gráfico do poema, Eduardo Kac (1995) afirma que as letras no espaço tridimensional não possuem o caráter de precisão da letra impressa à tinta na página, visto que adquirem volume e forma diferentes quando imersas nesse novo ambiente. O espaço holográfico permite que os vocábulos nele inseridos tenham volume, espessura e cores diversas que variam ao passo que o leitor se move em relação ao poema.

A forma como é produzido o holopoema possibilita a participação do leitor através do movimento do próprio corpo, permitindo a multiplicação de sentidos do texto a partir de ângulos diferentes tomados pelo receptor. A participação do leitor/espectador é ativa e real, na medida em que sua relação com o corpo deixa de ser apenas retiniana (percepção visual) e passa a implicar a atividade corporal para a significação da obra. A dinamicidade da obra é alcançada por meio de três princípios básicos uma sintaxe perceptual, a exigência de uma visão binocular e o espaço descontínuo.

 

2    A SINTAXE PERCEPTUAL

 

A padronização da forma de pensar, ler e compreender o mundo determina uma perspectiva monocular da arte pictórica, pressupondo o olho fixo no espaço e geralmente orientado em uma única direção. Se os olhos captam imagens diferentes, na maioria das vezes, isso é imperceptível. No holopoema, como a leitura parte de uma ordem mutante, o leitor, a partir de uma posição espacial específica, mas transitória, impõe à obra uma gramática sem contornos definidos. A sintaxe do holopoema é, pois, perceptual, concebida de forma a criar um sistema móvel de significantes, posto que as palavras não estão presas a uma superfície, mas flutuando no espaço.

 

A formulação técnica da holopoesia permite ao autor chegar a um resultado que lhe favoreça determinar as possibilidades de combinação entre as letras (objetos tridimensionais) e os ângulos de visão do espectador (paralaxe). Como no processo criativo de outras formas poéticas, o autor de holopoemas pré-estabelece formas de percepção, mas de maneira alguma sabe, exatamente, os diversos caminhos a serem definidos pelo leitor.

 

A sintaxe alinear da holopoesia se assemelha à noção de fluxo já trabalhada pela poesia concreta. Nesse processo evolutivo da poesia experimental, os novos recursos tecnológicos foram fundamentais para determinar a forma como o leitor perceberia a organização sintática da poesia.

 

O holopoema Eccentric (1990)[2], por exemplo, é formado por nove palavras (shadows, sounds, smells, nos, nevers, nothings, that, memories, erase – sombras, sons, cheiros, mãos, nunca, nadas, que, memórias, apagam) que não são perceptíveis ao mesmo tempo. Desde um ângulo de visão do observador, as palavras sugerem interpretações diferentes. Por exemplo, substantivos no plural (sounds, smells, shadows) podem adquirir função de verbo no presente. Ou, ainda, o substantivo nothings pode evocar a sentença not this sign (este signo não).

 

Sobre a alternância de funções gramaticais determinadas pelas diversas posições do leitor em relação aos vocábulos imersos no espaço tridimensional, Arlindo Machado (2001, p. 169), explica que essa ambigüidade estrutural associada aos efeitos cromáticos da holografia possibilita a ocorrência de diversas combinações que segundo Julio Plaza, assemelha-se “à própria performance do pensamento ao operar por associações” (PLAZA; apud MACHADO, 2001, p. 169).

 

3    A VISÃO BINOCULAR

 

Aliada a essa noção de “sintaxe perceptual” está a binocularidade, característica própria da holopoesia. O holopoeta, no artigo “Sintaxe, leitura e espaço na holopoesia” (1987, p. 15)[3], recorda que, desde que a poesia se tornou arte escrita, ou impressa, vem passando por um processo de criação visual, no qual palavra e imagem se fundem, mas que, ainda assim, mantém o trabalho de observação monocóspica. Kac argumenta que ler um holopoema propõe uma nova maneira de ler o poema, na qual “o cérebro está constantemente mudando o modo de ‘montar’ mentalmente o texto, com base nos inputs recebidos durante as diferentes fixações dos olhos sobre as letras no espaço” (KAC, 1995, p. 18).

 

Embora todos os holopoemas apresentem essa especificidade, destacamos, Abracadabra (1984/85), Albeit (1989) e Eccentric (1990)[4] que trabalham bem a descontinuidade sintática. As nove palavras que constituem o poema Eccentric não são percebidas simultaneamente no espaço tridimensional. As palavras só se tornam perceptíveis quando o leitor recria um código tipológico de leitura. Após encontrar as palavras de forma diagonal, ele opta por uma leitura para cima e para a esquerda alternada ou sucessivamente, ou para baixo e para a direita ao mesmo tempo, contribuindo para a criação de uma sintaxe turbulenta. Essa estrutura permutativa da poesia holográfica é lida no espaço e tempo simultâneos, a partir de olhos que captam as informações e as enviam ao cérebro de forma diferente, de acordo com a posição relativa do observador.

 

4    O ESPAÇO DESCONTÍNUO

 

Outro aspecto relevante é o espaço descontínuo como campo de produção do holopoema. Este tipo de obra apresenta uma complexidade estrutural, caracterizada pelo emprego de alguns raios referenciais durante a produção artística que pré-determina a região do espaço onde certos elementos serão posicionados e quais ângulos específicos podem se tornar perceptíveis. Segundo Eduardo Kac (1995, 87)[5] o potencial da tecnologia holográfica para produzir poesia é justificado pela possibilidade de organizar a informação não-linearmente. O artista aponta que o que há de comum em seus holopoemas é o fragmento do espaço em “zonas de visão”. O leitor é convidado a oscilar com o holopoema, contudo não consegue perceber o todo de nenhum ângulo.

 

A descontinuidade do espaço na holopoesia permite que objetos de referência da holografia possuam existência física e material e que a linguagem seja o ‘objeto’ imaterial. Eduardo Kac explica que, no holopoema, “a imaterialidade dos ‘materiais’ da linguagem escrita (forma verbal e sintaxe) se potencializa plenamente” (1987, p. 09)[6]. O espaço tridimensional é determinado pelo “antigravitropismo”, ou seja, as formas flutuam no ar superando as noções rígidas estabelecidas pela ação da gravidade.

 

Os elementos dispersos em profundidade não permitem definir uma posição fixa para a letra, pois só podem ser configuradas nas posições variáveis do observador. O holopoeta explica que a configuração verbal é codificada da imagem mental da linguagem e não da imagem visual, apresentada em caracteres planos e/ou estáticos. Isso ocorre porque não há simultaneidade entre as formas fotônicas.

 

O holopoema Abracadabra[7] produzido com o auxílio de Fernando Catta-Preta (1984/85) é, segundo Eduardo Kac, aquele que melhor dramatiza o conceito de espaço descontínuo. O holopoeta explica que a utilização de três raios de referência incidentes sobre o filme holográfico durante a produção de imagem possibilitou a pré-determinação probabilística das regiões espaciais onde as letras seriam perceptíveis. O que poderia ser uma limitação da atuação do leitor, visto que a produção artística destaca a posição das letras e os ângulos específicos que as fazem perceptíveis, torna-se algo bastante relevante neste tipo de produção artística. O leitor dança diante do poema para que consiga reunir o conjunto completo de letras que formam a palavra. Ele interage com a obra lendo-a descontinuamente.

É impossível que o leitor consiga ler a palavra “Abracadabra” em um único golpe de vista. Segundo o autor da obra, a letra A foi disposta em image plane (parte dentro e parte fora do holograma) de modo a estar no centro do campo visual. As consoantes, por sua vez, são distribuídas ao redor da vogal A.

 

5    A RELAÇÃO DO LEITOR COM A HOLOPOESIA

 

A existência de uma obra artística está inteiramente relacionada à interação com o leitor. Contudo, a forma de participação-intervenção do leitor se altera nos diferentes tipos de criação. A holopoesia propõe uma forma de interação que solicita ao leitor/espectador uma evocação dos processos mentais e uma interação corporal para realizar a obra.

 

Ela cria um ambiente tridimensional no qual o leitor/espectador lê a obra através dos diversos ângulos de percepção. Enquanto lê o holopoema no espaço, movendo-se ao redor do holograma, reorganiza a sintaxe do poema e, por conseqüência, cria novos textos. Em outras palavras, a cada nova organização sintática, possibilitada um novo conteúdo, dado que, como no caso dos holopoemas Eccentric, de Eduardo Kac ou no Poema-bomba, de Augusto de Campos, a cada nova organização sintática, as letras e palavras flutuam de tal forma que a mudança de ângulo de visão pode possibilitar a criação de uma sintaxe diferente.

 

Eduardo Kac (1987, p.15)[8] explica que a percepção do holopoema não se dá nem pela linearidade nem pela simultaneidade, mas ocorre por meio dos fragmentos vistos pelo espectador a partir das decisões que tome, dependendo de sua posição relativa para com o poema. O processo digital permite uma maior precisão na manipulação dos elementos de modo que o leitor “perceba fragmentações e metamorfoses animadas no interior de uma zona ou possa incorporar estas e outras possibilidades de holopoemas híbridos que integrem elementos óticos e digitais” (KAC, 2004).

 

O holopoema, como expressão artística interessa pela criação da sintaxe móvel, alinear, descontínua e dinâmica. Esse tipo de poesia pertence de certa forma à poesia experimental, visto que apresenta uma fusão entre o visual e o verbal. Contudo, a palavra é tomada em sua forma imaterial, como um signo mutável, livre da página palpável. Por estar em constante e irregular movimentação, exige do leitor uma leitura dinâmica, pois através das diferentes perspectivas que adote, encontrará textos diversos e conexões entre as palavras no espaço vazio.

 

Eduardo Kac, acerca dessa evolução da poesia visual, admite que algo que as relacione às formas vanguardistas de escrita e a holopoesia. Aquela deixou clara uma possibilidade de trabalho da palavra em um espaço tridimensional que só se teria tornado possível com a combinação de holografia e arte. Os poemas visuais associados aos movimentos do Futurismo, Cubismo e Concretismo tiveram como marca a realização de novas tipografia e técnicas de impressão, buscando romper com a estrutura linear que antes caracterizava a poesia. Ou seja, deixaram de lado a linha unidimensional como base da escrita, assumindo a superfície bidimensional da página como unidade de composição. Recordemos o poema Um Lance de dados, de Mallarmé.

 

Entretanto, há algo que diferencia esses tipos de obra. De acordo com Eduardo Kac, os elementos utilizados para produzir poesia e arte visual em suporte impresso se interagem em conjunto e simultaneamente no plano da imagem criando uma unidade. O que de fato ocorre é uma utilização do espaço bidimensional de modo que não haja uma hierarquia entre as palavras e entre as frases. Embora apresentem a estrutura alinear, as letras possuem cores e tamanhos específicos, cada letra está fixada em um ponto determinado da página e tem uma posição espacial relativa em relação a outras letras. No caso da holopoesia, no espaço tridimensional, as letras têm dimensões e cores diferentes que mudam de acordo com o ângulo de visão do leitor do poema. Segundo o artista, holopoemas “empregam sintaxes especiais inventadas, ou seja, o que de fato ocorre no processo de leitura é diferente de uma obra para outra” (por e-mail, 09/11/2004)[9].

 

Um exemplo disso é a tentativa do leitor de reunir as imagens desordenadas e caóticas é o holopoema Adrift (1991), que em português seria traduzido como “À Deriva”. Este poema é formado de ao menos sete palavras (subtle, lightning, when, gears, and butterflies, breathe, em português, respectivamente, relâmpago, sutil, quando, engrenagens, e borboletas, respiram) que se dissolvem no espaço tridimensional. As letras que compõem as palavras flutuam de modo irregular ao longo dos vários eixos Z (profundidade). A única exceção é a palavra breatlhe (respiram) que aparece integrada ao campo luminoso. Um vento imaginário sopra o vocábulo fazendo com que suas letras se dispersem para longe de sua posição original e se dissolvam no campo de luz. Entretanto, o efeito só ocorre a partir do olhar do observador que vive a sensação de instabilidade das palavras as quais ficam flutuando no espaço a espera de que o leitor as atualize.

 

O sentido do poema reside completamente no leitor que pode proceder a leitura a partir de qualquer ponto. Pode ler a letra que se encontra mais próxima ou a mais distante. Segundo o poeta, quando o leitor observa a palavra lightning (relâmpago), praticamente não nota a existência de outras palavras se tiver interagindo com a obra desde um ponto extremo daquela zona. Contudo, à medida que redireciona o seu campo de visão a palavra vai desaparecendo para dar existência às palavras subtle (sutil) e when (quando), que também vão desaparecendo. A mobilidade dessas palavras que aparecem e desaparecem de acordo com a posição espacial do leitor determina a fluidez de leitura do holopoema.

 

Neste poema, as sete palavras formariam uma frase: Subtle lightning when gears and butterflie breathe (relâmpago sutil quando borboletas e engrenagens respiram). A utilização do fenômeno natural (relâmpago) se traduz na sintaxe descontinua que a holopoesia pretende apresentar. Eduardo Kac (1995) explica que se trata, pois, de “desestabilizar a linguagem, torná-la desconfortável, fazê-la entrar em colapso, fazer a linguagem cair e quebrar e se pulverizar, e se transformar, escapar por entre seus dedos”.

Ainda assim, essa é apenas uma possibilidade de leitura que não se fecha, já que o poema se transforma a cada nova experiência vivenciada pelo leitor. Além disso, o holopoeta deixa claro que o intuito desse tipo de arte literária não é necessariamente transformá-la em oralidade. Ao contrário, é esse um tipo de poema que não é concebido para ser recitado. A experienciação, neste caso, está em investigar as possibilidades de linguagem, a especificidade da palavra escrita.

 

A holopoesia permite que o espectador não se encontre em estado de contemplação do ambiente, ao contrário, exige que esteja ativo, alterando a sintaxe do texto e, consequentemente, gerando novos significados para a obra. Entretanto, essa experienciação do leitor só é possível a partir dos reais movimentos de seu corpo diante do holopoema, os quais transformarão o espaço tridimensional. Assim, trata-se de uma experiência de leitura kinestética, ou seja, envolve todas as extensões sensório-motoras do leitor/espectador.

 

6    A RELAÇÃO ENTRE O CORPO E POESIA HOLOGRÁFICA

 

Os holopoemas avançam para a investigação acerca da atuação do leitor/espectador com o texto quando é convidado a realizar uma leitura a partir dos movimentos do seu próprio corpo. Os movimentos do corpo geram reconfigurações textuais. Nesse sentido, a holopoesia é interativa, já que no ato da leitura o leitor/espectador pode refazer as informações e participar da criação da obra, que deixou de ser individual (própria do autor). Isso tampouco é uma inovação trazida pela holopoesia. Basta recordarmos o Lance de Dados, do poeta francês Mallarmé cuja estritura alinear permitia o leitor partir de qualquer ponto e gerar outros textos que nIsso tampouco é uma inovação aquele a ser lido linearmente (da esquerda para a direita, de cima para baixo).

 

Obviamente, pensar interatividade pelos pressupostos atuais nos levaria a perceber que a holopoesia é mais participativa que interativa. Gianetti (2006) afirma que, assim como devemos fazer distinção entre sistemas clicáveis e sistemas interativos também devemos fazê-lo entre os sistemas participativos e os, de fato, interativos. Segundo Peter Weibel (2006), uma arte interativa pressupõe a atuação de duas ou mais entidades em constante diálogo o que permite a alteração do sistema. É o que Kac realiza anos mais tarde com sua arte transgênica, em obras como GFP-Bunny (2000) e The Eight Day (2001).

 

No caso da holopoesia nos referimos à interação na relação texto e leitor tão exaustivamente trabalhada pelos teóricos da recepção a partir de fins da década de 60 do século passado. Para Wolfgang Iser (1996), o leitor interage com a obra a partir do repertório de leitura que possua e de sua capacidade associativa. A obra é aberta, como teorizou Umberto Eco, e o autor deixa lacunas no seu texto a serem preenchidos pelo leitor. Embora trabalhe com a palavra “imaterial”, Kac também deixa em seu texto flutuante vazios a serem completados. O curioso é que, na relação holopoesia e leitor, a leitura já se inica pelo exercício do corpo. Primeiro é preciso configurar o texto, dá-lhe uma sintaxe “legível”, para que possa lê-lo e interpretá-lo.

 

Numa comparação entre livro impresso e holopoema busca mostrar que um dos aspectos que o diferem é a relação do indivíduo com o ambiente. O leitor interage com o livro impresso por meio de processos mentais, enquanto a correlação com a holopoesia se dá também na interação corpo-ambiente. Embora, no caso do livro impresso o leitor se relacione corporalmente com o volume do objeto, parando a leitura, levantando-se para buscar outro exemplar referido na nota da página, o processo de relação do corpo com a holopoesia é diferente.

 

Dessa forma, o leitor se torna uma esécie de co-autor, posto que  o receptor, durante o ato de leitura, faz um novo percurso criando, então, um texto que será diferente daquele que se formará em um novo contato com a obra. É algo distinto a ter um produto final como um poema de Drummond cuja multiplicidade de sentidos surge a partir do repertório de leitura e da capacidade de associações, e, ainda, os aspectos históricos e culturais nos quais se inserem o texto no momento da leitura.

 

A holopoesia propõe, então, uma poesia que corresponde à descontinuidade do pensamento. O leitor, a partir de sua posição em relação ao poema, oferece sentido aos fragmentos aleatórios que o compõem. Assim, ele se torna peça fundamental para atribuir sentido à obra.

 

Ao ressaltar o papel do leitor em sua obra, Eduardo Kac lhe propõe uma nova função baseado no papel que o conceito de interatividade lhe confere. O holopoeta (por e-mail, 2004) explica que o leitor de um holopoema “escreve” um texto à medida que explora visualmente a obra. O observador, ao buscar as palavras e seus elos, vê o texto se transformar no espaço tridimensional, mudar cores e sentidos, se dissolver e desaparecer. Como as palavras estão móveis e livres na superfície, é o movimento corporal do leitor que determinará o sintaxe do texto. O autor acrescenta que, à proporção que o leitor se move continuamente, muda-se o foco ou princípio organizativo da sua experiência, ao olharem através de diversas zonas de visão (KAC, 1993). Ele pode se movimentar para cima e para baixo, para frente e para trás, para a esquerda e para a direita, rápido ou lento, estabelecendo associações entre os signos presentes. O leitor/espectador percebe o volume, as cores, as transparências, o surgimento e o desaparecimento de imagens. O fato de as palavras estarem livres na superfície tridimensional permite uma leitura dinâmica, uma vez que o leitor necessita mover o corpo em redor do texto para descobrir a relação existente entre as palavras e, assim, poder dar-lhes significação.

 

A holoposia e as produções posteriores de Kac (telepresença e arte transgênica) – e outros tipos de arte mais recentes que trabalham com as novas tecnologias – colocam em evidência o corpo que se transforma em uma das grandes questões da arte contemporânea. Derrick de Kerckhove (1999), sobre o processo de interação entre  a obra e o leitor/espectador, argumenta que a arte interativa convida o usuário a interiorizar os sentimentos a fim de realizar novas conexões. Este processo de reorganização do sistema sensorial requer a reestruturação de nossas respostas sensoriais de acordo com os estímulos a serem experimentados. A holopoesia, por exemplo, só adquire sentido quando o leitor se move diante do texto, "cambiando contínuamente el enfoque o centro o principio organizacional de su experiencia al ver a través de zonas dispersas"[10] (KAC, 1987). No entanto, Kerckhove concluiria o pensamento afirmando que, embora a arte interativa coloque em evidência o corpo e o sistema nervoso, sua principal função é a de atualizar a psicologia e a sensibilidade da cultura.

 

7    CONCLUSÃO

 

A holopoesia está inteiramente relacionada à interação com o leitor. Ela deu conta de criar um ambiente tridimensional no qual o leitor/espectador participa na obra através dos diversos ângulos de percepção que adote. Enquanto lê o holopoema no espaço, movendo-se ao redor do holograma, o leitor determina uma reorganização sintática e, por conseqüência, a gera novos textos e significados par ao texto.

 

Em suma, o holopoema é uma forma artístico-literária que tem como uma de suas características principais solicitar o movimento do próprio corpo do receptor, ultrapassando a leitura apenas retiniana. Isso acaba provocado uma multiplicação de sentidos do texto, posto que este não está pronto e depende do leitor para que tome uma forma no espaço tridimensional. A participação do leitor/espectador é ativa e real. A atividade corporal implica a significação da obra.

 

REFERÊNCIAS

 

ECO, Umberto. Obra aberta. Trad. Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva, 2003.

 

GIANETTI, Cláudia. Endo-Aesthetics: from ontological discurse to systemic argumentation. Disponível em <http://www.medienkunstnetz.de/themes/aesthetics_of_the_digital/>. Acesso em: 07 de setembro de 2006.

 

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. Johnes Kretschmer. São Paulo: Editora 34, 1996.

 

KAC, Eduardo. Holopoesía y más allá. Trad. Alejandro Espinoza Galindo, 1997. Texto disponível em <http://www.angelfire.com/tx/AVTEXTFEST/ensayo/kac.html>.

 

_______. Holopoetry: essays, manifestoes, critical and theorical writings. Lexington: New Media Editions, 1995. Texto disponível em <http://www.holonet.khm.de/ekac/holopoetrybook.html>.


_______. Lance 36. Trad. Carlos Machado. Oroboro, Curitiba, n.1, 2004. Texto disponível em <http://www.ekac.org/move36.portuguese.html>

 

KERCKHOVE, Derrick. A arquitetura da inteligencia: interfaces do corpo, da mente e do mundo. In: DOMINGUES, Diana (Org.). Arte e vida no século XXI: tecnologia, ciência e criatividade. São Paulo: Editora UNESP, 2003.

 

_______. Inteligencias en Conexión. Barcelona: Editorial Gedisa, 1999.

 

MACHADO, Arlindo. Corpos e mentes em expansão. In: O Quarto Iconoclasmo e outros ensaios hereges. Rio de Janeiro: Contracapa, 2001, p. 70-93.

 

_______. Hipermídia: o labirinto como metáfora. In: DOMINGUES, Diana (Org.). A Arte no Século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. p. 144-154.

 

_______. O sonho de Mallarmé. In _______. Máquina e imaginário: o desafio das poéticas tecnológicas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. p. 165-192.

 

WEIBEL, Peter. La imagen inteligente: ¿neurocinema o cinema cuántico?. Disponível em  <http://www.pucsp.br/~gb/texts/La imagen inteligente.pdf>. Acessado em: 20 de novembro de 2006.

 

LINK-SE:

 

www.ekac.org – Neste site estão imagens de todos os holopoemas produzidos por Eduardo Kac.

 

 

 

 

Recebimento 8/10/2007

Aprovação 23/11/2007

 

 

 

<REVISTA TEXTO DIGITAL>

 

 



[1]     As imagens dos holopoemas podem ser encontradas no link http://www.ekac.org/ allholopoems.html

[2]     Link do holopoema: http://www.ekac.org/allholopoems.html.

[3]     In: KAC, Eduardo. Holopoetry: essays, manifestoes, critical and theorical writings. Lexington: New Media Editions, 1995

[4]     As imagens dos holopoemas podem ser encontradas no link http://www.ekac.org/ allholopoems.html.

[5]             In: KAC, Eduardo. Holopoetry: essays, manifestoes, critical and theorical writings. Lexington: New Media Editions, 1995

[6]     Idem.

[7]             As imagens dos holopoemas podem ser encontradas no link http://www.ekac.org/ allholopoems.html.

[8]             In: KAC, Eduardo. Holopoetry: essays, manifestoes, critical and theorical writings. Lexington: New Media Editions, 1995.

[9]             Algumas inserções opinativas de Kac neste trabalho tiveram como fonte troca de

      e-mails entre a pesquisadora e autora deste artigo e o artista.

[10]    Tradução minha: “mudando continuamente o enfoque ou o centro ou o princípio

      organizacional de sua experiência ao ver através das zonas dispersas”.