<REVISTA TEXTO DIGITAL>
ISSN 1807-9288
- ano 3 n.1 2007 –
http://www.textodigital.ufsc.br/
MARTINS, P. F. da S. Poesia e
tecnologia. Texto Digital, Florianópolis, ano 3, n. 1, Julho 2007.
POESIA E TECNOLOGIA
POETRY AND TECNOLOGY
Patrícia Ferreira da Silva Martins
Mestre
em Letras e Lingüística
Universidade
Federal de Goiás
Goiânia,
Brasil
patricia@wsmartins.net
RESUMO: Este trabalho apresenta um
breve relato sobre o impacto das mudanças nos meios materiais sobre nosso
pensamento e subjetividade. Também apresenta um comentário sobre dois poemas
produzidos no contexto das novas tecnologias: “Fênis penis” (2000) de Arnaldo Antunes e “Perhaps”
(1998/2000) de Eduardo Kac. O trabalho é resultado do
projeto de pesquisa “Poesia lírica brasileira contemporânea: implicações
teóricas e crítica”.
PALAVRAS-CHAVE: Tecnologia. Poesia. Antunes.
Kac.
ABSTRACT: This work shows a
brief comment on the impact of material media’s change over our thought and
subjectivity. It also describes two poems built in the context of the new
technologies: “Fênis pênis”
(2000) by Arnaldo Antunes
and “Perhaps” (1998/2000) by Eduardo Kac. The work is
part of the research project “Brazilian contemporary lyric poetry: theoretical
implications and criticism”.
KEYWORDS: Tecnology. Poetry. Antunes. Kac.
Como observa Jorge Luiz Antonio (2007), o uso
da mão, da máquina ou do computador para escrever não estabelece somente etapas
do nosso percurso histórico. Cada um desses atos representa, sobretudo,
procedimentos técnicos que conformam nossa maneira de nos expressar. A partir
desta colocação, procuramos apresentar um comentário sobre o impacto das
mudanças nos meios materiais sobre nosso pensamento e subjetividade. Em
seguida, apresentamos um comentário sobre dois poemas produzidos por
poetas/artistas brasileiros com a utilização de recursos tecnológicos
específico: “Fênis pênis” (2000) de Arnaldo Antunes e
“Perhaps” (1998/2000) de Eduardo Kac.
Não se sabe ao certo como surgiu a arte no
mundo. No entanto, é possível deduzir que pelo menos algumas formas de arte tenham
surgido a partir das primeiras técnicas que permitiram a materialização de
imagens e/ou sinais sobre determinados suportes. A literatura, por exemplo, tem
seu germe nas primeiras inscrições usadas para nomear os mortos nas antigas
tumbas (KITTLER, 2005). Essas inscrições revolucionaram a comunicação, uma vez
que favoreceram a interação sem a presença de um emissor. Isso devido à
possibilidade de transpor o audível (fala) para o visível (escrita).
A materialidade da arte é determinada pelos
meios técnicos e, sobretudo, no mundo contemporâneo, pelos meios tecnológicos
utilizados na sua produção. Segundo Lucia Santaella
(2005), a técnica se define por um “saber fazer” que reúne tanto a capacidade
intelectual do indivíduo quanto os procedimentos ligados a esse “saber fazer”.
Segundo a pesquisadora, a tecnologia surge quando um equipamento tecnológico
envolve, fora dos limites do corpo humano, um saber técnico ou conhecimento
científico sobre habilidades técnicas específicas. Tomando a escrita como exemplo,
percebemos que os dispositivos técnicos usados para realizá-la são
caracterizados por objetos que funcionam como prolongamentos dos gestos do
corpo humano. Já os equipamentos tecnológicos, como a máquina fotográfica,
possuem um “saber” técnico intrínseco à sua própria estrutura.
Para alguns estudiosos, a história da arte não
se restringe a ser apenas a história das idéias
estéticas. Ela é, acima de tudo, a história dos meios que dão expressão a essas
idéias (COSTA, 2004). Seguindo esta lógica, Lucia Santaella
(2005) observa que, entre outros períodos da arte ocidental, a arte grega é
marcada pela cerâmica e pela escultura, o Renascimento pela tinta a óleo, o
século XIX pela fotografia etc. Walter Benjamin (2002),
No caso da poesia, até o século XVII, a
publicação poética significava a leitura (ou canto) de poemas para uma platéia.
A partir da existência da página impressa, a poesia passou a contar com a
possibilidade da mistura de visão e som (McLUHAN,
2002). Antonio Risério, no Ensaio Sobre o Texto Poético
Com o
seu marginador, a sua escrita uniforme, as teclas de retrocesso e espaço, a
alavanca do carretel etc., a máquina contribuiu também para a espacialização
visual do texto. Nesse sentido, um criador como o norte-americano E. E. Cummings pode ser visto como o poeta por excelência do
século dátilo-tipo-gráfico,
não só por explorar criativamente todos os recursos da máquina, como também por
levá-la ao seu limite, forçá-la ao ponto de sua superação, como que a
estirar-se em direção ao computador (RISÉRIO, 1998, p. 127).
Apesar de tudo, o surgimento de novos meios não
implica necessariamente no desaparecimento dos anteriores. Ao contrário, “um
dos desafios que se impõe ao artista é dar corpo novo para manter acesa a chama
dos meios e das linguagens que lhe foram legados pelo passado” (SANTAELLA,
2005, p. 249). No entanto, como cada época apresenta novos meios de produção da
arte, o artista também se vê diante de um outro desafio que é o de “enfrentar a
resistência ainda bruta dos materiais e meios do seu próprio tempo, para
encontrar a linguagem que lhes é própria, reinaugurando
as linguagens da arte” (SANTAELLA, 2005, p. 250).
Em termos de tecnologia, o mundo tem vivido,
nas últimas décadas, a chamada revolução digital. Essa tecnologia é capaz de
converter qualquer linguagem, seja texto, imagem, som, vídeo, em dado digital.
Ou seja, em bits (0-1), representados por um pixel
de luz aceso ou apagado. Cada pixel é um minúsculo permutador entre linguagem e
número, o que possibilita a passagem da linguagem ao número e vice-versa. A
possibilidade de conversão de qualquer linguagem, juntamente com a facilidade
dos dados digitais serem comprimidos e transmitidos em questão de segundos,
afeta diretamente os processos de produção artísticos atuais.
Para Marshall McLuhan
(2002), o aparecimento das novas mídias (visual, sonora, tátil) transporta o
homem para o mundo da fusão de todos os sentidos. McLuhan
entende que as relações entre o homem e os meios têm implicações diretas no
modo como compreendemos o mundo e nós mesmos, especialmente, diz o pesquisador,
pelo fato dos meios poderem favorecer um sentido como canal receptor em relação
aos demais. McLuhan comenta que, desde a Grécia de
Homero, já se processava uma dissociação entre os sentidos. Contudo, essa
dissociação só se define completamente com o surgimento da imprensa que passou
a direcionar o pensamento do homem ocidental. A industrialização da escrita fonética
provocou uma constelação de fenômenos, “a galáxia de Gutenberg”, que alteraram
o universo mental do homem tipográfico. Com os novos meios, os fundamentos que
davam sustentação para a experiência do homem tipográfico são, assim,
totalmente abalados.
Suzete Venturelli
(2004) afirma que a nova relação com a tecnologia transforma a nossa cultura
além de favorecer uma abertura para novas formas de subjetividade. Ela comenta
que, com as novas tecnologias, o ser humano deve necessariamente funcionar de
maneira diferente. A passagem da técnica à tecnologia representa, segundo a
autora, uma forma de mutação antropológica. Venturelli entende que a criação
estética com as novas tecnologias é diversamente subjetiva, o que significa que
a obra está além de uma expressão individual e tende à criação impessoal e
ultra-subjetiva.
De acordo com Diana Domingues (1997), a
produção artística tecnológica gera uma nova mentalidade em que a utilização de
dispositivos tecnológicos vai além do prolongamento dos sentidos, como propôs McLuhan. O diálogo entre os seres humanos e os softwares, segundo a pesquisadora, dá
origem a processos cognitivos e mentais em parceria com os sistemas, resultado
da fusão de sistemas naturais inteligentes com sistemas artificiais
inteligentes.
Em relação à produção poética contemporânea,
podemos afirmar que as primeiras idéias sobre uma poesia em sintonia com a era
das novas tecnologias foram delineadas, a princípio, nos países de língua
portuguesa, Brasil e Portugal (ANTONIO, 2007). Na Europa e nos Estados Unidos,
eram realizados experimentos reunindo poesia e computador centrados,
basicamente, na geração randômica de textos, como no caso do Stochastische Texte (1959),
de Theo Lutz, e dos poemas Auto-Beatnik (1962), de R.M. Worthy (FUNKHOUSER, 2007).
As primeiras experiências poéticas
em meio digital, no Brasil, foram, em sua grande maioria, produto da conversão
de poemas em mídia impressa para a mídia digital. Destacam-se, desse período,
sete poemas desenvolvidos entre os anos de
A mudança no procedimento de
execução do poema gera uma obra totalmente nova. No projeto Nome (1993), que reúne livro, CD e
vídeo, Arnaldo Antunes mostra ter compreendido bem este processo. O projeto foi
especificamente elaborado para circular nas novas mídias. Destacamos, aqui, o
poema “Fênis”, que, após um processo de mutação, deu
origem ao poema digital “Fênis pênis” (2000). Este
poema se encontra disponível, atualmente, em preto e branco, no site
<http://www.arnaldoantunes.com.br/>.
“Fênis
pênis” se inicia a partir do deslocamento de uma imagem que exibe a palavra “fênis” replicada inúmeras vezes. As letras que formam as
múltiplas palavras estão espalhadas, em caixa baixa e na
cor preta. O fundo branco da tela sugere a página branca dos poemas impressos.
No exterior da imagem, as letras são visualizadas, aparentemente, mais
dispersas. Ao centro, percebe-se uma tensão maior devido ao acúmulo de letras
que se forma devido ao movimento espiralado que predomina no poema. A
disposição, à principio confusa das letras, não chega
a impedir a leitura da palavra "fênis". No
entanto, a palavra é construída a partir de uma metamorfose da palavra
"fênix" e, assim, oferece uma certa resistência
à leitura.
Os elementos verbais e visuais, no
poema, tornam-se inseparáveis. O que se destaca, no todo, é a visão de algo
semelhante a um líquido descendo por uma espécie de dreno, misturando e
dissolvendo as letras que compõem a palavra replicada em um redemoinho. O
redemoinho conduz ao surgimento de uma nova palavra múltipla, “pênix”, com a mesma disposição de letras da palavra da cena
inicial. A velocidade do movimento espiralado faz com que a letra “s” da
primeira palavra seja visualizada, por uma fração de segundos, como parte da
segunda palavra. Isto possibilita a visualização, ao mesmo tempo, dos termos “pênix” e “pênis”.
O deslocamento de significados,
sugerido pelo poema, supera a tentativa de justapor os conteúdos das palavras
híbridas "fênis" e "pênix". O que predomina no poema são as noções de
acúmulo, perda e regeneração. Esta forma de metamorfose revela possibilidades
de sentido que surgem por analogias e correspondências. Pode-se pensar, por
exemplo, que a fênix, do mito, renasce de suas próprias cinzas e o ser humano
renasce do próprio homem (pênis).
O movimento em espiral, que
predomina no poema, representa uma força imanente que começa e termina em si
mesma para, depois, voltar a começar. Este movimento também marca a estrutura
auto-suficiente do poema que “se faz e se desfaz” diante dos olhos do leitor.
A dinâmica do poema obscurece a
idéia de fronteiras, tanto nas imagens com as letras exteriores dispersas, quanto na formação híbrida das palavras “fênis” e “pênix”. Essa dinâmica
implica no exercício de um novo modo de interação com o código verbal. “Fênis pênis” aponta não apenas para a necessidade de se
pensar a mudança dos materiais de construção do poema, mas, também, para as
novas maneiras de interagir com o texto verbal.
Com o uso da teoria da informação,
do cálculo de probabilidade e da hipertextualidade, surge uma poesia que passa
a ser chamada de poesia virtual. A interatividade, nessa forma de poesia, é
total. O poema virtual exige algumas habilidades técnicas por parte do leitor
(que se torna co-autor); ele se torna uma obra coletiva, inacabada,
indeterminada e
O poema “Perhaps” foi
elaborado como uma forma de vida nas fronteiras entre a máquina, o indivíduo e
a coletividade. Eduardo Kac comenta, no site <www.ekac.org/>,
que este foi o primeiro poema escrito exclusivamente para a sub-rede Internet 2; uma
rede de altíssima velocidade de caráter experimental restrita, até o momento,
às grandes empresas e universidades. O poema foi exibido on-line entre 1998 e
A interface de “Perhaps”
simulava o painel e os controles característicos dos games. Kac explica que o poema foi
construído como um mundo virtual com 24 avatares. Cada avatar era, na verdade, uma palavra que podia ser “assumida”
por participantes remotos. Uma vez que os participantes acessavam o sistema e
escolhiam suas palavras/avatares, eles podiam tomar
decisões sobre suas posições e suas ações nesse mundo virtual.
Desse modo, quando um participante, na forma de
uma palavra/avatar, se aproximava ou se afastava de
outros participantes, ou palavras/avatares, eles
produziam sintaxes diferentes. Eduardo Kac também
comenta que o sistema permitia a criação de sentidos diferentes através de
efeitos especiais como a oscilação de uma palavra ou
outros movimentos programados.
Por meio dos avatares, o poema “Perhaps” colocava em questão as fronteiras dos conceitos
fora / dentro e longe / perto. Sua estrutura também permitia repensar os
limites entre a fronteira natural / artificial. O nível de interatividade para
a existência do poema dependia das trocas realizadas através de dispositivos de
acesso ou interfaces.
De acordo com Domingues (1997), quando falamos
em interface temos que pensar em
contatos de superfícies diferentes que se conectam de alguma forma, o que faz
com que corpos diferentes partilhem de uma mesma decisão. No caso das tecnologias
interativas, “estão conectados o corpo biológico e o corpo sintético das
máquinas, a mente do homem e a mente de silício do computador” (DOMINGUES,
1997, p. 25).
Este nível de interação nos leva a considerar
os novos meios tecnológicos não simplesmente como ferramentas a serem
aplicadas, mas como processos a serem desenvolvidos. Nessa relação de feedback, observa Castells (1999), usuários e criadores tornam-se a mesma
coisa e as noções de sujeito e objeto permanecem apenas como fluxos de um sistema
complexo. Priscila Arantes (2005) comenta que, diante de obras em que o sujeito
é “trespassado” pela interface, como no poema “Perhaps”,
ele passa a ser muito mais “trajeto” do que sujeito.
A estética no contexto digital tende a diminuir
limites, além de trazer para o seu interior as relações e as interconexões com
diversas áreas do conhecimento. Para Arantes, essa estética, “não somente
produz conhecimento e traz à luz novas formas de perceber e entender o mundo em
que vivemos, como também questiona os parâmetros
éticos contemporâneos” (2005, p. 173).
A tecnologia, como aponta Domingues (1997), é
hoje o principal elemento de reorganização social, política e cultural no
mundo. No entanto, ela não é uma estrutura imutável e isolada dos seres humanos.
Os experimentos de poetas, artistas e cientistas com as novas tecnologias,
contribuem para a compreensão desses meios e, sobretudo, para a humanização dos
mesmos. Nesse sentido, poetas/artistas brasileiros, como Antunes e Kac, têm se destacado no cenário mundial por suas produções
nessa nova vertente poética.
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