<REVISTA TEXTO DIGITAL>
ISSN 1807-9288
- ano 2 n.3 2006 –
http://www.textodigital.ufsc.br/
AZEVEDO, W. Interpoesia e interprosa: escrituras poéticas digitais. Texto Digital, Florianópolis, ano 2, n. 2, Dezembro 2006.
INTERPOESIA E INTERPROSA: escrituras poéticas digitais
INTERPOETRY AND INTERPROSE: digital poetic writing
Wilton Azevedo
Doutor em Comunicação e Semiótica – PUC/SP
Universidade Presbiteriana Mackenzie
RESUMO: Este trabalho aponta para
importância de extrairmos do conceito de interpoesia
e interprosa, o conceito de escritura expandida - já
apontado em textos anteriores meu – levando em consideração a mudança perceptiva
do que adotamos como credibilidade, e a noção de conteúdo volátil do discurso hipermidiático.
PALAVRAS-CHAVE: Hipermídia, poesia, poética, letras e
comunicação.
ABSTRACT:
This work points out to the importance of extracting from
the concept of intepoetry interprose
the concept of expanded writing – already pointed out in my previous texts –
taking into consideration the change in perspective of what we adopt as
credibility, and the notion of volatile content of the hypermedia discourse.
KEYWORDS: Hypermidia, poetry, poetics, literature, linguistics and communication
Ts’ui Pên, homem douto em diversas disciplinas, governador de sua província, poeta famoso, decide renunciar a tudo para dedicar sua vida a construir um labirinto e escrever um livro. Durante muitos anos sua obra não é entendida: quem a lê percebe um texto caótico e desordenado, onde não é possível reconhecer um desenrolar seqüencial dos eixos. O homem que sabe interpretar corretamente essa criação reconhece a intenção de Tsúi Pên: o livro e o labirinto não eram obras independentes, e sim um único objeto. O que o escritor pretendia era criar um texto que não precisasse optar por uma única alternativa, mas que pudesse reunir todas as possibilidades de uma narração (VOUILLAMOZ, 2000, p. 80): ‘Em toda obra de Ts’ui Pên, todos os desenlaces ocorrem; cada um é um ponto de partida de outras bifurcações. (BORGES, 1972, P. 105)
O mundo digital trouxe para nós a possibilidade de criarmos alternativas no processo de comunicação estabelecendo vários níveis nestas relações interativas. É nesta trajetória que algum tempo atrás escrevi um paper levantando e apontando aspectos relevantes destas relações e que oportunamente chamei de “Hiperdesign: Uma Cultura do Acesso” (AZEVEDO, 1998, p. 28). Este texto começava com uma citação de Michael de Certaux que diz: “O memorável é o que se pode sonhar de um lugar”. É pensando na possibilidade da memória ocupar um espaço em um ambiente virtual, que pretendo neste texto desenlear o que me vem instigando.
Em 1989, Philippe
Quéau escreveu um livro chamado Metaxu
(QUÉAU, 1989) em que já apontava para a importância de uma revisão para os
textos sobre a cognição humana diante de ambientes virtuais, salientando uma
evolução dos conceitos biológicos e a necessidade de um aperfeiçoamento nos
processos de simulação via aparatos tecnológicos digitais, como já havia
descrito na sua obra,
Se observarmos as produções artísticas como uma linguagem em evolução, perceberemos que a noção fronteiriça estabelecida de código para código, fica muito mais claro quando lidamos com aparatos que propiciam um produto híbrido, no caso a mídia digital. A poética nos suportes digitais ultrapassam a esfera das metáforas e entram decididamente para o mundo dos modelos matemáticos de linguagem binária para que possamos simular e ao mesmo tempo dar ao receptor a oportunidade de completar a obra.
As linguagens verbais, visuais e sonoras estão sempre operando no limite da representação, propondo analogias ou metáforas no contexto desta escritura híbrida, “A metáfora pode esclarecer, às vezes com muita luz, mas carece de verdadeira capacidade de declinação. Sempre representa um caráter mais ou menos adequado.” (QUÉAU, 1995, p. 35). Quanto ao modelo matemático em forma de escritura, este pode experimentar comprovando sua coerência interna sempre inserido em um contexto real.
A partir disso, podemos dizer que o conceito de intermediaridade só ocorre entre processos interdisciplinares como é o caso natural das hipermídias, e lembrando novamente Certaux, abrimos com isso a possibilidade de que “sonho e memória”, possa ser lido como duas entidades que sempre tentamos representar e simular para romper os limites fronteiriços entre as linguagens, sendo assim, continuamos inventando máquinas incansavelmente para transpor os limites da nossa tão programática linguagem humana.
No exercício da transposição é que damos a estas entidades, o poder de vencermos os limites estabelecidos, e recordarmos por alguns instantes as nossas histórias nos reconhecendo registrados por estas criaturas tecnológicas que apreendem as nossas almas dentro das máquinas que funcionam segundo o padrão do seu criador. Com isto, os artistas destes novos meios acabam produzindo linguagens “intermediárias” para poderem se expressar de forma híbrida, “... e poderá aproveitar sua ‘vida artificial’ para criar obras em perpétua genesis, processos quase vivos que se modificam a si mesmos em função de um contexto.” (QUÉAU, 1995, p. 35).
Diante deste terreno novo, a maior fronteira a ser transpassada é a linha limítrofe que migra de um ambiente-material-real para um ambiente-potencial-virtual. “Os espaços virtuais equivalem a campos de dados e a cada ponto pode se considerar como uma porta de entrada a outro campo de dados, tendo um novo espaço virtual que conduz a sua vez a outros espaços de dados.” (QUÉAU, 1995, p. 38)
Todo exercício de linguagem associada ao conceito de hipermídia, dentro deste aspecto, começa a proporcionar um sistema aberto de comunicação – emissor e receptor – sem limite definido, passando a configurar uma nova noção de espaço em que não se reconhece nem o princípio e nem o fim deste sistema.
como esquema conceitual, é plurisignificativo e acaba por oferecer múltiplas ocorrências, múltiplos acessos e leitura, de maneira que é possível reconhecer uma certa analogia entre o modelo hipertextual desenvolvido pela informática e o polisemantismo tão reclamado pelo campo da literatura.” (VOUILLAMOZ, 2000, p. 74).
O trânsito desta nova escritura híbrida acaba ganhando por conseqüência todo um novo conceito do que possa significar: as palavras, os sons e as imagens. Digo isto no plural, porque não se trata aqui de termos signos sempre com características genéricas e sim um programa em que se possa identificar as sutis diferenças que ocorrem ao migrarem de um sistema para um outro, como explica Núria Vouillamoz:
A projeção histórica da linguagem faz com que a palavra se veja sobrecarregada de intencionalidade plurilingüística e, por tanto, encerra um constante diálogo de sua semântica ambígua: a condição significativa da palavra ‘não é acabada, e sim aberta; é capaz de descobrir em cada novo contexto dialógico, novas possibilidades semânticas (BAKHTIN apud. VOUILLAMOZ. 2000, p. 76).
Quanto às questões do elemento virtual ligado ao significado das palavras, não resta mais dúvida, principalmente depois dos estudos de Ferdinand Saussure, que a palavra sempre carregou consigo uma condição de significado aberto na formação de novos produtos de linguagem e por que não dizer, de novas poéticas. Com isso passamos a entender melhor que todo fruto de uma operação hipermidiática tem sua nascente nos processos de construção literária e sua característica de escritura, uma vez que seu modelo matemático no processo de simulação vai se expandindo – tanto na literatura como na hipermídia – tentando ocupar cada vez mais nos ambientes virtuais uma escritura em movimento, sem começo meio e fim, sem emissor e receptor pré-determinado, sendo esta escritura de síntese digital portadora de uma quase inteligência artificial.
Precisamos entender que os suportes digitais do mundo da hipermídia passaram a configurar uma nova noção de espaço, no que diz respeito a representação.
“A forma do texto poético é própria. Ela já é um desenho, mostra-se em verso, configura um espaço novo no pergaminho, na página ou na tela, tempo e espaço se buscando, se sobrepondo. Os primeiros teóricos perceberam este conluio de formas e de códigos.” (OLIVEIRA, 1999, p. 12).
(...) o que a vista abarca de um só lance, ele (o poeta) nos enumera lentamente, pouco a pouco, e muitas vezes sucede que, ao último traço apresentado, já esquecemos o primeiro…Para a vista, as partes contempladas conservam-se constantemente presentes, ela pode percorrê-las quantas vezes lhe aprouver; para o ouvido, porém, as partes ouvidas se perdem, caso não se gravem na memória. (LESSING, 1992, p. 122)
Este produto híbrido proveniente desta migração virtual dos códigos, só está sendo possível com o exercício poético nos suportes digitais, exercício este que começou de forma programática com os manifestos da modernidade do século XX.
Podemos dizer, que a cultura da representação, da simulação e da emulação, já esta impregnada em nossas mentes que convive muito mais com a cópia e a simulação através dos aparatos tecnológicos, do que com o mundo que se apresenta diante de nossos olhos, sem a intermediação destes mesmos aparatos.
O princípio de qualquer sistema de comunicação, sempre foi o óbvio: enviar e receber mensagens. O que assistimos é a sofisticação deste método, é a linguagem humana passando por um período importante da nossa história, estes aparatos digitais que disseminam, imagens, texto e sons, de forma híbrida, copiam e simulam com tal competência que acabamos por nos esquecer de nosso estado vicário.
Esta sofisticação nos coloca impotente diante da quantidade de informação recebida, e acabamos por perder a noção do que possa ser crível, para administrar a recepção. Se coincidência ou não, as relações fronteiriças através dos espaços virtuais proposto pelas infovias, esta trazendo para a humanidade mudanças fundamentais no que diz respeito a comportamento, atitude e ideologia, no entanto, a migração virtual do ciberespaço, vai muito mais além do que qualquer experiência vivida pela humanidade, é uma linguagem que se situa no limite da aplicabilidade, que testa os nossos níveis de interatividade do ponto de vista do cognitivo, perspectivo e da intervenção, dando ao público também emissor a possibilidade de tornar um sítio em trânsito, portador de uma escritura em que o limite ainda ficará a cargo da linguagem humana.
Não há o porquê de nos sentirmos ameaçados se suscitamos pensamentos advindos de registros produzidos pela tecnologia, e me refiro aqui a todos os registros produzidos pela tecnologia, tanto os verbais, sonoros e imagéticos, como aqueles em forma de escritura.
Já que podemos ter acesso em qualquer lugar e hora a esses armazéns de signos, arquivos que contêm de maneira parcial e asséptica o conhecimento humano contido em um apertar de um mouse, passou a ser oportuno desvendar esta nova escritura que há muito estamos tendo contato através de videoclipes, vinhetas de televisão, internet, CD-ROM, blog, fotolog e as câmeras de bolso usadas como canetas. Ou seja, o que entendemos hoje por livro, texto e literatura, e suas conseqüências narrativas, não poderá ser analisado pelos novos suportes digitais – hipermídia – se não voltarmos a nossa atenção para a necessidade maior que o ser humano tem em produzir escrituras com ou sem “o sangue de seu próprio corpo”, na intenção de lançar o exercício do efêmero em forma de eterno.
Segundo Platão, em ‘Fedro’, quando Hermes – ou Thot, suposto inventor da escrita – apresentou sua invenção para o faraó Thamus, este louvou tal técnica inaudita, que haveria de permitir aos seres humanos recordarem aquilo que, de outro modo, esqueceriam. Mas Thamus não ficou inteiramente satisfeito. ‘Meu habilidoso Thot’ disse ele, ‘a memória é um dom importante que se deve manter vivo mediante um exercício contínuo. Graças a sua invenção, as pessoas não serão mais obrigadas a exercitar a memória. Lembrarão coisas em razão de um esforço interior, mas apenas em virtude de um expediente exterior.’[1] (ECO, 2003, p. 6)
Este expediente exterior produzido pelas tecnologias trouxe novos recortes epistemológicos para a investigação dessas novas escrituras. As novas propostas para métodos historiográficos nos fazem rever algumas teorias sobre a linguagem humana não apenas como um sistema de registro da memória da espécie, mas também como um sistema de articulação de signos que vivem em trânsito migratório interdisciplinar no que diz respeito à linguagem como um sistema em expansão.
Os documentos historiográficos e arqueológicos deixam cada vez mais de ser os documentos como o papiro, ossos, ou mesmo os artefatos de pedra, mas os da língua que falamos e os estudos dos genes. A idéia de uma linguagem evolutiva em expansão pode ser notada pela articulação das escrituras adotadas pelo software da cultura digital e de como, a cada dia, podemos elucidar que uma reformulação cultural do fazer poético e da produção do conhecimento não passa apenas pela escrita verbal, e sim na composição de uma escritura que abarca signos imagéticos e sonoros que se encontram em um estágio de expansão. É inevitável considerar o avanço tecnológico como um dado para a escritura expandida, pois esta coloca em xeque a própria produção artística e o fazer poético dos últimos cem anos.
A densidade populacional já foi detectada como um agente propulsor da expansão geográfica e das culturas, e a língua como forma de expansão e sua linguagem decorrente do uso. O que ainda não conseguimos detectar é que a linguagem humana passa por um momento de hibridização como resultado desta expansão demográfica e tecnológica.
Assim como as primeiras navegações foram um dos principais fatores para a expansão humana de cultura e misturas étnicas, a cultura digital, através de seus sistemas hipermídias, ofereceu este mesmo diagrama de transformação através da migração virtual[2]. Não à toa, usamos o mesmo verbo “navegar” para esta mesma ação do clicar e adentrar este labirinto narrativo, uma nova etapa para que códigos que viviam em sistemas matriciais isolados, verbal, visual e sonoro, passem, a partir da era do software, a explorar novas formas de se fazerem perceber como linguagem.
O autor italiano Luigi Luca Cavalli-Sorza vem fazendo um estudo chamado Geografia Gênica, analisando as formas de expansões que englobam o rompimento das barreiras da língua que falamos e o do crescimento quanto a uma expansão numérica da ocupação geográfica. Diz o autor:
Nossas análises mostram que, no geral, todas as grandes expansões se deveram a importantes inovações tecnológicas: a descoberta de novas fontes de alimentos, o desenvolvimento de novos meios de transporte e o aumento do poderio militar e político são agentes particularmente potentes de expansão. (CAVALLI-SFORZA, 2003, p. 130)
O problema proposto por Cavalli é que nem sempre as revoluções tecnológicas produzem crescimento demográfico e expansão populacional; e posso dizer que é exatamente neste não aparente crescimento que a linguagem, ou melhor, a escritura humana se expande; cresce no sentido migratório e semiótico, articulando outras fontes sígnicas para dividir o bolo da disseminação do conhecimento poético.
É lógico que esse processo de expansão - escrita expandida - não se dá apenas pela propagação do conhecimento desta tecnologia, difusão de uma cultura digital, mas pelo uso desta como manifestação do fazer hipermidiático, levado adiante pelos artistas, poetas, filósofos, educadores e muitos outros que encontraram nesses softwares de autoria uma nova forma de se fazer compreender ou experimentar. Hoje, a forma de difusão dêmica é dada de maneira não somente presencial – tumbleweed -, mas também a minha presença migratória se faz pela linguagem que proponho ao outro poder navegar, ou melhor, potencialmente escrever, interferir na minha escrita. Phillipe Bootz (2003, p. 5-6) chama a atenção para este processo quando fala sobre o conceito do interpoesia, “... Manipulando fluxos de signos moventes entre diferentes sistemas semióticos e que seu papel consiste em domesticar as possibilidades estéticas (...) como uma nova ‘área de leitura’...”.
Prossegue Bootz citando um trecho do Manifesto Digital,
[...] surge uma poesia que coloca o público como agente principal na criação e intervenção, na maneira de ler e de se obter novos signos a todo instante. Assim nasceu a Interpoesia, um exercício intersígnico que deixa evidente o significado de trânsito sígnico das mídias digitais, desencadeando o que se pode denominar de uma nova era da leitura. (AZEVEDO apud. BOOTZ, 2004, p. 5-6)
De modo geral e sem dúvida, é através das invenções e do uso de novas tecnologias que o experimento poético se fez presente nas novas mídias.
As línguas mudam muito depressa e é terrivelmente difícil estabelecer relações claras entre aquelas distantes. Com o tempo, grandes mudanças fonológicas e semânticas ocorrem em todas elas. A magnitude dessas mudanças torna complexas a reconstrução e a avaliação dos aspectos comuns entre línguas. A gramática também evolui, embora quase sempre num ritmo suficientemente lento para permitir o reconhecimento de relações lingüísticas mais antigas. Sob a pressão das mudanças fonéticas e semânticas, uma língua logo se torna incompreensível. (CAVALLI-SFORZA, 2003, p. 182)
Assim como uma palavra perde, com o decorrer do tempo, o seu significado original, ainda não existem métodos precisos para detectar o quanto desta perda faz surgir uma nova língua ou, com o tempo, uma nova linguagem.
Em biologia, temos a vantagem de usar diversas proteínas ou seqüências de DNA para obter várias estimativas independentes de data de separação de duas espécies. Infelizmente, na lingüística não existe a mesma variedade e riqueza de dados para corroborar nossas conclusões. (CAVALLI-SFORZA, 2003, p. 183)
É justamente este dado ainda não aferível e mensurável que torna o fazer poético fascinante e de profunda paixão. Esta miscigenação de linguagens, que tornou os meios digitais uma plataforma possível para a manifestação desta nova escritura, vem aproximando as semelhanças que existem entre a evolução biológica e lingüística. Esta paixão do fazer poético não isenta os poetas e, mais precisamente, os que estudam este fazer, do rigor necessário para o desenvolvimento de um estudo que aponte para esta escritura que se encontra em expansão.
O estudo da poética até o começo do século XX tornou o código verbal como parte privilegiada desse recorte, mas foi na semiótica que a poética encontrou um trânsito maior inter- e intra- códigos, nos fazendo lembrar da poiésis que significa criação.
Os aspectos culturais quanto à credibilidade da compreensão e a produção de conhecimento estavam ligados apenas à tecnologia da escrita, como questiona Alberto Manguel (1997). Assim, veremos que as tentativas de uma prática semiótica nos tornam atentos ao fato de que o código verbal, como agente articulador de signos – software -, fez mudar seu referencial de arbitrariedade deste “vir a ser” histórico como forma de registro. Com o mundo da escritura numérica advindo da cultura dos suportes digitais, a linguagem verbal, que tem como modelo um alfabeto, teve sua práxis há muito transformada na obtenção para o que chamar de conteúdo analítico. Com esta tradição, notamos que o algoritmo nada mais é do que uma escritura que, a cada dia, deixa de ser um modelo matemático de simulação, passando à condição de intercódigo hipermídia ou escritura expandida.
Pierre Lévy (1996) aponta para este dado como uma atualização que pertence ao próprio ato de ler, e que, de uma maneira ou de outra, cada vez mais as convenções pertencentes ao próprio código podem ser corrompidas:
As passagens do texto
estabelecem virtualmente uma correspondência, quase uma atividade epistolar que
nós, bem ou mal, atualizamos, seguindo ou não, aliás, as instruções do autor.
Produtores do texto, viajamos de um lado a outro do
espaço de sentido, apoiando-nos no sistema de referência e de pontos, os quais
o autor, o editor, o tipógrafo balizaram. Podemos, entretanto, desobedecer às
instruções, tomar caminhos transversais, produzir dobras interditas, nós de redes secretos, clandestinos, fazer emergir outras
geografias semânticas. (LÉVY, 1996, p. 36)
Se tudo se aperfeiçoa,
por que a poética não passaria por este processo de aperfeiçoamento, ou melhor,
de atualização? A cada passo, os estudiosos se vêem no ímpeto de criar novos
termos para uma classificação de seus estudos ou testar a “eficácia de um
método” (TELES, 1996, p. 14).
O que vemos desta
tradição lingüística é que as figuras de linguagem ou criaturas sígnicas que, criadas quando estamos no exercício do tormento
que é a criação, muitas vezes e, com freqüência, são identificadas
em outros códigos, como o sonoro e o visual, mas dificilmente vemos
situações em que um código não ilustre o outro, o que faz com que muitas vezes
estas linguagens sejam dotadas de extrema riqueza técnica, mas de um vazio
poético incomparável.
Terminologias são
criadas como uma espécie de “moléstia verbal” ou, como apontada por Max Muller
(apud TELES, 1996, p. 14), na tentativa de se criar um conhecimento científico,
o que não é diferente no estudo da poética. Neste, é preciso ter o mesmo rigor
se quisermos situá-la dentro do mundo digital. Então, por que a humanidade
correu atrás de uma tecnologia que pudesse atualizar cada vez mais o conceito
de “ler”, “ver” e “ouvir”, se os sistemas sígnicos do
verbo já estavam prontos para a reflexão?
Estamos experimentando ainda como utilizar esta nova mídia digital para a reflexão de conteúdos temáticos, mas com certeza uma mídia que, além de conter o verbo, também contempla, no seu suporte, som e imagem, transportando-nos para um outro mundo que não é apenas verbal, e sim de conteúdo imagético-sonoro, simulando o mundo sensível da percepção, formatando a cultura do olhar humano em modelos numéricos - programas.
Neste sentido, podemos dizer que as relações cognitivas para a aquisição da reflexão mudaram. Como já foi dito, a memória existe, hoje, nos arquivos eletrônicos de fácil acesso, em uma atividade interdisciplinar que agrupa entidades humanas e máquinas, colocados em redes de acessos no mundo inteiro.
Se pensarmos com atenção, nada é
novo no que diz respeito à imagem virtual e seu conceito. Só para lembrar,
Querendo ou não, toda a especulação sobre espaços virtuais e como escrevê-la e inscrevê-la acabam por ter dados metafísicos. Isso porque nem tudo o que vemos nestes ambientes é simulação (HEIM, 1993). O corpo da escritura hipermídia nos traz um dado formidável que é a articulação dos códigos. Nada que está em uma tela de computador tem a ver com manipulação, e sim com articulação. Com a propriedade do signo verbal e sonoro, nunca houve dúvidas a respeito do caráter virtual dessas duas formas de signos. O som só passou a ser manipulado com a música concreta de Pierre Scheaffer, e o mesmo podemos dizer da poesia concreta do grupo Noigandres, daí o dado concreto desses signos que passaram a ser manipulados, ou melhor, montados e não apenas articulados[3].
Os aspectos tipográficos das palavras e das frases não podem ser esquecidos como um processo signico para a formação da escrita e da escritura. (DUBOSC: BÉNABOU: ROUBAUD, 2003, p. 106)
As artes plásticas sempre operaram a manipulação, a matéria, desde seus pigmentos até as resistências escultóricas com a lei da gravidade; por isso a resistência com o computador por parte de alguns artistas. Marcel Duchamp, com sua frase “Sonho com um tipo de arte que não tenha que por as mãos”, já apontava para este estado de articulação advindo da fisicalidade do objeto artístico, entregando para os futuros artistas do século passado a responsabilidade do conceito artístico: criar criaturas virtuais, ready-made e, mais tarde, a Arte como Idéia proposta por Joseph Kosuth em One and Three Chairs, em 1965.
Na poética de síntese numérica ou escritura expandida, tudo é articulado, não se manipula nada, não se monta nada, se “diz lendo”, como na origem matemática se pensou os algoritmos. É claro que muito tempo se pensou na questão a respeito da assepsia desta nova forma de escritura:
Não se combate assepsia dos simulacros introduzindo neles ruídos, sujeiras ou gestos desestabilizadores, mas construindo algoritmos cada vez mais ricos de conseqüência e cada vez mais complexos... cada vez mais próximos do organismo das formas vivas. (MACHADO apud. AZEVEDO, 1994, p. 155)
A questão é saber o que torna o meio poético mais expressivo no que diz respeito a sua autonomia sem ter que combater a assepsia. O trânsito estabelecido entre a linguagem do cotidiano e a linguagem poética é o que vem caracterizando um exercício de citação infindável nos suportes digitais. Aqui é importante que façamos uma distinção do termo "citação". Para este recorte que estou propondo, o ato de programar uma linguagem, notamos que este exercício de articular partes nos aparece como se fosse um todo de uma palavra, de um som ou imagens, que faz e torna estes interpoemas poéticos.
É o não romper esta autonomia que a linguagem do cotidiano tem, que se faz poesia quando se trata de programação. A metalinguagem já vem pronta porque hoje conseguimos ter o acervo de quase tudo que a humanidade produziu. O autor Cristóvão Tezza aborda a preocupação que havia com a idéia de romper com certo grau da autonomia das palavras:
A função da arte seria então quebrar este automatismo, chamar a atenção para o próprio meio, para a própria palavra. É neste 'olhar para si mesmo’ que residiria a língua poética, distinguindo-se da língua vulgar, prosaica, comum, prática. A partir desta dicotomia, criam-se novas categorias de análise: a ‘desautomatização’, o ’estranhamento’ ou, nas palavras mais precisas de Jakobson (1923), a ‘deformação organizada’ da língua comum pela língua poética. (TEZZA, 2003. p. 118)
É interessante notarmos que mesmo a idéia de estranhamento já era explorada por Jakobson em sua proposta de “deformação organizada”; o que não se sabia é que justamente o oposto, ou seja, a mesmice, seria explorada no sentido de criar este “estranhamento”. Carlo Ginzburg propõe este mesmo “estranhamento” como uma “atitude moral diante do mundo” (TEZZA, 2003, p. 119), mas a verdade é que o estranhamento proposto desde a época do dadaísmo pertencia a uma condição dos signos em forma de códices, vistos e compreendidos como “ruído”.
Na direção contrária a isso que em Looppoesia[4] apontei o articular e fazer desaparecer qualquer dado asséptico desses programas, no momento em que passamos a entendê-los como escritura, e insisto que estamos articulando novamente em um registro sígnico que nos dá a possibilidade de praticarmos trânsitos de intermediaridades interpoéticas do verbo, som e imagem em direção a uma escritura expandida[5].
Se articularmos esta escritura dos suportes digitais, seu dado asséptico desaparece quase por completo, pois não somos seres limitados por sermos portadores de um alfabeto. O mesmo acontece com o software ou esta forma de escrituras. Dentro deste quadro posso afirmar que nunca se escreveu tanto quanto agora. Escrevemos o som, a imagem e mais do que nunca o texto, registrando nosso conhecimento de forma menos plana, bidimensional. Com isso, passamos a ganhar o espaço tridimensional das escrituras que é a própria forma de pensarmos, experimentando e conhecendo, como protagonizou Theodor Nelson.
Contudo, não poderia deixar de mais uma vez dizer que estamos apenas reapresentando a nossa fala à humanidade. É um momento de extrema importância em que experimento e prática passaram a ficar muito próximos. Tudo que articulamos nestas escrituras não existe de forma natural, crua, de sintaxe plena. O que chamamos de “pós” é apenas uma maneira reducionista e caricata de não assumirmos que passamos a citar o nosso próprio conhecimento, ou seja, articulamos o que já sabemos, a modernidade não se esgotou ainda.
É justamente este poder articulador que nós, seres humanos, temos para poder experimentar signos nem sempre convencionais em nosso cotidiano, principalmente quando a tecnologia nos coloca em uso verdadeiras máquinas semióticas, em que devemos aprender a deixar nossos registros poéticos em um formato novo de vocabulário, “... uma das coisas admiráveis da linguagem humana é esta de, a partir de um sistema exíguo e fechado de fonemas sem sentido, chegar-se à articulação de milhares de palavras e aos milhares de significações possíveis no vocabulário comum,... (TELES, 1996, p. 19).
Para concluir, a pratica deste experimento com linguagens é antiga como uma ciência da experimentação, é parte do corpo sígnico dos códigos a serem articulados em forma de semas que servem e continuarão servindo de linha avançada para a criação estética humana, mas com a certeza de podermos colocar em pratica uma nova era das narrativas.
Referências
AZEVEDO, Wilton. Criografia: a Pintura Tradicional e seu Potencial
Programático. São Paulo, 1994.
BESANÇON, Alain. A Imagem Proibida. Uma História Natural da Iconoclastia. Tradução: Carlos Sussekind. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
BOOTZ, Philippe. De Baudot à Transitoire Observable: les approches sémiotiques en littérature numérique. Paris, 2003. Disponível em : http://transitoireobs.free.fr/to/html/novsemiotiq.htm. Acesso em 20 jan. 2006.
BORGES, Jorge Luís. Ficções. Tradução: Carlos Nejar. 1.ed. São Paulo: Globo, 1972. (Os Imortais da Literatura Universal, 50).
BRETON, Philippe.
A Utopia da Comunicação. Tradução: Serafim Ferreira. Lisboa: Editions
CAVALLI-SFORZA, Luca. Genes, Povos e Línguas. Tradução: Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.
COSTA, Mario. O Sublime Tecnológico. Tradução: Dion Davi Macedo. São Paulo: Experimento, 1995.
DUBOSC, Labelle : BÉNABOU, Marcel : ROUBAUD, Jacques (ed.). Formules: Revue de Literatures à Contrantes. Paris, France, Association Noésis, ago. 2003, nº 7.
FABRIS, Annateresa. A
Estética da Comunicação e o Sublime Tecnológico. In: COSTA, Mario. O Sublime
Tecnológico. Tradução: Dion Davi Macedo.
HEIM,
Michel. Metaphisics of Virtual Reality.
HOOKER, J. T. (intr.). Lendo o Passado: A História da Escrita Antiga do Cuneiforme ao Alfabeto. São Paulo: Ed. USP / Melhoramentos,1996.
LAUAND, Luiz Jean (org.). Cultura e educação na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
LESSING, Gotthold Epharim. De Teatro e Literatura. Tradução: J. Guinsburg. Intr. e notas de Anatol Rosenfeld. São Paulo: EPU, 1991.
LÉVY, Pierre Pierre. A Inteligência Coletiva. Tradução: Luiz Paulo Rouanet São Paulo: Loyola, 1998.
______. O que é o virtual. Tradução: Paulo Neves. São Paulo: Ed. 34, 1996. (TRANS).
MANGUEL, Alberto. Uma História da Leitura. Tradução: Pedro Maia Soares. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.
OLIVEIRA, Valdevino Soares de. Poesia e Pintura: um diálogo em três dimensões. São Paulo: Ed. UNESP,1999.
PLATÃO. Fedro. Tradução: Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002. ((A obra prima de cada autor 60).
QUÉAU, Philippe. Lo Virtual, Virtudes y Vértigos. 1.ed. Buenos Aires, Argentina: Paidós, 1995.
QUÉAU,
Philippe. METAXU, Théorie de L´art
Intermédiaire. Seyssel : Edition Champ Vallon, 1989. Collecion
Milieux.
TELES, Gilberto Mendonça. A Escrituração da Escrita. Teoria e pratica do texto literário. Petrópolis: Vozes, 1996.
TEZZA, Cristovão. Entre a Prosa e a Poesia: Bakhtin e o Formalismo Russo. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.
VOUILLAMOZ, Núria. Literatura e hipermedia: la irrupción de la literatura interactiva:precedentes y crítica. Buenos Aires, Argentina: Paidós Ibérica, 2000.
<REVISTA TEXTO DIGITAL>
[1] Palestra proferida por Umberto Eco no Egito para abertura da nova
biblioteca da Alexandria, foi publicada originalmente no jornal egípcio Al-Ahram e traduzido por Rubens Figueiredo para o Caderno
Mais da Folha de São Paulo dia 14 de dezembro de 2003.
[2] Há um estudo que fiz que foi registrado em uma palestra proferida na Ohio University no Fourth Annual McKay Costa Symposium , em 25 e 26 de abril de
[3] Isto me fez lembrar de uma historia que um
dia Décio Pignatari me contou por volta de 1983, que ele não conseguia achar
alguém
[4] Looppoesia. A
Poética da Mesmice – Cd Rom 2001. Será lançado este ano pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie através do Mackpesquisa. Este
trabalho foi apresentado pela primeira vez no E-Poetry, em Buffalo, em 2001.
[5] Pode
ser lido em www.mackenzie.com.br/interacao/www2003/