<REVISTA TEXTO DIGITAL>

ISSN 1807-9288

- ano 2 n.1 2006 –

http://www.textodigital.ufsc.br


 

POESIA EM CONTEXTO DIGITAL

 

POETRY IN DIGITAL CONTEXT

 

André Vallias

Poeta, designer e produtor de mídia interativa

 andre.vallias@refazenda.com

 

 

 

Em 1992, organizei, com a colaboração do poeta e ensaísta alemão Friedrich W. Block, o que provavelmente foi a primeira mostra internacional de poesia feita em computador, em Annaberg-Buchholz, uma pequena cidade da então recém extinta Alemanha Oriental. Chamou-se "p0es1e – digitale Dichtkunst (os algarismos 0 e 1 fazendo as vezes das vogais "o" e "i"): o que traduzido para o português soaria redundante: "p0es1a - poesia digital.

 

Para escapar à redundância, usei um termo alemão um pouco empoeirado, que combinava com aquele velho lugarejo que despertava lentamente da letargia da Cortina de Ferro. Uma dessas aglutinações que conferem ao idioma alemão uma invejável plasticidade: "Dichtkunst" – formada pelas palavras "Dichtung" (poesia) e "Kunst" (arte).

 

"Digitale Dichtkunst" me pareceu um conceito apropriado para circunscrever aquelas obras insólitas que estávamos reunindo na "Galerie am Markt": impressões de computador, textos interativos, instalações sonoras, hologramas e animações criados pelos poetas – ou seriam eles artistas? – Augusto de Campos, Richard Kostelanetz, Jim Rosenberg, Eduardo Kac, Fritz Lichtenauer, Silvestre Pestana, Friedrich Block e pelo idealizador da mostra.

 

"p0es1edigitale Dichtkunst" foi dedicada a memória de um filósofo que havia falecido no ano anterior: o tcheco, naturalizado brasileiro, Vilém Flusser, cujas idéias me levaram a comprar meu primeiro computador, em 1988.

Destoando do côro dominante que via na revolução eletrônica uma ameaça à Cultura Ocidental, Flusser havia se notabilizado, especialmente nos países de língua alemã, por um discurso polêmico, carregado de ironia e hipérboles, que tinha como intuito principal instigar o uso criativo desse maquinário que tanto atemorizava os artistas e intelectuais de então, e anunciar, com o otimismo o advento daquilo que ele chamava "Sociedade Telemática".

 

O pioneirismo da pequena exposição de Annaberg-Buchholz foi rememorado em 2004, em Berlim – com dimensões e recursos que não poderíamos sequer imaginar em 1992 – sob a curadoria de Friedrich Block e Benjamin Meyer-Krahmer, e com seu nome ligeiramente alterado para "p0es1s. Digital Poetry". O obsoleto "Dichtkunst" fora substituído por uma construção mais moderna e adequada aos padrões da rica e efervecente capital alemã.

 

Embora feliz com o desdobramento da exposição, não pude deixar de lamentar o abandono daquele termo que reverberava a mais bela e concisa definição de poesia que conheço, a do poeta norte-americano Ezra Pound: linguagem condensada no mais alto grau, "Dichtung = condensare".

O poeta remetia o substantivo "Dichtung" ao adjetivo "dicht" – condensado, denso – de onde vem o verbo "dichten" – adensar, vedar – e que, para alegria de Pound, também significa "poetar", no alemão. É difícil não se deixar levar pelo encanto desse jogo etimológico… Mas como boa parte das etimologias mais instigantes e fecundas, a de Pound é bela, porém falsa.

 

"Dichtung" tem uma origem bem mais prosaica: vem do latim "dictare" e nos recorda de um tempo – não tão remoto assim – em que não era nada anormal poetas não saberem escrever. O difícil processo de fixar a voz através de letras era delegado a um especialista: o "scriptor".

Dois dos mais importantes poetas alemães da Idade Média, por exemplo, os cavaleiros Wolfram de Eschenbach e Ulrique de Lichtenstein – eram analfabetos de "pai e mãe". O importante poeta do ciclo arturiano Hartmann von Aue, cujo poema narrativo "Gregorius" inspirou a novela "O Eleito" de Thomas Mann, tampouco sabia escrever. Mas orgulhava-se de poder ler ele próprio as cartas que recebia.

 

Nos oito séculos que nos separam desses ilustres poetas medievais, muito se fez para diminuir o número de iletrados no mundo, embora, segundo dados da UNESCO, 20% da população mundial ainda permaneça analfabeta. Vilém Flusser provavelmente chamaria esses 900 milhões de iletrados de pioneiros do futuro. O filósofo acreditava que estaríamos vivendo o final da "Era do Alfabeto". O código, que havia subjugado a fala, nos libertado do pensamento mítico (circular), instaurado a consciência histórica (linear), estaria prestes a ser substituído por novos "códigos digitais" ainda embrionários, que nos obrigariam a todos a voltar para o Jardim da Infância.

 

É uma pena que este livro de Flusser — "A Escrita" – não tenha sido ainda traduzido para o português. Seu discurso livre das amarras acadêmicas é extremamente instigante e prazeroso, embora sua argumentação me pareça às vezes por demais atada à "linearidade" cuja morte decretava com tanta veemência.

 

Concordo com Flusser, no entanto, quando diz, na esteira de Walter Benjamin, que os "textos" perderam sua aura e que, provavelmente, nem possam mais ser chamados de "textos", propriamente dito.

Seriam antes "pré-textos" ("Vorschriften", em alemão, que quer dizer "ordens", "comandos", "prescrições" – não exatamente os "pretextos" do português – mas a palavra grega do qual estes termos todos se originam: "programas").

Apesar da vertiginosa inflação de letras que parecem querer nos soterrar, é bem provável que já vivamos em um mundo em que a maior parte dos textos é escrita não para ser lida por seres humanos mas por máquinas: os programas de computador. Escrevê-los é tarefa complicada que delegamos ao "scriptor" da atualidade: o programador. Nesse quesito, a maioria de nós deverá se sentir como aqueles poetas medievais que mencionei anteriormente. Há quem já fale que programas são tão inumanos e árduos de serem escritos, que a tarefa estará, em breve, completamente delegada à "programas que escrevem programas".

 

Outro "pré-texto" que reina nos dias de hoje é uma coletânea de prescrições e "falas" que se destinam a equipes de filmagem.

O poeta Oswald de Andrade foi profético quando registrou em seu Manifesto Antropófago: "Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros." Quase tudo do que se escreve hoje parece inevitavelmente aspirar à instável e multifária condição de "roteiro". A profusão de formatos, a velocidade com que padrões técnicos são substituídos, recursos novos são adicionados, não termina invariavelmente por transformar todo pretenso "texto" em "pré-texto"? Um "script" perpetuamente insatisfeito com sua realização, um "roteiro" condenado a alegrar-se tão somente com aquilo que poderá um dia se tornar?

 

Há algo, no entanto, que diferencia a circularidade do "roteiro" que o faz escapar à triste sina do "eterno retorno": a cada nova realização o "roteiro" acumula "história", armazena seus erros e acertos. O "roteiro" se transforma: faz e refaz-se à sombra da esperança... O cientista austro-americano Heinz von Förster o chamaria de "máquina não-trivial".

Os gregos diriam simplesmente "poema": de "poiésis" = fazer.

 

Quando o biólogo chileno Humberto Maturana precisou lançar mão de um novo conceito que expressase a capacidade de todo "organismo vivo" de produzir a si mesmo de modo contínuo, cunhou, em 1971, a palavra "autopoiese", introduzida no ensaio seminal "De máquinas e Seres Vivos", que escreveu juntamente com seu colaborador Francisco Varela, provavelmente a obra científica mais influente já concebida por autores latino-americanos.

O biólogo e neurocientista explicou assim, vinte anos mais tarde, a origem do termo que lançou com tanto êxito no discurso científico contemporâneo: "Um dia em que eu visitava um amigo, José Maria Bulnes, filósofo, enquanto ele me falava do dilema do cavalheiro Quejana (depois, Quijote de la Mancha) na dúvida de seguir o caminho das armas, isto é, o caminho da "praxis", ou o caminho das letras, isto é, o caminho da "poieses", ocorreu-me que a palavra que necessitava era "autopoiese", se o que desejava era uma expressão que captasse plenamente a conotação que eu dava ao falar da organização circular do vivo."

 

Voltando ao "roteiro" – que agora, em homenagem aos gregos, chamarei de "poema" – acho bastante compreensível que sua instabilidade fluida provoque um certo mal-estar nos "homens de letra", tão acostumados a imobilizar, imortalizar, através dos escuros caracteres do código alfabético, a linguagem nas brancas páginas de papel...

 

No breve prefácio, que escrevi em 1992 para apresentar a exposição "p0es1e - digitale Dichtkunst", eu dizia:

"Digitus. Os poemas aqui mostrados devem sua criação a dedos que brincam, a dedos que se movem sobre teclados, a dedos que colhem/selecionam. Apertando teclas dão origem a números, letras, sons, pontos, palavras, melodias, textos, superfícies e corpos.

Dígito. Armazenados numa trama numérica impenetrável e indiferenciável para seres humanos. Carentes de original ou manuscrito, sempre acessíveis, modificáveis, transmissíveis, os dados apagam as fronteiras entre números, letras, sons, pontos, palavras, melodias, textos, superfícies e corpos.

Digital. Os poetas aqui apresentados deixaram-se, diante de monitores, seduzir-se por seus dedos. Os frutos dessa sedução surgem aqui sob a forma de gráficos, impressões de computador, textos interativos, instalações sonoras, hologramas e animações."

 

Será que teremos de aprender a "programar" para criarmos "poemas digitais"? Quem sabe, tanto quanto aqueles vates medievais precisaram saber escrever, para criar suas obras.

 

Para se fazer "poesia digital" não necessitamos nada além dos nossos "dedos". "Digital" vem de "dígito", do latim "digitus" = "dedo"; "número" por derivação, porque naquele tempo, como ainda frequentemente hoje, usamos os dedos para contar.

 

Pode parecer um exagero, mas somos animais capazes de produzir cultura graças a dedos que se libertaram dos galhos. Não tivessem nossos ancestrais, há milhões de anos, aprendido a usar os dedos para funções além da locomoção e subsistência, com certeza não estaríamos aqui conversando sobre "Literatura e Informática". Pensamos, inventamos, criamos porque temos os dedos livres.

 

Quando uso o termo "poesia digital", não tenho em mente o código numérico/binário com que estes poemas são "escritos", mas os dedos inventivos que criam, manipulam, modificam e propagam estes poemas.

 

E o que seria exatamente a poesia?

 

Talvez aquilo que sempre escapa por entre nossos dedos, e nos faz de novo agarrar o vazio...

 

 

 

 

 

 

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