<REVISTA TEXTO DIGITAL>
ISSN 1807-9288
- ano 2 n.1 2006 –
http://www.textodigital.ufsc.br
SALES, C. de. Para uma poeticidade do texto
literário em meio eletrônico. Texto
Digital, Florianópolis, ano 2, n. 1, Julho 2006.
PARA UMA
POETICIDADE DO TEXTO LITERÁRIO
FOR A POETICITY OF THE LITERARY TEXT IN THE DIGITAL
MEDIUM
Cristiano
de Sales
Graduado
em Letras pela UFSC
Universidade
Federal de Santa Catarina
RESUMO: A valoração estética, focando os diferentes recursos
e as diversas convenções discursivas do objeto artístico ao longo de séculos de
história literária, está diretamente relacionada a isso que tradicionalmente chamamos de poética. Dessa forma, esta — a poética — implica
diferentes concepções de Natureza, de acordo com o papel atribuído, por
exemplo, à mimese. Ora, todo padrão estético carece de reavaliações, haja vista
momentos de extrema reconfiguração de estéticas e de
poéticas, como é o caso das poesias modernista e contemporânea. Contudo,
atualmente se deve (re)pensar
não apenas as convenções de linguagem, mas também — e talvez principalmente —,
o meio pelo qual essa linguagem (poética) se (re)produz
no meio eletrônico. Partindo então dessas premissas, o objetivo desta investida
visa sugerir uma redefinição de padrões estéticos, levando-se em conta o novo meio, permeada acima de tudo pelas categorias de Merleau-Ponty (fala-falante e
expressão), e pelos operadores textuais de Roland Barthes (O Grau Zero da
escrita).
PALAVRAS-CHAVE: Hipertexto. Significação.
Poeticidade.
ABSTRACT: Aesthetic valuing, focalizing the different
resources and the diverse discursive conventions of the artistic object
throughout the centuries of literary history, is directly related to this which
we traditionally call poetics. This way, this – the poetics – implies different
conceptions of Nature, according to the role attributed, for example, to
mimesis. Nevertheless, every aesthetic standard needs reevaluations, in view of
moments of extreme aesthetic and poetic reconfigurations, as is the case of the
modernist and contemporary poetry. In all, one must currently (re)think not
only the conventions of language, but also – and perhaps principally -, the
medium by which this language (poetic) (re)produces itself in the electronic
medium. Departing from these premises, the object of this assault aims to
suggest a redefinition of aesthetic patterns, taking into consideration the new
medium, permeated above all by the categories of Merleau-Ponty (speaking-speech and
expression), and by the textual operators of Roland Barthes
(Writing Degree Zero).
KEYWORD:
Hypertext. Signification.
Poeticity
Comecemos por uma pergunta.
No tocante a um conceito mais comumente discutido pela teoria literária – principalmente entre os pós-estruturalistas – como é o caso do hipertexto, que vantagens obteria uma análise que se aventurasse em buscar elementos na filosofia de Merleau-Ponty? Que recortes, ou ainda, que pressupostos se poderia pensar para fincar um projeto que passará por Roland Barthes, Gérard Genette, Eco e outros, numa base constituída pelas categorias trabalhadas pelo filósofo francês?
Quando se pensou em trabalhar esta prática textual, bastante mencionada em tempos de avanços tecnológicos, num viés que se pré-ocupa antes com a teoria de tal modalidade do que com sua prática, potencializada pelo computador, julgou-se indispensável buscar amparo em algum grande pensador das questões estéticas e da linguagem. Este cuidado evidencia uma tentativa de não deixar a pesquisa cair em armadilhas bastante comuns quando o que está em jogo são, de certa forma, reflexões pós-estruturalistas. Ou seja, o constante atravessamento de discursos, a constante multiplicação de significantes e a derrocada do significado total funcionam como uma espécie de canto da sereia no que diz respeito às experimentações críticas em literatura. (Justiça seja feita, Genette parece ter um maior cuidado com a diacronia nesse tipo de discussão).
Por isso, ingenuamente, buscou-se nesta estratégia, por meio de um movimento de convergência, fazer funcionar num mesmo lugar (no conceito) discursos que normalmente, talvez por uma questão de desconforto, não se relacionam, quais sejam: o discurso da diferance e o discurso mais estruturalista do Palimpsestes.E quando digo ingenuamente assumo que a manobra era digna de quem ainda não conhecia o filósofo[1], pois a convergência mencionada se daria exatamente no rigor do pensamento e do discurso filosófico. Porém, embora a primeira investida tenha sido frustrada na exata medida em que as leituras e o curso ministrado pelo professor Müller avançaram – dado que Merleau-Ponty seria muito melhor aproveitado como ponto de tenção do que como moderador da discussão – o novo rumo que a pesquisa, forçosamente, tomaria me pareceu mais instigante. E é a partir desse novo rumo que começo ensaiar as respostas para as perguntas feitas acima. Sentirei-me mais à vontade tentando elaborar essas respostas (quiçá mais perguntas), a partir da principal intenção deste ensaio: entender “por que Merleau-ponty?”.
Numa discussão que traz à tona um conceito pertinente a uma prática estética[2] que tem como meio de realização a linguagem, torna-se imprescindível, a meu ver, a presença de um pensador que reflita a arte como um objeto de onde se possa partir para refletir a própria filosofia, e não como um objeto a serviço da filosofia.
Essa forma não apenas de pensar, mas também de articular a própria produção parlante chega para a pesquisa como possibilidade de nortear discussões futuras, como, por exemplo, a mudança do meio em que a prática do hipertexto se dá.
Porém, organizemos esta argumentação iniciando pelo que primeiro incentivou a apostar no autor de Signos como pano de fundo para a discussão de críticos da significação (hiper)textual, da abertura da obra, da existência do autor, e daí por diante. A idéia de que “É nos outros que a expressão adquire relevo e se torna verdadeiramente significação” me fez pensar logo na significação da obra de arte no receptor/leitor, o que corroboraria em muito com as teses de Barthes e Eco. Entretanto, as leituras da fenomenologia na pena de Merleau-Ponty guiaram os pensamentos para um outro ponto principal: o centro da questão agora é o corpo. O ‘outro’ mencionado na citação acima não é, necessariamente, o receptor/leitor, mas sim aquele outro que ajudará um próprio ‘eu’ a constituir-se enquanto ‘eu’, ou, enquanto corpo. A questão da alteridade em Merleau-Ponty, se é que se pode falar em alteridade com ele, é uma discussão bastante complexa pela qual não enveredaremos nesta ocasião.
Desfeito esse primeiro equívoco deixemos claro de antemão que o filósofo nos servirá aqui para pensar duas questões principais: primeiro uma abordagem da produção (hiper)textual, permeada, talvez, pelas noções de escritura e diferance, ou apenas, pela noção de grau-zero, numa perspectiva de funcionamento que em muito faz pensar na atuação da fala falante; e em segundo lugar, a intenção é sugerir uma reflexão sobre a nova ordem da poeticidade (poética, mais comumente usado), desta literatura praticada em outros meios (computador), usando as noções de corporeidade tão bem trabalhadas por Merleau-Ponty.
Primeiramente, o hipertexto na teoria literária. Muitas discussões teórico literárias pós-estruturalistas tem sido direta ou indiretamente relacionadas com o termo hipertexto. Porém, o termo que fora utilizado pela primeira vez em 1966, por Ted Nelson, só veio ser teorizado com maior fôlego em 1981, por Gérard Genette na obra Palimpsestes: la littérature au second degré. Nesta ocasião o crítico francês define o conceito como uma experiência textual em que um texto de origem, a que se chamou hipotexto, submetido a intervenções de caráter lúdico ou sério resultaria num hipertexto, algo como as conhecidas charges, ou até mesmo como Virgílio flertando com Homero em Eneida.
O estudo sobre essas performances textuais, que me darei a liberdade de chamar de hipersignificação, Genette começou ensaiar ainda na década de 60 com suas reflexões acerca das Figuras (de retórica mesmo). Apropriando-se dos Elementos de Semiologia de Roland Barthes, Genette afirmou que estamos diante de uma ocorrência de figura no exato momento em que o significante normalmente usado para suscitar um significado sofre um desvio, a exemplo do tradicional recurso utilizado em retórica de lançar mão do significante ‘vela’ para designar uma ‘nau’. Esse desvio ocorre no preciso momento em que significante e significado se relacionam, a que Barthes chamou significação. A quebra da expectativa caracteriza, segundo Genette, a ocorrência da figura.
Embora não tenha sido tratado nesses termos, na respectiva época, o texto aqui tentará pensar essa intervenção (esse desvio), que resulta na figura, como uma intervenção de hipersignificação; logo, o hipertexto como uma ocorrência inerente ao processo de significação.
Por outro lado, avançando um pouco no tempo, é possível ver com o advento dos micro-computadores uma intensificação no uso do termo hipertexto. Muitos usuários de internet lançam mão do termo, mesmo que intuitivamente, sem imaginar o processo de significação textual que está por trás do conceito, ou seja, sem imaginar que essa prática textual já é há muito utilizada no meio impresso. Porém convencido de que um melhor entendimento do “fenômeno” só é possível pela análise em meio impresso, deixaremos as ocorrências potencializadas pela máquina para a segunda proposta deste texto. De passagem vale dizer aqui que alguns teóricos do hipertexto já inserido em computador se precipitaram em afirmar que o hipertexto eletrônico pode ser visto como uma espécie de laboratório para algumas teorias pós-estruturalistas, com maior ênfase à Gramatologia de Derrida (assunto esse que valeria um outro texto).
Entrementes, atentemo-nos ao hipertexto enquanto um processo de hipersignificação textual, que se dá ora pela figura, ora pela intervenção lúdica, ora pela diferença, e por quê não dizer de forma sintética?, ora pelo grau-zero barthesiano.
Imaginando o grau-zero como um significante oco, um
espaço a ser ocupado, ou melhor, atravessado por inúmeros outros significantes,
que por sua vez resultarão em algum significado, e fazendo desse ponto o
momento de verticalização do sentido – mais ou menos
como o “estilo” está para o “fundo de mundo” em linguagem indireta –
pensamos em aproximar este momento de hipersignificação
ao que Merleau-Ponty chamou fala falante.
Irresponsabilidade!? Talvez, mas o fato é que o
filósofo da Prosa do Mundo retocava os contornos deste conceito pouco
tempo antes de vir à luz as premissas[3] de toda a obra
do crítico do Neutro.
Entendendo
a fala falante como um momento de expressão, no sentido merleau-pontyano
mesmo, em que a linguagem numa performance linguajeira deixa de apenas se revelar, atendendo assim as
expectativas de quem a recebe ou a lê, para surpreender e consequentemente
conduzir o receptor/leitor por caminhos nunca antes percorrido, e assumindo a
premissa de não-independência na relação linguagem e corpo, torna-se possível
afirmar uma contaminação da crítica barthesiana pelo
“método” e pensamento do filósofo da percepção. No claro sentido merleau-pontyano, em que “toda linguagem se ensina por si
mesma e introduz seu sentido no espírito do ouvinte” o hipertexto passa agora a
ser abordado como um conceito a ser entendido pela linguagem e pelo corpo (pela
linguagem com o corpo, ou pelo corpo com a linguagem).
O corpo, totalidade a partir da qual se cria o
mundo, está na base, ou melhor, está em tudo que diz respeito à expressividade
em Merleau-Ponty, e a expressão, por sua vez, está em
toda articulação que vise a consolidação mutua da
linguagem e do pensamento. Tudo no filósofo, pelo menos até A prosa do
mundo, parece girar em torno desta consolidação mutua em que pensamento,
linguagem, corpo, mundo aparecem de forma imbricada. Algo como um toque
parece ser imprescindível para que haja significação no mundo, aliás, para que
haja mundo. E esse toque, evidentemente, só é possível pelo corpo. O modo como
este texto já começa pensar o hipertexto parece carecer da mesma necessidade
(ser tocado), dado que outra idéia merleau-pontyana
bastante sedutora para esta pesquisa é a de que o texto, ou objeto estético,
ensina-se na mediada exata em que emprestamos a ele nossas experiências de
vida, por meio, claro, da percepção.
Contrário ao que defendeu Sartre – para quem o
empréstimo das experiências individuais é fundamental para a construção do
próprio objeto estético, construção essa feita por uma consciência imaginante, e para quem o objeto se torna inessencial na experiência estética – Merleau-Ponty
descarta a hipótese de uma consciência constituinte, ou de um sujeito que atribui sentidos, para fomentar a idéia de que a importância
de um “eu” na constituição de um objeto estético está tão-somente em perceber,
com o corpo que lhe é próprio, o objeto, para que este ensine e transforme esse
“eu”.
Essa transformação é fruto de uma intervenção do
Outro no “eu”, e essa intervenção, por seu turno, é a consumação do ato a que
se chamou expressão. Ou seja, se entendemos aqui a expressão como o
momento em que o leitor deixa de possuir o texto para, de certa forma, ser
possuído por ele e se aceitarmos esse Outro como a materialidade percebida (o
texto), podemos dizer que o “eu” não apenas toca o Outro com seu corpo, mas,
principalmente, é tocado e transformado pelo corpo do Outro.
Ao encontro dessa perspectiva, respaldado, porém,
sempre pela noção de escritura, Barthes também envereda por caminhos que acabam
por conceber o texto como um momento de toque, de contato: “Quanto mais plural
é o texto, menos está escrito antes que o leia”. Não ignorando, claro, que a
questão central no crítico não é o corpo, mas sim a infinitude
do significante, eis o casamento que julgo frutífero para uma análise hipertextual: a constante multiplicação de significantes
que dá movimento àquilo que a história da literatura tentou estagnar, a saber,
o texto; e a simples aceitação de que significantes são corpos (Outros) a nos
ensinar.
Levando-se em conta, por fim, que a significação,
para Barthes, é a relação entre o significante e o significado e que, para o mesmo
autor, um texto ganha real significância em literatura na precisa medida em que
se ocupa momentaneamente, ou atravessa, um grau-zero de produção de sentido[4],
julgaremos possível concluir que esse atravessamento (que na obra de Barthes
também aparecerá como verticalização, estilo, ou
fala), viável somente num espaço de escritura, se relaciona bem de perto com a
noção de expressão de Merleau-Ponty.
Enfim, todos esses atravessamentos, que parecem
fazer com que subjetividades e objetividades se toquem, funcionam como base
para compreendermos a fala falante. E o hipertexto aqui, desde a hipersignificação pelo desvio na figura até as hiperligações em nós pelo computador, nada mais pretende
ser do que uma fala falante.
A poeticidade no hipertexto eletrônico
Saindo
agora do meio impresso, onde se tentou esboçar o processo de hipersignificação como um momento de expressão, como uma
fala falante, entreguemo-nos doravante ao hipertexto no meio eletrônico.
Sabendo-se
que o texto, literário ou não, inserido no computador está estruturado como uma imensa teia interligada por nós, a que se chamou também
hipertexto, podemos, admitir que o primeiro grande ganho dessa mudança
de meio diz respeito à potencialização das possibilidades
já praticadas no meio impresso.
Portanto,
se acreditamos acima num hipertexto que, à maneira de uma fala falante, não
cessa de nos tocar, ou melhor, de tocar o “eu”, bem como apostamos na constante
multiplicação de significantes, que por serem corpos não cessam de ensinar, o
hipertexto eletrônico é uma das possibilidades de vermos consolidado na prática
o que teoricamente se esboçou acima.
Porém, o
que me parece mais instigante no momento é aproveitar as categorias discutidas
por Merleau-Ponty para pensar como fica a nova ordem
de valores, levando-se em conta a prática literária no meio eletrônico.
Primeiramente,
faz-se necessário uma breve explicação quanto à opção pelo termo poeticidade em
vez de poética. Entendendo este último como uma fala falada encarregada da
atribuição de valores no que concerne à estética da produção literária – ou
seja, como um discurso legitimado e canonizado em séculos de história da
literatura –, julgo mais prudente pensarmos num termo que não trague consigo
essas noções, dado que o meio (computador) do qual estamos falando sequer
apresenta um público formado. O público, conforme fica evidente desde
Aristóteles, torna-se um dos pilares a sustentar a construção deste conceito
que parece atravessar a história dos feitos literários como uma espécie de
referência (quem sabe, como um catálogo de consulta) no que respeita à
estética. Mesmo quando um estudo sobre a arte de poetar, ou de representar,
direciona seu foco para diferentes momentos históricos literários (virada do
século XIX para o XX, por exemplo), o que parece estar em jogo é sempre a
necessidade de um público, com tudo que lhe é contextual.
Tendo isso
em mente, fica difícil falar sobre padrões de estética, ou atribuição de
valores, numa prática literária que começa a ensaiar seus primeiros passos. A
invocação de um termo como poeticidade tende a sugerir que a própria noção de
valores e padrões estéticos (poética) está em processo de construção. A
poeticidade do meio eletrônico, ao menos neste texto, quer se dar à maneira de
uma fala falante, algo ainda não dito e que para sê-lo necessita de um toque.
Quando
dissemos mais acima que o hipertexto eletrônico pode ser uma das possibilidades
de verificarmos as discussões feitas na teoria, estávamos pensando,
principalmente, nas noções de escritura e de grau-zero, que a meu ver sustentam
plenamente a idéia de movimento inerente àquelas discussões e que hoje em dia
podem ser vistas concretizadas no computador.
Porém,
sendo nossa preocupação aqui pensar a poeticidade do fazer literário
eletrônico, deixemos a comprovação ou não das teorias
pós-estruturalistas para momentos outros. Tentemos ver agora de que forma as
respectivas noções barthesianas, tocadas de uma
maneira merleau-pontyana, podem contribuir na
formação deste conceito que batizamos poeticidade.
Aceitando a
“premissa” de que não lidamos mais com obras e sim com textos, que por sua vez
estes são frutos de uma escritura que não cessa de se escrever e de ser escrita,
e que a troca do estatuto do autor pela atividade do escritor nos leva rumo a
uma diminuição da distância entre objeto e sujeito (tanto o que produz, quanto
o que reproduz pela experiência estética), não se torna absurdo afirmar que as
reivindicações de críticos como Barthes e Eco, Genette
e Derrida, possam ser implementáveis
a partir de uma metodologia filosófica merleau-pontyana.
Opa!
Metodologia merleau-pontyana? Vamos com calma!
Não se
trata de afirmar que haja, ou não, tal método, muito menos de afirmar que, no
caso de existir, se trate do mais adequado para se pensar o hipertexto. Mas,
levando-se em conta o que já foi dito aqui sobre pensar filosofia a partir da
arte – e não fazer desta um objeto daquela –, bem como toda a fenomenologia
tocada por Merleau-Ponty (a saber, uma fenomenologia
que abdica da consciência imaginante em prol de um “
eu” que se cria a partir da transformação resultante do contato com um
“Outro”), não hesitaremos em colocar na base de
sustentação dessa poeticidade a corporeidade que também podemos encontrar na
base do pensamento do filósofo da percepção.
Imaginemo-nos
diante de um hipertexto eletrônico (uma obra de cunho literário de
preferência): a cada possibilidade de clicarmos com o cursor do mouse em cima
de um link que nos atira em direção a outro emaranhado de significantes, ou
ainda, a cada possibilidade de ignorarmos um link, estaremos, em certa medida,
construindo diferentes caminhos de leitura, o que equivale dizer, diferentes
textos. Porém, não nos limitando a esta argumentação que contribui muito mais
para relacionar o hipertexto às noções de escritura e diferença (com toda a
sugestão de infinitude de significantes que lhes são
peculiares), concentremo-nos na possibilidade de pensarmos que o hipertexto
pode não somente servir como concretizações, ou laboratório como sugeriu George
Landow, mas também que ele nos ensina, à maneira de
um texto ensinante, a nova ordem não apenas da
produção literária, mas também da valoração desta produção. Ou seja, que as
diversas possibilidades de intervenções a que o leitor do hipertexto eletrônico
tem direito não sirvam apenas na construção de diferentes textos, mas também
para ensinar o próprio leitor quanto às novas possibilidades de reinvenção da
linguagem.
Por tudo
isso é que apostamos em Merleau-Ponty para pensarmos
também a poeticidade da literatura inserida. Pois, se nem mesmo um público
exigido (e exigente) na formação de padrões estéticos ainda é possível
constatar, no que respeita à literatura eletrônica, como poderíamos falar em
poética sem admitirmos a necessidade de aprendermos com o próprio meio, sem
admitirmos sequer que a própria relação de intervenção eu/Outro pode, a partir
deste meio, contar com periféricos (mouse, teclados...) que, servindo como uma
espécie de extensão do corpo, materializam os descentramentos que transformam o “eu” numa relação
recíproca em que o interventor sofra também intervenções do Outro que tenta
tocar?
A sugestão
que este ensaio tenta deixar, no que concerne à poeticidade da literatura eletrônica,
é justamente a de que os pressupostos mínimos necessários para um possível
julgamento estético neste meio se ensinam à medida que as investidas com o
próprio meio se intensificam. Como num momento de expressão, como numa
escritura que não cessa de escrever e (para nós) de ensinar, como numa
constante hipersignificação, ou como numa diferencia,
em que os significantes passam a significar no contato, ou na relação, com os
demais significantes, o hipertexto e toda a nova concepção de valores que dele se
desencadeia se apresenta como uma fala falante, no sentido estrito de não estar
ainda falada, de ensinar no preciso momento em que fala, ou talvez, em que se
faz texto.
Referências
BARTHES, Roland. O Grau
zero da escritura e novos ensaios.tradução: Mario
Laranjeira São Paulo: Cultrix, 2004.
_______________. Elementos
de Semiologia. São Paulo: Cultrix, 1979.
GENETTE, Gerard. Figuras.Tradução Ivonne Floripes Mantonelli. São Paulo:
Perspectiva, 1972.
_______________. Palimpsestes: la littérature au second degré.
Paris: Éditions du Seuil, 1982.
MERLEU-PONTY, M. Elogio da Filosofia. 3. ed. Lisboa: Guimarães, 1986.
______ Fenomenologia da percepção. São
Paulo: Martins Fontes, 1994.
(Coleção Tópicos).
______ O Visível e o Invisível.
Tradução de José Artur Gianotti e Armando Mora d’Oliveira, São Paulo:
Perspectiva, 2005
______ Prosa do Mundo.
Tradução de Paulo Neves, São Paulo: Cosac & Naify, 1952.
MÜLLER, Marcos J. Merleu-Ponty acerca da expressão. Porto
Alegre: Edipucrs, 2001 (Coleção Filosofia, 122).
SANTOS, Alckmar
Luiz dos. Leituras de nós: ciberespaço e literatura, São Paulo:
Itaú Cultural, 2003.
SARTRE, Jean-Paul. Que é
a Literatura? 3. ed. São Paulo: Ática, 2004.
<REVISTA TEXTO
DIGITAL>
[1] Não
que agora o conheça bem.
[2] O
hipertexto interessa aqui não apenas como processo de produção textual, mas
como processo de produção de textos literários. Logo, uma discussão que
interessa também a estética.
[3]
Assim gosto de pensar O grau-zero da escrita
[4] Algo
como o cavaleiro que é só armadura em Ítalo Calvino.