<REVISTA TEXTO DIGITAL>

ISSN 1807-9288

- ano 2 n.1 2006 –

http://www.textodigital.ufsc.br


 

ACERVOS LITERÁRIOS E CATÁLOGOS DIGITAIS

 

LITERARY COLLECTIONS AND DIGITAL CATALOGS

 

Maria da Glória Bordini

Doutora em Lingüística e Letras pela PUC-RS

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

mgbordini@portoweb.com.br

 

 

Os estudos literários descortinam um novo horizonte de possibilidades produtivas, com as perspectivas de armazenamento e velocidade de acesso à informação trazidas pela idade digital. O potencial de inovação e avanço do conhecimento nessa área reside num ângulo de abordagem do objeto literário impossível de ser perseguido antes da era do computador pessoal e das redes eletrônicas que os interligam.

 

As reais condições materiais para uma aspirada articulação da obra com o sistema literário e cultural dependem da mobilização de tantas variáveis que só os recursos da informática permitem a construção de um cenário em que texto e extratexto se conjuguem. Quando se busca estudar a literatura brasileira incluindo seus autores, seus textos e seu público, bem como a indústria cultural, as instituições que legitimam o objeto literário e a historicidade de todos esses fatores, a reprodução digital de documentos, os bancos de dados, as bibliotecas virtuais, os tratamentos da imagem, o hipertexto, enfim, as facilidades trazidas pelas novas tecnologias manifestam sua plena potencialidade relacional.

 

Através de um projeto integrado, financiado pelo CNPq, intitulado Fontes da Literatura Brasileira, a equipe de pesquisadores da PUCRS, liderada por Regina Zilberman, levou a cabo durante 13 anos vários projetos de memória literária, onde se desenhou um horizonte de pesquisa ainda pleno de promessas. Dados objetivos, decorrentes da recuperação e coleção de fontes primárias, postos em circulação e em contato, já contribuíram com novos conhecimentos históricos, críticos e até teóricos para a área de Letras, como se pode comprovar através de livros como As Pedras e o Arco: fontes primárias, teoria e história da literatura,[1] ou Caderno de Pauta Simples: Erico Veríssimo e a Crítica Literária[2].

 

Resultantes do Projeto Fontes foram os acervos de escritores sulinos, hoje em número de dez, mais quatro coleções documentais, que impuseram a adoção de medidas tecnológicas para a preservação e a investigação dos documentos neles reunidos. A matéria dos acervos inclui manuscritos, datiloscritos, esboços, notas de pesquisa e de leitura, correspondência, iconografia, itens audiovisuais, obras de arte, ilustrações, bibliotecas pessoais, edições nacionais e internacionais, toda espécie de notas de imprensa, desde entrevistas até anúncios, registros de adaptações, fontes de fortuna crítica, contratos, prestações dc contas, layouts, folhetos e cartazes de publicidade, objetos pessoais, souvenirs, homenagens de toda sorte e documentos pessoais.

 

A necessidade de mobilizar essa imensa massa de vestígios materiais da vida e da obra de escritores tais como Erico Verissimo, Dyonélio Machado, Reynaldo Moura, Josué Guimarães, Mario Quintana, Lila Ripoll, Pedro Geraldo Escosteguy e outros, obrigou à informatização. O Acervo Literário de Erico Verissimo foi o modelo-piloto de todo o empreendimento, gerando um sistema original de organização,[3] expandido aos demais acervos e hoje adotado até em Portugal. Todavia, a existência material dos documentos, seu armazenamento e preservação, não seriam suficientes para facultar a pesquisa visada.

 

Tudo ficaria demasiado restrito à consulta direta, com a manipulação de uma gama extensa de documentos, o que se tornaria inviável sem o auxílio da digitalização e da catalogação eletrônica. Mesmo existindo catálogos, as limitações advindas da necessidade de manusear milhares de fichas preenchidas a mão ou datilografadas, com atenção ao cruzamento de dados, tornaria a consulta muito demorada e inviabilizaria o trabalho de consulentes internacionais, que em geral não dispõem de tempo para acessar as fontes que os interessam. Isso sem falar no problema da catalogação propriamente dita e dos danos possíveis aos documentos em virtude do manuseio e exame não mediado por veículos protetores.

 

Tendo em vista a especificidade da documentação e da pesquisa literárias, os acervos de escritores sulinos foram tratados informaticamente a partir do sistema de organização elaborado pelas diversas equipes de pesquisa que ao longo de onze anos se envolveram com o trabalho de acervo e que se encontra não só publicado nos Cadernos do Centro de Pesquisas Literárias, mas está disponível na internet, no endereço:

 

www.pucrs.br/fale/pos/centrodememoria/trabalhos.htm

 

Esse manual, idealizado pela coordenadora do Acervo Literário de Erico Verissimo e surgido dos sucessivos encontros do Grupo de Pesquisa de Acervos de Escritores Sulinos, de reuniões e jornadas de trabalho com manuscritos de seus coordenadores e bolsistas, estabelece as diretrizes a serem observadas na coleta, acondicionamento, arquivamento e catalogação de qualquer dos acervos pertencentes ao Centro de Memória Literária da PUCRS. Foi pensado em função da informatização dos acervos e, abstraindo-se os elementos relativos à coleta, acondicionamento, armazenamento e conservação do material, encontram-se nele os modelos de todas as fichas catalográficas eletrônicas para cada espécie de arquivo, com instruções detalhadas para preenchimento, seja ele manual ou digitalizado.

 

Quinze espécies de arquivos documentais podem ser organizadas e catalogadas pelo sistema, conforme as características da produção de cada autor. São elas: 01- Originais, 02- Correspondência, 03- Publicações na Imprensa, 04- Esboços e Notas, 05-Ilustrações, 06- Documentos Audiovisuais, 07- Memorabilia, 08- Comprovantes de Edições, 09- Comprovantes de Crítica, 10- Comprovantes de Adaptações, 11- Objetos de Arte, 12- História Editorial, 13- Biblioteca, 4- Vida e 15- Obra.

 

Os catálogos têm entradas gerais, que discriminam o código do material, o nome do acervo, a categoria do item, seu gênero, localização na sede do acervo (móvel e compartimento), autor do item, título (quando houver), data de produção, número de páginas, estado de conservação e descrição de dimensões, suporte e conteúdo. Para cada arquivo, conforme sua natureza, pode haver outras entradas específicas.

 

 

 

 

A ficha da classe 01-Originais, por exemplo, registra os manuscritos das obras do autor que resultaram na primeira edição ou alguma das versões anteriores, na falta destes, assim como textos prévios inéditos ou abandonados pelo autor, desde que apresentem um grau razoável de finalização. Sua configuração prevê, além dos dados gerais, o número de volumes. O preenchimento permite a inclusão de dados duvidosos, designados por ponto de interrogação e a ausência de dados, por travessão. As datas iniciam pelo ano/mês (abreviado)/dia. Os volumes componentes do item são registrados com U para único o com o número total. Se pertencem a uma coleção, indica-se o número da mesma. Na entrada Localização, residências particulares, instituições, salas, armários, compartimentos destes, estantes, prateleiras destas, caixas e volumes são  indicados pelas letras iniciais, assim como em Estado, abreviam-se muito bom, bom, regular e péssimo pela inicial.

 

A descrição discursiva do item, para papéis, menciona o suporte físico, suas dimensões, tipos de papel, tintas empregadas, inscrições ou ilustrações, páginas faltantes ou intercaladas pelo autor, numeração original, se houver, dados sobre a história do item. Para objetos, refere-se o que o constitui, a substância de que é feito, as dimensões, o tema, inscrições. É nela que se anotam dados e endereços em que se encontram, quando estão fora do Centro de Memória Literária.

 

Na ficha da classe 15- Obra, é possível conhecer a produção do autor, através de resenhas breves. No Banco de Dados, dá acesso a todas as fichas relacionadas à obra X,através de uma sigla usada em todas as demais, bem como a índices de uma edição padrão, de caráter toponímico, antroponímico, incluindo remissões as mais variadas, como a fatos históricos, entidades ficcionais e mitológicas, e até marcas de fantasia que apareçam na obra.

 

Cada ficha é também preenchida por assunto, com até cinco palavras-chave, a partir de uma lista básica, mas modificável. O Assunto dá acesso eletrônico à ficha no banco de dados em que todas estão incluídas. Desse modo, pode-se procurar por área (ex.: Biografia, Literatura Estrangeira, História, Cultura Brasileira), por conteúdo ficcional (relações pessoais, políticas), por conteúdo não-ficcional (indústria cultural, relações institucionais), por elemento do item ficcional (personagem, enredo, cenário, obra de XX), por local (países), por época/evento (Ditadura Militar, Revolução de 30).

 

Um software desenvolvido para os acervos pela Bell Systems, para rodar na plataforma Windows, informatiza essas fichas à medida que vão sendo preenchidas por coleta de dados no acondicionamento e arquivamento. Prevê a digitalização do item através de scanner a cores, acoplando, em hipertexto, arquivos de texto/imagem/som a essas fichas e, com isso, dispensando a consulta ao item original, salvo para estudos de suporte ou marcas de escrita. A utilização de arquivos dessa natureza, entretanto, não permite impressão ou cópia, para salvaguardar os direitos autorais dos herdeiros.

 

O programa de informatização Acervo oferece, no menu principal, as opções: “tabelas”, “pesquisa” e “material”.

 

A opção “Tabelas” é codificadora. Pode ser utilizada para adicionar ou alterar: 1) Nomes de acervos e suas siglas; 2) Grupos (classes de materiais) e seus respectivos números; 3) Categorias do material e seus códigos; 4) Gêneros do mesmo e suas siglas; 5) Assuntos na lista dos mesmos que consta na ficha e suas siglas; 6) Índices; e 7) Tipos de históricos relativos ao acervo X, que informam sobre bolsistas, coordenadores, correspondência, documentação legal, eventos, exposições, herdeiros, história do acervo, projetos, relatórios, trabalhos produzidos e/ou publicados.

 

A opção “Materiais”, após escolher-se o acervo do escritor a ser consultado, abre a ficha catalográfica de cada item do acervo X. É identificada, abaixo, pelo dia, mês, ano e hora em que foi elaborada ou modificada (data da última atualização). No cabeçalho possui os campos: fechar, desfazer, recortar, copiar, colar, encontrar, encontrar próximo, filtro avançado, filtro por seleção, remover filtro, classificação crescente, classificação decrescente, primeiro, anterior, próximo, último, novo registro, salvar registro, excluir registro e abre tela menu.

 

 

 

 

 

 

As fichas correspondem aos itens das classes de documentos existentes nos acervos:

 

Originais

Correspondência

Publicações na imprensa

Esboços e Notas

Ilustrações

Audiovisuais

Memorabilia

Comprovantes de Edição

Comprovantes de Crítica

Comprovantes de Adaptação

Objetos de Arte

História Editorial

Biblioteca

Vida

Obra

Todos Grupos

 

 

Em cada ficha a existe a opção “Assuntos”. Esta inclui palavras-chave como Artes Visuais, Autógrafo do Autor, Beethoven, Artigos Brasileiros, Autocrítica, entre muitos outros. A palavra-chave permite, na opção “Pesquisa – por assunto”, recuperar todas as fichas em que ela conste. Ainda há duas opções: Imprimir ficha, que fornece a ficha em sua versão final; e Foto Grande, que exibe a imagem do material.

 

A opção “Pesquisa” abre campos a serem preenchidos conforme os interesses do consulente. São eles:

 

·  Pesquisa por material, em que se podem localizar, por exemplo, ilustrações;

·  Pesquisa por assunto, que remete a, por exemplo, Drummond;

·  Referência bibliográfica, quando se desejam listas de bibliografia constante no acervo, como fortuna crítica ou biblioteca do autor;

·  Referência bibliográfica por assunto, que refina a busca bibliográfica;

·  Ficha por material, que gera o modelo de uma ficha de acordo com o material, em formato Microsoft Word;

·  Ficha por categoria, que gera o modelo de uma ficha de acordo com a categoria, em formato Microsoft Word;

·  Históricos, correspondendo a dados sobre as atividades do acervo.

 

A facilidade de obtenção de dados, utilizando-se os catálogos eletrônicos para acervos literários, pode ser medida se comparada à penosa pesquisa manual, através da consulta ficha a ficha, sem possibilidade de formarem-se listas e sem índices remissivos entre as fichas. Diante de um catálogo eletrônico, o pesquisador apenas comanda um roteiro preestabelecido, reunindo dados que o interessam numa velocidade em tempo digital. Além de dispensar em muitos casos a pesquisa direta ao documento, preservando-o de desgaste, esses recursos de informatização oferecem, em  tempo reduzido, acesso a uma variedade tão grande de materiais e assuntos, bem como a datas e dados multidisciplinares, que um trabalho com os documentos em si jamais alcançaria num prazo razoável.

 

Dessa forma, a existência da catalogação eletrônica de acervos não apenas é instrumento de preservação de nossa memória literária, como abre novos horizontes de pesquisa na área dos estudos literários, mobilizando elementos que, sem a informatização, os pesquisadores só poderiam associar com muita dificuldade. Como o processo associativo inesperado é a fonte de novos conhecimentos, pode-se avaliar a necessidade de que os recursos digitais sejam empregados em ampla escala em questões documentais, antes que os dados essenciais desapareçam.

 

 

 

 

 

 

<REVISTA TEXTO DIGITAL>

 

 


[1] Obra publicada pela editora da UFMG, de Belo Horizonte, em 2004.

 

[2] Edição do Instituto Estadual do Livro, de Porto Alegre, em 2005.

 

[3] Consulte-se os Cadernos do Centro de Pesquisas Literárias da PUCRS, Porto Alegre, v.1, n.1, jan. 1995, que publica o Manual de Organização do Acervo Literário de Erico Veríssimo.