<REVISTA TEXTO DIGITAL>

ISSN 1807-9288

- ano 2 n.1 2006 –

http://www.textodigital.ufsc.br


SANTOS, A. L. dos. Escrevendo, lendo, escrelendo. Texto Digital, Florianópolis, ano 2, n. 1, Julho 2006.

 

 

 

ESCREVENDO, LENDO, ESCRELENDO

 

WRITING, READING, WREADING

 

 

Alckmar Luiz dos Santos

Doutor em História e Semiologia do Texto e da Imagem pela Université de Paris VII,

Universidade Federal de Santa Catarina

alckmar@cce.ufsc.br

 

 

RESUMO: Pensar escrita e leitura implica mapear uma intrincada rede de relações, de movimentos, de gestos expressivos, que não se deixam explicar de maneira simples, nem definitiva, misturando criação (escrita) e leitura; embaralhando quem dá a ler, o que se dá a ler, e a quem se dá a ler. Privilegiando tais perspectivas, este trabalho procura estudar algumas criações em meio digital, especialmente o "Grammatron" de Mark Amerika, partindo justamente dos corpos que lêem e se dão a ler. Ademais, há que se tomar nota da curiosa coincidência entre o corpo que lê e o corpus que se dá a ler, coincidência que vai além, muito além, de qualquer simplificação etimológica.

 

PALAVRAS-CHAVE: Escrita. Leitura. Meio digital.

 

ABSTRACT: To think of writing and reading implies mapping an intricate net of relations, of movement, of expressive gestures, that do not allow themselves to be explained in a simple, or definitive manner, mixing creation (written) and reading; shuffling he who gives to read, that which gives itself to be read, and he who gives himself to be read. Privileging such perspectives, this work attempts to study some creations in the digital medium, especially Mark Amerika’s Grammatron, justly departing from the bodies that read and give themselves to be read. Furthermore, one must take notice the curios coincidence between the body [corpo] that reads and the corpus that gives itself to be read, coincidence that goes beyond, far beyond, any etymological simplification.

 

KEYWORDS: Writing. Reading. Digital Medium.

 

 

 

Devo a idéia deste título ao amigo Pedro Barbosa que, há mais de uma década, já pensava no meio digital como uma escrileitura. Ao longo desse tempo todo, tal conceito prestou-se a uma série de abusos: muitos afirmando que a leitura digital seria sempre uma escrita, disfarçada até, mas inquestionável; alguns tentando reduzir qualquer escrita a uma leitura de objetos disponíveis e já existentes anteriormente. Em outras palavras, os primeiros dizendo que, em todo objeto, há apenas gesto expressivo; os demais preferindo ver, em qualquer gesto, unicamente um objeto expressivo. Como se gesto expressivo e objeto expressivo não pudessem ser reconduzidos aos mesmos campos conceituais, pela experiência direta que deles sempre podemos ter! No que me diz respeito, ainda teimo em recusar essas simplificações pelos extremos. Por outro lado, também não me deixo seduzir pela virtude do ponto médio, que é freqüentemente sinônimo de mediocridade. Prefiro imaginar que o caminho é mesmo o da complicação, retomando, sempre, a lição de Bachelard, de que conhecer um objeto é torná-lo complexo.

 

Assim, pensar escrita e leitura implica mapear uma intrincada rede de relações, de movimentos, de gestos expressivos, que não se deixam explicar de maneira simples, nem definitiva (e não apenas no meio digital!): há várias maneiras de se dar início a tal exercício, inúmeras entradas para esse espaço expressivo, incontáveis modos de se propor conceitos e alinhavar argumentos. Até aí, não afirmo nada além do óbvio! Contudo, somente podemos ir além desse óbvio, se abandonamos toda hesitação e nos dispomos a escolher algum elemento do espaço expressivo que nos permita focar tanto objeto quanto gesto, entrando assim decididamente e de vez nesse espaço expressivo. Ora, um elemento primordial refere-se justamente aos corpos que lêem e se dão a ler. Ademais, há que se tomar nota da curiosa coincidência entre o corpo que lê e o corpus que se dá a ler, coincidência que vai além, muito além, de qualquer simplificação etimológica, embaralhando inevitavelmente aquilo ou aquele que lê com aquele ou aquilo que é lido.

 

De fato, parece haver sempre um quiasma entre corpo e corpus, qualquer que seja o meio em que se produza e se dissemine a expressão literária. Contudo, queremos partir da hipótese de que o meio digital torna mais evidente ou direta essa possibilidade. Uma das decorrências de tal hipótese é que podemos pensar no corpo como algo que se torna texto ou pedaço de texto, quando colocado diante, além, aquém, abaixo, acima e dentro desse hipertexto também chamado ciberespaço[1]. Isso ocorre justamente em função da experiência que o corpo desenvolve do e no ciberespaço, em que este surge também como texto, às vezes estropiado, continuamente espedaçado, mas sempre apontando para alguma totalidade inapreensível, assintótica, que pede o coser e o concerto de uma leitura que venha prolongar as significações (as nossas e as do ciberespaço). Daí dizermos que o corpo também se torna texto, mas texto de estranha fatura quando, por vezes, deparamos com a impossível composição de dois contrários. De um lado, a sensação de que nunca mais seremos reconduzidos a qualquer totalidade; que nunca mais experimentaremos qualquer unidade; que nos reduzimos a um amontoado de gestos desconexos, de significados descozidos; que nos limitamos a uma fuga para diante em que respondemos cada vez mais rapidamente e de forma desordenada a estímulos concomitantes ou coincidentes. Por um outro viés, parece que nos concentramos todos em nossa armadura tátil, que ela é a expressão definitiva do que somos e exprimimos, nossa totalidade: nosso ver como que se torna tocar; nossos olhos parece se transformarem em extensão dos dedos; nossos pensamentos percorrem digitalmente (em todos os sentidos!) a tela, as imagens, as palavras, os movimentos, as formas, os processos etc. Em suma, pode-se dizer que encenamos um teatro inviável, em que nossas singularidades e nossa totalidade fingem estar em lados opostos do espelho (ou da tela), que pertenceriam a dois universos distintos, com lógicas e ordens avessas umas às outras, incomponíveis umas com as outras.

 

Nessa perspectiva, como submeter, então, a alguma ordem, por mais efêmera que seja, esse desconserto que é também desconcerto? Como dar conta desse desacerto, desse desvão entre a inteireza evidente e imediata de nosso corpo e a pluralidade inconseqüente e inesgotável do ciberespaço e a de nossos gestos e expressões? Talvez trazendo à cena (ou à tela) uma corporificação dos textos, justapondo-a justamente a essa textualização dos corpos! Trata-se, em resumo, de pensar a reversibilidade entre escrita e leitura, não como uma igualdade simplista e redutora entre ambas, mas como reflexo ou conseqüência de uma outra reversibilidade, essa, sim, complexa e sempre irredutível a relações de causa-e-efeito, essa reversibilidade que se dá entre corpo e corpus, que lêem e se dão a ler um ao outro. Para isso, lancemos-nos à exploração da obra Grammatron (www.grammatron.com/gtron1.0/a1.html), de Mark Amerika, criação que pode nos fazer avançar um pouco mais em terreno tão acidentado.

 

Para alguns iniciados, Grammatron remete quase de imediato ao tetragramaton, ou seja às quatro consoantes do Hebraico (YOD HE WAW HE) que se refeririam ao nome divino. É certo que a criação de Mark Amerika não desdenha essa hipótese. A maneira como desenrola frases e imagens, como associa palavras a palavras, palavras a imagens, imagens a imagens, não é estranha a uma certa mentalidade cabalística. Com efeito, tal multiplicação de vozes, de formas e de cores parece trazer, ao plano da expressão artística, os encadeamentos plurais e infindáveis dos discursos da Torah. Daí a referência do próprio artista a uma “story about cyberspace, Cabala mysticism[2]. Mas que misticismo seria esse?! Haveria ainda lugar para uma percepção mística da paisagem contemporânea, submetida que está a processos e a objetos de alta densidade tecnológica? Ora, não deve ter passado despercebido, mesmo aos mais incautos dos leitores, que Mark Amerika intromete um “r” no final da palavra grega: de grammaton, ela se torna grammatron. Estaria ele tentando inserir alguma sonoridade da electronics nesse vocábulo? É possível! Por esse viés, seria então viável falar de uma eletronificação do místico e, também, do mítico, ambos submetidos ao império das técnicas, ambos reduzidos à rarefação que tomaria conta de tudo, à exceção das tecnologias, nessa nossa época de, repito!, alta densidade tecnológica. Mas não seria possível tomarmos esse caminho pelo revés, e ver nele, não uma eletronificação do místico, mas uma mitificação (e, também, uma mistificação) do eletrônico, quer dizer, do tecnológico?! Outra hipótese a experimentarmos.

 

Ora, grammaton é o genitivo do grego grammata (gramma, no singular), que significa letras[3]. Grammatron poderia indicar, então, o espaço eletrônico das letras. Mas por que não poderia ser também a letrificação do eletrônico? Neste momento, alguns dos meus poucos leitores já podem estar dizendo que jogos de palavras, além do eventual barulho que fazem, não impressionam nem convencem. Mas pediria ainda um pouco de paciência, solicitaria que atentassem, no Grammatron de Mark Amerika, para os movimentos dos objetos, para os gestos que somos solicitados a fazer, para a lógica de interação com as páginas. Se ficássemos reduzidos ao título, estaríamos lendo apenas o que queríamos que lá estivesse, e não o que efetivamente lá foi colocado pelo autor. Vamos ainda explorar um pouco mais esses elementos, alguns parágrafos abaixo. Neste momento, me interessa, porém, encaminhar a discussão para essa letrificação do eletrônico, tentando comprovar sua viabilidade, fazendo apelo àquilo que, logo após o título, aparece como o lema que dá entrada à obra:

 

You are about to enter GRAMMATRON

Please wait while the machine reads you.

 

Não seria descabido afirmar que se trata de um preâmbulo à moda do “Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate” de Dante, pois Grammatron estaria reforçando essa imagem de um inferno maquinal e maquínico, em que mecanismos nos leriam o tempo todo; até mesmo num espaço de criação artística, estaríamos condenados às imposições do tecnológico, sem podermos subvertê-las com nossas imposturas artísticas. Mas é inegável que, antes de as máquinas nos lerem, somos nós que as colocamos em marcha, nós é que estamos lendo a frase que o computador nos põe diante dos olhos. E nenhuma alta densidade tecnológica se furtaria, em definitivo, à nossa intenção de ler o computador, de submetê-lo a processos de significação estranhos a sua lógica maquínica. Não há campo cultural, mesmo o das tecnologias contemporâneas, que seja maior ou que esteja fora do espaço da linguagem. Se assistimos atualmente a uma apropriação de vários discursos (artístico, econômico, social, histórico, político etc.) pelo tecnológico, isso não deve nos levar a ver nisso uma fatalidade histórica inelutável, mas apenas o resultado de escolhas, de valores e de hierarquias de poderes de nossas sociedades contemporâneas. De fato, sempre é possível fazer com que nossos discursos se apropriem do campo tecnológico, desviando-a para espaços e lógicas que não lhe eram originariamente destinados. É sempre possível e, diria mais, desejável, que exercitemos uma apropriação do tecnológico (e, dentro deste, do meio digital) por nossa linguagem.

 

Continuando com Grammatron, há nele uma proliferação de frases disparadas sem controle aparente ou visível, uma bulimia discursiva que nos faz não apenas ler as palavras, mas ler também essa recursividade constante de que lançou mão Mark Amerika (e seu programador). Nesse momento, nós podemos passar à leitura dos processos envolvidos, rastreando na tela as interatividades, as lógicas e as estratégias de programação, em vez de nos concentrarmos apenas nas palavras que vão aparecendo: estas não podem ser esquecidas, mas também não podem ser colocadas como fio condutor único da leitura. Essa situação é semelhante à leitura de alguns dos 100.000.000.000.000 de sonetos de Queneau: interessa menos a qualidade dos poemas (sofríveis, mesmo com toda a boa vontade que possamos ter, diante da tradição francesa do soneto) do que a estratégia de subverter completamente a leitura do objeto livro. Por outro lado, as rotinas de programação e de interatividade envolvidas não podem ser o único fundamento de nossa leitura, sob pena de perdermos justamente a perspectiva sempre inaugural da palavra. É através dela, sobretudo, que se propõe, se compartilha e se desenrola o jogo da ficção e da narratividade em Grammatron. Sem o apelo à palavra (mesmo escondida nas fímbrias de imagens, de ícones, de interatividades, de movimentos e de formas), todo gesto de criação e de leitura acabaria se submetendo ao jugo inapelável da tecnologia; contudo, de modo similar, sem o exercício das lógicas da máquina, a palavra poderia assumir rapidamente, como pode sempre fazer, o lugar de Lei (inapelável), Dogma (inquestionável) e Razão (divina)! Assim, é necessário iniciar esse caminho que combina a apropriação do digital pelo discurso ao exercício do discurso através do digital. Sem atentar para essa reversibilidade, não creio que se vá muito longe! E, iniciado esse percurso, podemos passar à apropriação do texto eletrônico pelo corpo, numa possessão às avessas em que nos tornamos o dâimon que vem habitar, desvelar, distorcer e alterar as lógicas e os sentidos do meio digital.

 

Mark Amerika define sua criação, já na página introdutória (www.grammatron.com/about.html), como um ambiente narrativo de domínio público. Mas é interessante seguirmos toda a definição que ele dá da obra:

 

O projeto consiste em mais de 1.100 espaços de texto e 2.000 ligações, acima de 40 minutos de trilha sonora original acessada via Real Audio 3.0, apresentando estruturas de hiperligação por meio de Javascripts especialmente codificados, uma galeria virtual que mostra seqüências de imagens animadas ou não, propiciando um mundo ficcional maior do que qualquer outra narrativa criada exclusivamente para a internete. Sendo uma história sobre o ciberespaço, sobre o misticismo da Cabala (...) em uma sociedade temerosa de sair de si mesma  e tomar contato com sua própria natureza, GRAMMATRON esboça um mundo futuro não muito distante em que estórias não são criadas visando à produção de livros, mas, em vez disso, são criadas como um ambiente imersivo de narrativa em rede que, se desenrolando na internete, coloca em questão como uma narrativa é composta, publicada e distribuída na era da disseminação digital.[4]

 

Ora, temos aí especificado seu gênero: narrativo. Podemos ler também os ambientes ou as coisas que ele tenta mimetizar (ou simular): galeria, biblioteca, algoritmo, sonoteca, editora, livraria etc. Mas nem é isso talvez que mais nos interesse. Esses espaços ou elementos todos cumprem uma função importante, que é a de propor contextos intercambiáveis e polivalentes, mas não tocam no cerne do gesto expressivo, na essência do objeto que se criou uma vez e que se recria a cada interação. Do mesmo modo, é possível buscar alguma tematização nas frases que aparecem página a página, um instante depois do outro: “something "I" can't forget and find myself traversing within, without” corresponderia à presença inelutável e avassaladora do ciberespaço, atravessado de todo ou de nenhum lado (como uma fita de Moebius) por cada leitor; “to regain control over the movement of the letters, their meaning strung together here in this electronic writing space...” seria explicado como aquela letrificação do texto eletrônico de que falamos acima (mas sempre e ainda uma letrificação não expressa, nem realizada, mas tão-somente pensada e tematizada); “Everything welcomes IT and now I go and write IT until I become IT” seria, no revés da frase anterior, a objetivação definitiva de qualquer traço de subjetividade, a eletronificação de nossos mitos, para voltar, através da frase seguinte, “IT becomes me”, ao estágio anterior e assim sucessivamente; como resultado dessas idas e vindas, desses processos recursivos e repetitivos, recriando na programação e nas interatividades o mesmo padrão insuspeito que se descobre nos fractais, como conseqüência disso tudo, uma leitura agônica, um expressar-se agônico, de quem vê, vive, experimenta e expressa “the exploding inside of nowhere lost in the looseness of last lostness”, ou seja, como diz Baudrillard, o vazio do predomínio dos simulacros. Porém, ao optarmos por essa apropriação temática e catrastrofista da narrativa ciberespacial, por mais sedutora que ela seja, estamos perdendo de vista a oportunidade de contar histórias. Se nos limitamos a isso, vamos apenas tentar contar algo que já nem mesmo pode mais ser contado. Afinal, estaríamos nos entregando ao predomínio de uma história que quer liquidar toda história, de uma narrativa que impossibilitaria qualquer narrativa, esse mito impossível mas avassalador da tecnologia contemporânea como entidade auto-suficiente e infalível.

 

Outro pode e deve ser o nosso caminho. Não podemos nos contentar com o tempo e com os ritmos da página, do sítio e da programação. Seja em Grammatron, seja em qualquer criação digital. Aliás, em toda obra artística, não cabe nunca ficarmos limitados a suas lógicas e a seus horizontes de significação restritos: o Nordeste de João Cabral, a Rua de Mata-Cavalos de Machado de Assis, ou os anos de infância de Pedro Nava têm de ser também nossos de alguma maneira, do contrário, estaríamos sempre lendo o mesmo e, portanto, o inútil. Cabe, então, recriar outros ritmos e propor outros tempos. Acima, quando me dediquei ao exercício de interpretar algumas frases que iam surgindo nas páginas de Mark Amerika, não me referi a uma questão importante: qual o tempo que tive ou que temos para pensar e exprimir tudo isso? Certamente não o da leitura direta das páginas, mas o de uma outra, que inaugura um tempo mais largo, um ritmo bem menos intenso que o da programação imposta pelas páginas. Mas, ao me lançar nessa volúpia da interpretação, tentando eliminar qualquer intermediário entre minha experimentação e minha leitura, caí, sem perceber, numa impossibilidade: afinal, experimentar, expressar, ler, tudo isso é sempre propor intermediários, é sempre construir interfaces, erguer arquiteturas que não estavam lá, originalmente, nem no plano de construção da obra, nem no horizonte de significações de que me cerco. Ademais, nesse viés temático ou conteudista, a construção da narratividade ou o exercício da (im)postura artística não iriam além da superfície, além da intenção de querer contar, mas de querer contar dentro dos limites das ergonomias e dos ritmos da programação. É preciso voltar ao que dissemos alguns parágrafos atrás e pensar nessa nova forma de narratividade que se dá na possessão do texto eletrônico pelo corpo. Ela poderia fundar-se não em seqüências de palavras ou imagens, mas em outras sutis seqüências: nessas ligeiras presenças diretas do corpo nos utensílios de interatividade (sobretudo mouse e teclado), nessas sutis presenças virtuais ou a distância de nosso corpo no cursor que se move, interage, hesita, vai e volta, desaparece, reaparece, impõe-se à tela, submete-se à página, repagina a tela, desterra a página etc. De um lado, a história que se conta nas hiperficções é também (talvez principalmente) a narrativa geral de nossa presença diante da tecnologia, da maneira como amoldamos nosso espaço perceptivo e expressivo aos modos, ritmos e ferramentas digitais. De outro lado, contamos também a história particular dos pequenos gestos equívocos, das hesitações diante de interatividades explicitamente recomendadas pela programação, de nossa capacidade, maior ou menor, de desdobrar em outros os significados que são exibidos ou impostos pela obra e sua ergonomia.

 

Nisso tudo que descrevi no parágrafo acima, talvez haja alguma coisa de uma ritualidade contemporânea. Não sei se se pode falar, nas culturas orais, de uma precedência do mito com respeito ao ritual. Mas, neste nosso tempo, consigo ver sem muitas dúvidas uma anterioridade do ritual com relação ao mito. É a partir desses rituais de interatividade fundados numa relação estranhada de nosso corpo com ferramentas voláteis e lógicas precárias de expressão (essas próprias do meio digital), que talvez possamos, em algum momento, contar verdadeiramente uma nova história, um novo mito. E qual seria ele? Essa narrativa contemporânea de nosso ser-com-as-tecnologias, mito na verdadeira acepção da palavra e que viria substituir essa empulhação contemporânea que nos apresenta a tecnologia como instância extra-humana todo-poderosa.

 

De fato, sem apelar a essas experiências maquínicas, o que nos restaria? Onde exercer um tão necessário descontrole social (já que é moda falar de controle social)? Apenas o mero exercício de gestos artísticos, aliás, o instalar-se num pretenso espaço artístico não garante efetividade (nem qualidade, nem profundidade, nem interesse) a qualquer criação digital, se, com ela, não se enfrenta o desafio de contar a história de nossa precarização, se não nos pomos a ler nosso corpo escrevendo no ciberespaço; se não nos surpreendemos escrevendo e esboçando possibilidades de leitura através de deslocamentos na tela, comandados por nossos dedos. Não vejo outra maneira de o homem contemporâneo se emocionar com seu retrato (precário, periclitante, provisório, falto, mas sendo teimosamente construído)! Sobretudo no que diz respeito às ficções criadas no ciberespaço, é preciso contar histórias lendo o efeito de nosso corpo na incessante construção dos corpora narrativos; é necessário ler esses corpora, inscrevendo (ou escrevendo) novas experiências em nosso mundo-vivido, através da produção e utilização de próteses de sensações, de presenças virtuais, de interfaces lógicas ilogicamente utilizadas. De fato, o desafio ainda é, como sempre foi, ler histórias para escrever a história de como ainda não perdemos a capacidade de fabulação!

 

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[1] Aliás, essa indefinição do posicionamento relativo entre corpo e ciberespaço é um indício a confirmar provisoriamente a hipótese acima referida, pois não é algo que se vislumbre freqüentemente fora do ciberespaço.

 

[2]  Como se pode ver em http://www.grammatron.com/about.html.

 

[3]  Não posso deixar de mencionar e agradecer a ajuda sempre pronta de Jessé Gabriel da Silva nessas questões de Grego.

 

[4]  Por ser um trecho mais longo, preferi traduzi-lo.