<REVISTA TEXTO DIGITAL>
ISSN 1807-9288
- ano 2 n.1 2006 –
http://www.textodigital.ufsc.br
AS NOVAS
TECNOLOGIAS, A MESMA AUTORIDADE
THE NEW TECHNOLOGIES, THE SAME AUTHORITIES
Alamir Aquino Corrêa
Doutor
em Literaturas Hispânicas pela Indiana University Bloomington
Universidade
Estadual de Londrina
A minha
participação neste momento dos trabalhos é um tanto dificultosa para mim, por
diversas razões. Preparei várias alternativas, sem conseguir realizar nelas o
que eu me propunha inicialmente – lidar com o tratamento informático de textos
literários. A dúvida que me assombra é oriunda da alta qualidade necessária
para poder contribuir para a ampliação do que somos. Geralmente, aquele que fala, o autor, o propositor, o ator ativo, responsável e impositor do discurso, tem nele a autoridade dada pelo
próprio lugar que ocupa. Mas, estamos a lidar com algo embora onipresente
nas condições atuais da pesquisa em Literatura no Brasil, ainda pouco discutido
e teorizado, menos ainda efetivado.
O perfil deste evento denota exatamente onde estamos,
sinal de que há sintonia entre o que foi proposto e o que é feito. Estamos a
ouvir e iremos ouvir discussões sobre os usos digitais da literatura, aí
inclusas as novas ferramentas, as novas posturas, os novos meios, as eventuais
conquistas. Enfatizo aqui a idéia da novidade, da alteração, da reforma, da
revolução no sentido de alteração radical, que geralmente assusta. Neste
diapasão e tendo em mente as redes de significado que estavam tecidas na minha
proposição inicial, cheguei a pensar que seria talvez necessário reconstruir
até mesmo o formato do que eu teria/tenho a dizer.
Em outros termos, o
tópico sobre o qual eu deveria me debruçar, por decisão da organização do
evento, envolveu-me em mais dúvidas que certezas. Afinal, se há de se discutir
a forma e/ou experiência do tratamento informatizado do texto literário, este é
o tópico fundamental, a técnica e o seu produto. Confesso que pensei em jogar a
tradição para o lado, trazendo para esta comunicação apenas uma série de
tópicos, estrutura primeira de uma discussão, em que o texto final deveria ser
construído por outros textos, contribuídos pelos interatores,
sem que eu pudesse controlar “muito” o seu resultado, tentando mimetizar o que
Barthes propôs em S/Z com o seu texto ideal: um texto composto de outros
textos/imagens interagentes, sem que haja entre eles
sentido hierárquico, sem nota de autoridade, onde prevaleça a liberdade de
construção de significado.
A proposta seria a
seguinte: elencar tópicos concatenados por assunto,
onde houvesse linques biunívocos (e aqui eu pude me
lembrar das aulas de matemática lá longe no passado), sem que fosse estipulado
um tempo limite (exceto o da paciência e aquele pré-estipulado pelos
coordenadores do evento); permitir (apesar do sinal “autorizante”)
que o texto não existisse aprioristicamente; alocar
(dentro da prática construtivista do saber comunitário) responsabilidades
negociadas de adição, deleção e interligação de
experiências e saberes. Entretanto, uma comunicação “reformista” teria, em base
contrastiva, alguns óbices: a reação do leitor (mesmo
que digamos que ele é passivo) a pensar que evitei dizer algo, nada trazendo eu
mesmo para o jogo; a atitude nada humilde de mostrar-me como novo e
revolucionário; a postura crítica em relação a outros que
ocuparam e ocuparão os mesmos espaços, pelo respeito à tradição dos
formatos dos eventos (talvez aqui alguém possa rir da minha desfaçatez em
racionalizar eventuais e incontroláveis respostas do leitor).
Volto ao início do
meu texto, quando revelei que havia dificuldades que me assombraram para a
construção do meu significante. Até que ponto estou
preparado ou reúno as credenciais necessárias para tratar do assunto em
discussão. Apesar do convite efetuado – o que em si se torna o carimbo autorizante – creio que os vinte e poucos anos à frente da
tela do computador como usuário possam, escolhendo as referências que tive
acesso neste percurso ou rede de interlocuções, como leitor-autor me permitir
acrescer algo ao pensar sério sobre este assunto.
A idéia de que há um
tratamento informatizado do texto literário tem como premissa a existência de
um tratamento não-informatizado, ou seja, sem o uso das técnicas possibilitadas
pelo uso do computador. E aqui surge a primeira pergunta: o que era desadmirável mundo velho na seara dos estudos literários?
Por primeiro, havemos de pensar que era também admirável, tanto é que
tradicionalmente o texto literário tem sido fonte de contemplação e de sacralização. Pelo seu viés artístico, prezado e pago,
chega ao máximo da sedimentação de uma sociedade, quando se torna um texto
clássico, quando o leitor se vê completamente passivo, ordenado a absorver o
que lhe é trazido pela escola como dotado de valor.
Talvez meu sumário seja um tanto claudicante, mas geralmente a pesquisa do
texto literário, este objeto sagrado, tem sido pautada por três caminhos: a
hermenêutica, a teorização e a historiografia. O texto pode então ser
explicitado pelo crítico abalizado, ser analisado, classificado e organizado em
tipologias, e ter historiada a sua contribuição em termos de qualidade,
influência e oportunidade. Outras possibilidades vêm de tais posturas: o comparativismo e a discussão do valor relativo
(especialmente na questão da representação).
Ao pensarmos a técnica eletrônica para o tratamento do texto literário, devemos
pensar em quais campos ela se torna facilitadora ou inovadora da pesquisa. A
primeira dificuldade é o fator tempo – a eletrônica por mais velocidade que
possa dar ao trabalho tem de lidar com outros elementos: a quantidade de textos
literários não disponibilizados eletronicamente, pois sua feitura e/ou
impressão é anterior a esta era, o gigantismo do esforço humano para a
transposição do texto literário para o armazenamento eletrônico, o custo
financeiro e tecnológico, o direito autoral e o senso de oportunidade (que
regula também a impressão do texto literário), ou seja, que obra deve ser trazida primeiro para o novo meio.
Antes da informática, já fazíamos a alimentação de bancos de dados
(dicionários, bibliografias e antologias), a edição de textos em conformidade
com o público (as autorizações inquisitoriais e O Príncipe são bons
exemplos), e discussões estilísticas (lembre-se aqui do trabalho hercúleo de
Rodrigues Lapa e As Cartas Chilenas). A informática permitiu maior
velocidade, menor custo, ferramentas estatísticas de concordância (sugerindo
até uma estilística forense), e a pesquisa em laboratório, citando aqui como
exemplos os estudos sobre tempos de leitura e procedimentos cognitivos em face
de metáforas, as reações fisiológicas durante a leitura (com eventual uso na
detecção de atividade cerebral reativa), a qualidade do texto literário e
percepção cultural etc.
Outros procedimentos compositivos tornaram-se
possíveis graças ao uso de softwares de retórica (construção de narrativas
interativas e de larga produção comercial), à construção de jogos com formato
narrativo, onde prevalecem as noções de suspensão da
descrença e interatividade, muitas vezes mimetizando o fenômeno de Werther (há relatos de violência continuada após a
experiência de jogos, com dessensitivização do leitor
de sua capacidade de discernimento de responsabilidades no convívio social). A
informática parece também sinalizar para o surgimento de outros gêneros
literários, e aqui o haiku parece sair na frente,
dada a pequena tela usada nos “handhelds”.
Há inúmeros seminários para a escrita de artefatos para os celulares Waps e outros artefatos com reduzida área de leitura. Ainda
não vi cursos de criação literária para tais formatos, mas sem sobra de dúvida
é um mercado em potencial, como também será possivelmente a venda de leitura de
pequenos trechos em sítios de alto tráfego.
A pesquisa acadêmica, por outro lado, começa tatibitateanamente
a se aperceber que há um necessário reciclar dos nossos objetos de estudo,
faltando acrescer cada vez mais as experiências multimediáticas,
como o cinema, o videoclip, os blogs,
os fotologs, os jogos. E novamente, estaremos a lidar
com as relações entre efeito e crítica, isto é, textos mais recebidos talvez
tenham o mesmo desprezo que muitos de nós damos aos textos literários menos
complexos ou menos qualificados em termos de uso da capacidade
semântico-emocional da língua. Nada obstante, haverá fenômenos (especialmente
na época do crescimento dos chamados estudos culturais) que serão relevantes,
como o estudo de Harry Potter
e O Código da Vinci, até mesmo para a sacralização
do crítico ou pesquisador literário.
Em essência, estamos a lidar com uma nova técnica, uma nova retórica, um novo
processo de construção – aquele da interatividade. As formas referenciais não
mudaram – continuamos a ter a produção autoral a firmar como conteúdo os
limites planejados pelo autor; cresceu o papel do leitor na medida em que pode
aqui e ali alterar o seu formato de leitura, muito embora há
de se reconhecer que há menos o uso da leitura e mais o uso da máquina como
forma de integração entre cérebro e produto artístico. O leitor passou a ser
também responsável por eventuais formas transgressoras da autoridade do
escritor, na medida em que pode também o leitor (sem entrar aqui na discussão
das qualidades dos hiperlinques) alterar a
conformação do texto por ele “experienciada”.
Outro elemento importante parece ser a construção de uma nova ordem cultural,
em que circunstâncias como acesso, descentralização, reconfiguração
do saber e do conhecimento, passam a ter um papel por demais relevante. O texto
literário informatizado perde a sua possibilidade de matização pelo viés econômico-político-ideológico, advinda de uma transgressão
inimputável do controle do direito autoral. É comum a notícia de cópias piratas
e de quebras de propriedade intelectual. O texto deixou de ser conduzido no
eixo metrópole-periferia, desalicerçando as ordens
sociais de controle da cultura. Ainda, o conhecimento tornou-se mais amplo, sem
que isso tenha significado nova instauração de estruturas de poder.
E é exatamente sobre isso, o poder sobre o texto literário que reservo as
minhas observações finais, dentro do meu temor pelo tema. Quando pensamos o
tratamento informatizado do texto literário, e neste pormenor a pesquisa parece
ser o primeiro campo a usufruir desta nova oportunidade, em razão da expansão
geográfica do estudo pós-graduado principalmente e a disponibilidade online de textos, vem a meus olhos a questão do poder. As
estruturas de financiamento da pesquisa acadêmica são, até certo ponto,
controladas pelo viés de nossos pares. Nada obstante, estamos a lidar com
possibilidades de construção de formas de acesso e formas de disponibilização
de objetos.
Por muito tempo, os projetos submetidos às agências de fomento, e aqui falo
diante da experiência que tenho tido na Fundação Araucária no Paraná, tem se
pautado como carentes de uma instrumentalização ou de
uma ferramentalização “informática e internética”. É comum e tácito que o pesquisador tenha como
material um computador pessoal ou até mesmo portátil. Geralmente, sua pesquisa
aponta para a disponibilização futura de material ao público, mesmo que apenas
aquele a ele diretamente vinculado (seus alunos).
Minha angústia se dá na medida em que um eventual tratamento informatizado do
texto literário raramente resulta em acesso àquele material produzido. O
direito de uso mantém-se no nível do pesquisador, mantida a sua autoridade,
mesmo que o produto de sua pesquisa seja do mais alto interesse e que esta
pesquisa tenha sido financiada com dinheiro público. Reforço aqui o título da
minha comunicação – “novas tecnologias, mesma autoridade”. A transformação ou o
tratamento de textos literários através da informática tem de ser muito mais
inclusiva que tem sido, com raríssimas e louváveis
exceções.
Precisamos, e aqui falo muito menos como autoridade e mais como alguém
interessado na ciência como produto do humano, logo geralmente disponível,
evidenciar que os projetos ambiciosos, como a transposição do Inocêncio ou a
edição eletrônica de revistas românticas, sejam disponibilizadas para o público
em geral, sem que se tornem objeto raro e disponível apenas para o pesquisador
e seus orientandos. A informática enquanto técnica é
muito mais agressiva do que podemos supor, pois ela destrói os pilares de sacralização de nós mesmos, muito embora não estejamos
ainda preparados para conviver com a nossa nulificação.
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