<REVISTA TEXTO DIGITAL>

ISSN 1807-9288

- ano 2 n.3 2006 –

http://www.textodigital.ufsc.br/


SALDANHA, L. C. D. Literatura e semiformação no ciberespaço. Texto Digital, Florianópolis, ano 2, n. 2, Dezembro 2006.

 

 

LITERATURA E SEMIFORMAÇÃO NO CIBERESPAÇO

LITERATURE AND SEMIEDUCATION IN CYBERSPACE

 

 

Luís Cláudio Dallier Saldanha

Doutor em Educação / UFSCar

dallier@linkway.com.br

  

 

RESUMO: Análise das implicações decorrentes das novas tecnologias na literatura e no leitor do ciberespaço, focalizando o risco de se reduzir o conhecimento à informação, levando as práticas de leitura no hipertexto a uma condição de semiformação cultural. Ressalta-se a experiência formativa por meio da literatura como um meio de se abordar o texto virtual de modo criativo e crítico.

 

PALAVRAS-CHAVE: ciberespaço, semiformação, leitura, hipertexto.

 

ABSTRACT: Analysis of the current implications of modern technology in literature and in the reader of the cyberspace. The risk of if reducing  knowledge to  information is stressed together with  practices  of reading  hypertext in a condition of cultural half-education. It is emphasized the possibility of formative experience by means of literature if the virtual text appears in a creative and critical way.

KEYWORDS: cyberspace, half-education, reading, hypertext. 

  

1        Introdução

 

Como imagem contraditória do real, como fragmento e ruptura, a literatura apresenta uma relação mediata com a realidade histórico-social em que foi produzida, podendo não se reduzir a uma reafirmação do momento de sua produção. No entanto, a negação determinada presente na literatura, que pode fazê-la diferente de um produto da indústria cultural e contribuir para a formação do indivíduo, parece não estar presente no dilúvio de textos que circulam no ciberespaço.  

 

A produção e o tratamento dos textos no ciberespaço carecem de uma permanente visão crítica que lhes aponte as tensões e conflitos entre suas possibilidades formadoras e as ideologias que se ocultam no próprio ciberespaço e na cultura tecnológica.

 

Diante das propaladas revoluções do hipertexto e do otimismo muitas vezes ingênuo em relação à cibercultura, deve-se ponderar que o ciberespaço coloca em cena o primado da informação e harmoniza-se com o espírito da chamada “Sociedade do Conhecimento”. Podendo atuar como instrumento a serviço de uma concepção de educação que reduz o conhecimento à informação, e que desvincula a informação da experiência, o ciberespaço e as possibilidades que ele engendra devem ser acompanhados pelo desafio de uma leitura crítica, reflexiva e criativa.

 

As inovações na produção literária e nas práticas de leitura abertas pelo ciberespaço devem, então, ser consideradas tanto nos seus elementos de ruptura, criatividade e inventividade quanto nos seus aspectos de continuidade e, mais ainda, no seu comprometimento com ideologias e processos históricos marcados pela racionalidade técnica e pelo modo de produção do capitalismo globalizado.

Assim, a leitura ou navegação no hipertexto precisa ser vinculada à questão da informação e do conhecimento na medida em que o crescente volume de textos virtuais disponíveis é comumente entendido e trabalhado como acesso à informação e esta, por sua vez, é tomada como conhecimento ou, pelo menos, como a base ou a moeda principal das relações da “Sociedade do Conhecimento”.

 

Por isso, se as práticas de leitura no ciberespaço podem ser entendidas como aquisição de informação ou, ainda, como limitação da experiência do conhecimento à mera transmissão de informação, é preciso examiná-las tanto nas suas possibilidades quanto nos seus riscos e desafios à formação do sujeito.

 

Levando-se em conta o conceito de semiformação ou semicultura (halbbildung) em Adorno (1996), com sua crítica à onipresença do espírito alienado e à formação cultural que é símbolo de uma consciência que renunciou à autodeterminação, é imperativo observar também se os procedimentos de leitura ou de navegação no hipertexto e na produção “ciberliterária” oportunizam uma experiência de formação, contribuindo para a construção do sujeito emancipado e crítico, ou uma experiência de semiformação, na qual o indivíduo recebe uma formação falseada.

 

2        NOVAS PRÁTICAS DE LEITURA E PRODUÇÃO LITERÁRIA NO HIPERTEXTO ELETRÔNICO

 

Diante das revoluções que as novas tecnologias da informação e da comunicação acarretariam à produção e ao consumo dos textos no ciberespaço, há quase um consenso para apontar o poder pedagógico e criativo do hipertexto e das possibilidades de escrita e leitura que ele abriria. Não se pode, entretanto, afirmar de modo precipitado e não-crítico que, ao se explorar adequadamente o suporte digital e se valer das novas dinâmicas do texto no ciberespaço, a leitura no hipertexto é necessariamente diferente daquela que se realiza nos textos impressos e, ainda, portadora de uma liberdade sem precedente.

 

É preciso se dar conta da tensão existente na produção textual do ciberespaço, o que leva tanto às possibilidades de construção crítica do conhecimento quanto à reprodução de padrões objetivantes do saber e à reificação do sujeito.

 

Não é incomum encontrar vozes que proclamam um sentido libertário, democrático e formativo inscrito na dinâmica do hipertexto. Na tela, o texto assumiria formas que, não sendo fixas, oportunizariam novas velocidades e estratégias no tratamento de seu material; as fronteiras não se tornariam tão visíveis e o leitor teria a oportunidade de embaralhar, entrecruzar e reunir textos no meio digital. Chartier (1998, p. 13) enumera essas possibilidades chamando a atenção para a "revolução nas estruturas do suporte material do escrito assim como nas maneiras de ler”.

 

Lévy (1996, p. 40), um otimista em relação às possibilidades do ciberespaço, entende essa diferença como um papel mais “ativo” que o leitor assume, pois “ler em tela é, antes mesmo de interpretar, enviar um comando a um computador para que projete esta ou aquela realização parcial do texto sobre uma pequena superfície luminosa”.

A partir da diferenciação entre “hipertexto construtivo”, no qual haveria maior liberdade e menos tirania do espaço e das possibilidades inscritas em um software, e o “hipertexto exploratório”, no qual o leitor ou navegador teria mais chances de se perder e ficar oprimido pelas possibilidades pré-programadas; anuncia-se nesta era informática o surgimento do leitor de “hipertextos construtivos” como um leitor “operador”. Este seria um construtor ou co-criador, participando do texto “social” em igualdade de condições, ainda que tardiamente (MOULTHROP, 1991, p. 154).

 

Por meio da mudança do paradigma do texto linear para o texto em rede, irromperia não apenas um novo tipo de leitor – o navegador, mas também se daria o desaparecimento do autor e de sua autoridade ou, pelo menos, uma reconfiguração de seu papel e status. Mais ainda, em contrapartida ao leitor e autor, surgiria uma espécie de “lautor” (wreader), que reuniria em si tanto o consumidor quanto o produtor de textos (BELLEI, 2002, p. 70-1).

 

Para Santaella (2004, p. 175), o funcionamento da máquina hipertextual proporciona um “contexto dinâmico de leitura comutável entre vários níveis midiáticos”, tornando-se, assim, “uma atividade nômade de perambulação de um lado para o outro”. Isso caracterizaria “uma leitura topográfica que se torna literalmente escritura”, pois a “leitura é tudo e a mensagem só vai se escrevendo na medida em que os nexos são acionados pelo leitor-produtor”.

E aqui, alguns vislumbram um poder crítico e formativo do hipertexto, uma vez que a suposta passividade do leitor dos textos convencionais daria lugar a uma interatividade produtiva, na qual o navegador ou explorador do hipertexto criaria, modificaria e recuperaria os contextos de um sistema de conhecimentos em expansão (JOYCE, 1995, p. 41-2).

 

Mesmo diante do caos característico do ciberespaço, há aqueles que identificam a oportunidade para a abertura de “trajetos pessoais de leitura, caminhos de descoberta, espaços de escolha” (ALAVA, 2002, p. 204-5). Em face das tecnologias que permitem a expansão das possibilidades, colocando o ser humano no centro, a tarefa do educador consistiria, então, em “propor caminhos originais de apropriação desse ciber/hiper/espaço” (id.).

 

Se o software utilizado oferece alternativas de leitura; permite a personalização do próprio programa de leitura; facilita o estabelecimento de vínculos, anotações, recortes, enfim, uma navegação que explore todo o potencial de um hipertexto; então, diriam os mais otimistas, nesse caso surgem novos tipos de leitura e a abertura para a autonomia no aprendizado. No entanto, cabe perguntar se realmente está inscrito no hipertexto eletrônico um diferencial qualitativo que permitiria identificar nele a possibilidade de uma formação crítica. Mais ainda, cabe verificar o que realmente é diferenciador no hipertexto; indagar se a novidade do suporte material do texto redunda necessariamente numa produção literária libertária e numa criatividade sem precedente.

 

3  CRÍTICA ÀS POSSIBILIDADES PEDAGÓGICAS DO HIPERTEXTO

 

A crença num poder pedagógico quase ilimitado do hipertexto não é compartilhada por muitos. Para além de uma resistência estéril e conservadora às novas tecnologias, há uma inquietante e produtiva preocupação por parte de muitos teóricos críticos em identificar as falsas promessas e beatitudes vislumbradas no hipertexto e na produção literária do ciberespaço. 

 

Rosemberg (1994, p. 270, 310) é um daqueles que consideram ser um entusiasmo descabido atribuir ao hipertexto a capacidade de oferecer aos que dele participam experiências educacionais e estéticas recompensadoras. Ele lembra que os hipertextos são “inteiramente constituídos de rotinas: construções compostas de regras discretas e de relacionamentos, programados para operar de forma regular e confiável até mesmo na sua vastidão e acaso”. Mesmo as possibilidades de transgressão e escolhas, abertas pelo questionamento da hierarquia entre autor e leitor, somente se realizariam por estarem “confinadas a um espaço geométrico” que artificialmente suprime a categoria de temporalidade. A pretensa infinita possibilidade de escolhas estaria prevista e estabelecida de antemão num mesmo plano, sem profundidade, no qual todo tempo se reduziria a um eterno presente (BELLEI, op. cit., p. 62-3).

 

A pretensão da escrita eletrônica de liberar o leitor da fixidez e da estabilidade do texto impresso seria traída, na opinião de Bolter (1992, p. 60), pela prisão em redes de um tipo diverso nas quais o hipertexto prende o leitor que, por sua vez, é levado à ilusão de uma liberdade de todo e qualquer controle quando está, na verdade, confinado à “dependência do sistema operacional do computador e à dependência configurada pelo tipo de escrita produzida pela máquina”. Mesmo a interação aberta pelo hipertexto seria, nesse caso, subordinada ao conhecimento e à aceitação das regras de interação inscritas no software.

 

Os links, que assegurariam uma navegação hipertextual marcada pela liberdade e criatividade, nem sempre significam, como lembra Gur-Zeev (2002), “espontaneidade, preferência e conexão criativas livres de controles”.

O trabalho com o hipertexto no contexto educacional necessita de levar em conta que o link, por si só, não garante plena realização da escolha livre e consciente do percurso que se constituirá na tarefa de leitura e de processamento dos textos, pois “os links mudam a maneira pela qual o material vai ser lido e compreendido” e, também, “definem um conjunto fixo de relações dadas ao leitor” (BURBULES, 1998).

 

Türke (2006) adverte que a práxis do hipertexto é reduzir a liberdade de escolha ao previsto, pois mesmo abrindo-se um labirinto total com possibilidades quase infinitas de nele se movimentar, “os caminhos já são dados de antemão e nenhum deles conduz para fora”. Além disso, Türcke rejeita a tese de que o futuro deve pertencer ao escrever, ao ler e ao pensar “não-seqüencial” e “não-linear”. Para ele, “quem se aproveita da rivalidade do hipertexto como meio não linear na comparação com o livro não sabe o que significa ler”, pois “o tradicional ler nunca fora meramente linear, bem como o ‘novo’ ler não deixa de sê-lo”. A leitura não-linear do hipertexto seria, então, “a grande sensação para todos que não têm mais paciência para o romance mais longo. Uma vez incapazes de se aprofundar no texto, se aprofundam no computador”.

 

Jaron Lanier, pesquisador de tecnologia do Vale do Silício e considerado o criador da realidade virtual, afirma que “quando as idéias são embaladas como tecnologia, as pessoas estão mais suscetíveis a aceitarem-nas sem questionamento do que quando são propostas abertamente como ideologia” (BUARQUE, 2006, p. 10). Este “novo crítico” das tecnologias da informação e da comunicação diz que se ignorássemos a tecnologia e apenas apresentássemos a idéia de se “escrever um livro, uma enciclopédia, de que todo mundo pudesse participar, chegando-se, assim, a uma “obra perfeita” –, soaria completamente ridículo em qualquer lugar do mundo. Mas, como se trata de algo na internet, embalado como tecnologia, as pessoas acham genial” (id.).

 

Santos (2003, p. 22) procura qualificar a crítica à novidade envelhecida da não-linearidade do hipertexto afirmando que há uma diferença entre livro e texto, além da distinção entre a não-linearidade do livro eletrônico e a do texto literário. Se o livro impresso pode ser considerado linear, limitado e estável, a mesma coisa não poderia ser afirmada a respeito do texto, sobretudo o texto literário. A mudança do suporte impresso para o meio eletrônico aproximaria o livro do texto literário, da imprevisibilidade e da não-linearidade que sempre caracterizaram o texto. A intertextualidade do texto (literário) encontraria uma correspondência no livro eletrônico a partir da “pluralidade de percursos e na heterogeneidade de materiais (associação de matéria verbal, imagens, sons etc.)”.

 

Assim, muito do que se proclama como novidade no hipertexto eletrônico seria já realizado no texto literário. As novas tecnologias da informação e da comunicação aplicadas ao sistema hipertextual teriam dado velocidades inéditas ao tratamento do texto, possibilitado a confluência de várias mídias na construção e exploração textual.

     

4  RUPTURAS E CONTINUIDADES NA LITERATURA DO HIPERTEXTO

 

É interessante lembrar, a esta altura, a correspondência que Landow (1992) identificou entre os ambientes ou sistemas hipertextuais e as teorias literárias ou do texto, remetendo o hipertexto informático a um modelo de hipertextualidade anterior aos produtos da tecnologia eletrônica.

 

O ideal de textualidade de Barthes; a perda de hierarquia e a conseqüente morte do autor apresentada por Foucault; a linguagem como rede e disseminação, decorrente da impossibilidade da especificação de contextos que determinariam significados, desenvolvida por Derrida; o rizoma como

 

princípio de conexão e heterogeneidade”, com seu movimento errático e imprevisível, teorizado por Deleuze e Guattari; a colaboração entre autor e leitor reivindicada por teóricos da recepção, como Stanley Fish e Wolfgang Iser; tudo isso seria exemplo de convergência entre teoria e hipertexto (BELLEI, op. cit., p. 51-80).

 

A semelhança entre os campos discursivos do hipertexto e da teoria literária, particularmente de teorias pós-estruturalistas, não deixa de apresentar alguns elementos pertinentes.

 

O questionamento da autoridade do autor e a liberdade inscrita nas práticas de leitura do hipertexto, advinda principalmente da rebeldia contra a “tirania da linha”, são de fato aspectos identificados na relação entre texto literário e hipertexto. Mas convém ressaltar mais uma vez que, apesar de se configurar um novo tipo de autor e de leitor no hipertexto eletrônico, a abertura e a instabilidade do texto literário, com o leitor preenchendo os espaços vazios e construindo sentidos (FISH, 1980), já foram preconizadas por teóricos da estética da recepção. A colaboração entre autor e leitor no hipertexto não seria, então, marca absolutamente diferenciadora no hipertexto eletrônico, uma vez que o texto literário já conhecia o potencial das leituras plurais e da não-linearidade.

 

Algumas práticas de leitura do texto literário impresso também revelariam que a linearidade não é uma realidade absoluta e uma imposição inescapável no “texto gutemberguiano”.

 

As pequenas interrupções que levariam o leitor às suas próprias associações; o olhar novamente duas páginas que ficaram para trás e escaparam de uma observação mais detida; o olhar de soslaio para uma página à frente para confirmar as expectativas acerca da leitura; o deixar o livro de lado para ir a algum compartimento do recinto no qual se está lendo – tudo isso poderia ser considerado uma leitura do tipo não-linear. Por outro lado, “mesmo os menores textos, as palavras pequenas tais como ‘sim, não, ou’ formam uma determinada seqüência de letras que se deve ler exatamente nesta ordem, sendo que até mesmo os mais entusiastas do hipertexto também procedem desta maneira totalmente convencional e bem comportada”. Daí que a não-linearidade do hipertexto eletrônico seria, na verdade, uma leitura “não mais em grandes unidades lineares” (TÜRCKE, op. cit., p. 5).

 

Para Bellei (op. cit., p. 73), o leitor do hipertexto eletrônico, diante da possibilidade de uma página que também poderia ser lida como uma página de um livro impresso, tem seu diferencial ao optar por uma  leitura na qual “cada unidade de significado... tem a possibilidade de ser conectada a um número muito grande de outras unidades de sentido”. O leitor navegaria em um mar de sentidos dispersos, tendo como tarefa justapor blocos de sentido.

 

A intervenção do leitor também como um co-produtor ou autor no hipertexto eletrônico traria, na opinião de muitos, um incremento literário e um tipo de vanguarda libertária sem precedentes. Aliada aos recursos midiáticos entrelaçados com o texto, a produção literária no ciberespaço provocaria uma revolução estética da qual poderia participar qualquer usuário, em igualdade de condições e sem tutelas editoriais ou institucionais.

 

Essa abertura do texto literário na rede teria o poder de educar leitores/produtores para a criação de comunidades descentradas, livres e abertas ao diálogo, proporcionando uma experiência literária e estética desvinculada das imposições e cerceamentos institucionais, mercadológicos ou de qualquer outra natureza inibidora.

 

A ciberliteratura, com sua interatividade e inclusão levadas ao extremo, democratizaria o aprendizado da literatura e, mais do que isso, contribuiria para uma sensibilidade estética que a escola ou o saber literário formal não teriam logrado conquistar dentro das limitações do livro impresso e da cultura livresca autoritária.

 

Seria o caso de perguntar, entretanto, se o maior acesso aos textos literários na rede garante, por si só, tal revolução. Na verdade, o que se tem muitas vezes é apenas uma mudança quantitativa no acesso aos textos e nas práticas de leitura.

 

Não se pode ignorar, também, que muitos textos literários e variado material de estudo concernente à produção e à crítica literária disponíveis na rede carecem, ainda, de um tratamento mais criativo e que explore adequadamente os recursos tecnológicos colocados à disposição. Porém, mesmo a interatividade e os recursos midiáticos presentes no texto literário que se metamorfoseia na rede carecem de uma garantia de liberdade e criatividade que vá além dos seus atributos tecnológicos.

 

5  INFORMAÇÃO COMO SEMIFORMAÇÃO

     

O ciberespaço, como parte da infra-estrutura das novas tecnologias da informação e da comunicação, age como poderoso meio de difundir informação como se fosse conhecimento e transmitir conhecimento como se isso equivalesse à construção e problematização do próprio conhecimento.

 

Essa transformação do conhecimento em informação tem a cumplicidade da educação tecnológica que, contribuindo para uma semiformação e (de)formação do indivíduo por meio da aquisição de “informações parceladas, como produtos acabados, sem relação entre si e, portanto, sem inserção na totalidade da sociedade” acaba por reforçar e reproduzir a ideologia que converteria a “Sociedade de Conhecimento” em “Sociedade de Informação” (CROCHIK, 1998, p. 118).

 

Crochik (op. cit., p. 104), advertindo que “o saber convertido em informação é a negação do próprio saber”, associa o primado da informação à uniformidade dos conteúdos e do pensamento, numa alusão à perspectiva técnico-científica presente na educação que assemelha as práticas pedagógicas à esfera da produção e ao raciocínio instrumental.

 

Nesse contexto, a produção literária e as práticas de leitura correm o risco de participar de um processo que não explora ricamente as possibilidades de produção de sentido de um texto, resultando em uma decodificação objetivante que carece de reflexão e de engajamento na construção do conhecimento.

 

Pode-se objetar que a necessidade da informação e seu tratamento informático e digital nesses tempos de Internet são, além de inevitáveis, importantes no processo de construção do conhecimento. Nesse sentido, a massificação de textos e conhecimentos já produzidos forjaria uma nova produção de conhecimento. No entanto, prevalecem a circulação e a apropriação não-críticas de informações e de conhecimentos; uma semiformação que passa a ser a forma dominante da consciência atual, apesar “de toda informação que se difunde (e até mesmo com sua ajuda)” (ADORNO, 1996, p.389).

 

Não se trata, aqui, de assumir de modo simplista uma negação das informações e da circulação de conhecimentos no ciberespaço, mas, antes, de resistir a políticas educacionais e a certas ideologias que tratam a informação e o conhecimento como mercadorias e destituídos de uma leitura e reflexão que conduziriam à crítica e à construção do conhecimento.

 

Adorno (ibid., p. 402), ao aludir às edições populares de obras filosóficas (em um contexto histórico bem anterior aos textos virtuais), observa que “seria insensato querer segregar tais textos em edições científicas, em edições reduzidas e custosas, quando o estado da técnica e o interesse econômico convergem para a produção massiva”. Mas, o mesmo Adorno não deixa de advertir que “isso não significa, porém, que se deva ficar cego, por medo do inevitável, diante de suas implicações, nem, sobretudo, diante do fato de que entra em contradição com as pretensões imanentes de democratizar a formação cultural”.

 

O teórico da Escola de Frankfurt responde ao fenômeno da cultura de massa e da vulgarização do saber científico com uma concepção dialética, asseverando que ela “não se engana sobre a ambigüidade do progresso em plena totalidade repressiva”. A aparente liberdade em relação às possibilidades do conhecimento e do acesso à informação no ciberespaço poderia ser entendida hoje, em função dessas observações, como mais um dos “progressos em relação à consciência da liberdade (que) cooperam para que persista a falta de liberdade”, ou ainda, como “uma ideologia comercial pseudo-democrática” (ADORNO, op. cit., p. 402).

 

O tão propalado incremento da escrita e da leitura no ciberespaço, comprovado nos chats, e-mails, sítios de relacionamento e navegações no hipertexto na Internet, seria um “inflacionamento” de informações e transmissão de conhecimentos acabados. Uma leitura e escrita sem a marca da experiência autêntica e da reflexão; “um estado informativo pontual, desconectado, intercambiável e efêmero, e que se sabe que ficará borrado no próximo instante por outras informações”. Essas práticas medianas de leitura e escrita configurariam o “semi-entendido e semi-experimentado” que, entendido e experimentado medianamente, em vez de constituir o “grau elementar da formação” seria, antes, seu próprio inimigo (id.).

 

Por isso, as práticas de escrita e de leitura virtuais devem ser orientadas criticamente e subsidiadas literária e esteticamente nas experiências educacionais formais, a fim de que se estabeleçam processos de criação, de experimentação, de fruição, de reflexão e de crítica com os textos que povoam o ciberespaço.

Ao reconhecer-se o primado da informação no ciberespaço e a falsa relação que se estabelece entre informação e conhecimento, torna-se ainda mais pertinente uma verdadeira experiência com a literatura no contexto educacional.

 

Nesse sentido, vale recuperar a distinção que Benjamin (1994, p. 103-149) faz entre informação (da imprensa), excluída do âmbito da experiência e limitada à mera transmissão de um acontecimento, e a narração, considerada uma forma de comunicação que integra o acontecimento “à vida do narrador, para passá-lo aos ouvintes como experiência”.

 

A simples informação não afetaria, assim, a experiência do leitor, ao passo que na narração “ficam impressas as marcas do narrador” que, por sua vez, passarão ao leitor. Dessa forma, a relevância que Benjamin identificava na literatura, diante de uma imprensa que não incorporava a informação à própria experiência do leitor, mostra-se ainda mais aguda no cenário de massificação e de banalização da informação no ciberespaço.

 

Por meio das leituras no contexto educacional se contribuiria para um esforço crítico que denunciaria o empobrecimento cultural presente na massificação da informação e em alguns usos dos novos meios comunicacionais, além de se oferecer subsídios e instrumentos teóricos que garantam uma formação emancipadora do sujeito.

 

E mesmo em face das diversas falências culturais e da semiformação, a literatura revelaria, ainda assim, sua singularidade ao preservar exemplos de formação. A literatura, no cenário da semicultura, deve se apresentar como um “conhecimento produzido historicamente”, uma prática cultural privilegiada do “exercício de liberdade, de inquietação e de perplexidade”; situando-se “no campo daquelas preocupações humanas que é procurar ‘fabricar’ sentidos num mundo, a priori, sem nenhum sentido” (GONÇALVES FILHO, 2000, p. 13).

 

Nesse universo tecnológico de informações que se multiplicam quase ao infinito e num mundo em que parecem desnecessárias a memória e a experiência, haja vista a capacidade surpreendente de armazenamento de dados e informações nas memórias digitais, a literatura pode ser encarada, também, como um convite à reflexão e à vivência por meio de um resgate da memória das experiências revividas e recriadas na ficção literária.

 

A leitura do texto literário é de alguma forma um diálogo com outros textos e tradições cultural e literária. Esse diálogo possibilitado pelo texto, pois todo texto remete-nos a outros textos (mesmo antes do hipertexto ou do texto em rede), suscita o exercício da memória e da experiência que lançam novos sentidos e questionamentos sobre o texto lido. Num movimento de abertura, o texto literário convida-nos a escutar nele vozes distintas e diversas, outras histórias e relatos, a participar de uma memória infinita, tão cara aos contos populares ou tradicionais. Gagnebin (1987) lembra-nos que nesse contexto das narrativas tradicionais “cada história é o ensejo de uma nova história... com cada texto chamando e suscitando outros textos”. E isso possibilita um diálogo criativo com o passado, um encontro com o passado no presente por meio da narrativa.

 

Esse movimento que reage à perda da memória, à supressão dos momentos de diferenciação – o encontro crítico e criativo com a literatura – contrapõe-se à leitura indiferenciada, automática, cumulativa e não crítica tão comum no ciberespaço.

 

O leitor no ciberespaço não deve ser simplesmente um usuário de máquinas e programas, e sua leitura não pode prescindir da subjetividade e da crítica. Se assim não for, o diferencial desta leitura se reduzirá aos aspectos técnicos e formais do novo suporte.

 

O encontro com a literatura, seja no suporte impresso ou digital, pode se constituir em experiência e prática de leitura e interpretação que, recuperando os valores, os sentidos e as tradições do texto literário, contribuam para uma formação que faça frente à semiformação.

 

Assim, diante do crescente volume de leituras desprovidas de reflexão e vivência que um usuário hoje em dia experimenta na Internet, deve ficar entendido que as possibilidades abertas pela leitura do texto literário tanto no espaço da escola como no espaço virtual podem ser uma das formas de se assumir o desafio de uma leitura que contribua para a formação no contexto do ciberespaço, ao mesmo tempo em que enfrenta a semiformação na chamada cibercultura.

 

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