<REVISTA TEXTO DIGITAL>
ISSN 1807-9288
- ano 2 n.3 2006 –
http://www.textodigital.ufsc.br/
KIRCHOF, E. R.; BEM, I. V. de. O impacto da
tecnologia sobre a literatura contemporânea. Texto Digital, Florianópolis, ano 2, n. 2, Dezembro 2006.
O IMPACTO DA TECNOLOGIA SOBRE A LITERATURA CONTEMPORÂNEA
THE IMPACT OF TECHNOLOGY ON
CONTEMPORARY LITERATURE
Edgar Roberto Kirchof / ULBRA
Doutor em Lingüística e Letras - PUC-RS
ekirchof@hotmail.com
Isabella Vieira de Bem /ULBRA
Doutora em Letras – UFRGS
RESUMO: Este trabalho apresenta a análise dos romances contemporâneos A misteriosa chama da rainha Loana, de Umberto Eco, e As aventuras de Lucky Pierre, de Robert Coover, apontando aspectos que os caracterizam como literatura que incorpora o paradigma epistemológico da cultura digital, não obstante tais obras possuírem o livro impresso como suporte de expressão.
PALAVRAS-CHAVE: semiótica da cultura – hipertextualidade - multimidialidade - estética digital – romance contemporâneo
ABSTRACT: This paper presents the analysis of two
contemporary novels, The mysterious flame of Queen Loana,
by Umberto Eco, and The adventures of Lucky
KEYWORDS: Keywords: culture semiotics - hypertextuality – multimediality
- digital aesthetics - contemporary novel
O presente artigo não pretende investigar a literatura propriamente digital e sim, o impacto que a estética digital tem gerado sobre a literatura impressa, na contemporaneidade, a partir de dois autores: o italiano Umberto Eco o norte-americano Robert Coover. Para tanto, utiliza, como principal referencial teórico, a semiótica evolutiva da cultura, de Walter A. Koch, além de outros autores contemporâneos interessados no estudo do impacto da tecnologia sobre a cultura e, em especial, da tecnologia eletrônica sobre a literatura.
1. O meio de expressão e a cultura
A tecnologia tem influenciado a economia da linguagem desde os primórdios da história da humanidade. Pode-se dizer que a primeira grande revolução tecnológica a causar impacto direto sobre a linguagem foi a habilidade para realizar pinturas em cavernas, o que permitiu, ao ser humano, fixar registros de informações (LAWSON, 1991, p. 29). Segundo Haarmann (1990, p 26), as representações semióticas mais antigas da época do paleolítico correspondem a ideogramas, que, posteriormente, são mesclados com pictogramas. A principal vantagem gerada por essa tecnologia foi a possibilidade de armazenamento da informação, proporcionando estratégias de ação mais acuradas.
No entanto, devido ao seu caráter analógico e icônico, uma imagem não permite armazenar grande quantidade de informação. Assim sendo, é apenas com o surgimento da escrita – ou de alguns sistemas pictográficos que lhe antecederam – que tal capacidade expande-se a um nível surpreendente. Esse acontecimento histórico levou ao surgimento de uma “cultura da escrita”, em oposição à “cultura da oralidade”. Como atestam alguns pesquisadores (p. ex. HEIM, 1987, p. 110 ), a cultura literária, decorrente da escrita, implementou “um estilo de pensamento mais complexo, seqüencial e hierárquico”, se comparado com “o pensamento altamente padronizado e repetitivo da pré-literatura e das culturas orais” (HEIM, 1987, p. 113).
Maingueneau (2006, p. 217) apontou para o fato de que a literatura é capaz de refletir, em seu modo de composição, tanto o caráter mais espontâneo e repetitivo da oralidade quanto o caráter mais reflexivo da escrita. Uma epopéia tradicional, por exemplo, contém um forte traço da cultura oral, razão pela qual sua composição se organiza em torno de uma sucessão um tanto frouxa de episódios marcantes. Já um romance do século XIX explora não apenas a possibilidade de estruturação mais complexa do enredo, como também vários elementos típicos da escrita, como a pontuação e outros efeitos gráficos. Além disso, é possível que uma obra altamente marcada pelos efeitos da escrita também explore efeitos da oralidade, por exemplo, através das falas de algumas personagens.
Como se percebe, portanto, a oposição simplista entre “cultura oral” e “cultura escrita”, segundo a qual a segunda suplantaria a primeira, não é razoável, o que levou Maingueneau (2006, p. 217) a postular quatro tipos de sociedades: aquelas de literatura puramente oral; aquelas em que a oralidade coexiste com a escrita; aquelas em que a oralidade desempenha uma papel importante, apesar do predomínio da escrita; aquelas em que o oral passa a ser apreendido por uma forma de escrita.
A cultura contemporânea enquadra-se na última tipologia de Maingueneau, o que se deve ao desenvolvimento de recursos tecnológicos que permitem diferir a oralidade, tais como discos, cassetes, cinema. Dentre tais recursos, destaca-se, sem dúvida, a tecnologia digital. Como aponta Gaggi (1997, p. 113), a escrita digital parece estar mudando a “cultura do livro”, implantada a partir do surgimento da imprensa, desde o século XVI, na medida em que recupera a imediaticidade e a aparente não-identidade, características da cultura oral: “O sentido de uma permanência contemplativa” – típico da cultura do livro – “é suplantado por uma superabundância dinâmica e volátil de possibilidades” (GAGGI, 1997, p. 114).
Instigados principalmente pelas transformações promovidas pelo computador sobre a cultura contemporânea, nas últimas décadas, vários pensadores ligados à lingüística, à semiótica e a áreas afins têm aprofundado o estudo sobre a relação entre os meios eletrônicos de expressão e a linguagem (HEIM, 1987; ONG, 1982; DEBRAY, 1994; MAINGUENEAU, 2006, entre vários outros). Nesse contexto, tem sido enfatizado que, mais do que um mero sistema de comunicação, o suporte material da linguagem é capaz de promover inovações quanto à maneira como a linguagem se organiza, gerando conseqüências também sobre a cultura, em sentido amplo. Como não poderia deixar de ser, a literatura, enquanto meio privilegiado de expressão da linguagem e da cultura, tem servido como um objeto-modelo para o estudo de tais relações.
2. Tecnologia e literatura
Segundo o semioticista alemão Walter A. Koch (1993a; 1993b), a manifestação da literatura moderna está marcada profundamente pelo surgimento dos novos meios de comunicação, como o rádio, a televisão, o telefone, a telegrafia, a fotografia, entre outros. Visto que estes possuem uma capacidade muito elevada de mapeamento da realidade externa à mente, como reação, Koch acredita que a literatura, a partir de então, tem se voltado para a única possibilidade vedada (ou possível em uma escala muito inferior) aos meios de comunicação de massa, a saber, reproduzir as próprias estruturas ao invés de representar a realidade.
As reflexões de Koch acerca da influência dos meios tecnológicos sobre a literatura podem ser ampliadas na medida em que se leve em conta a revolução iniciada na década de oitenta do século XX, com a popularização e a constante evolução do computador, o que tem obrigado a literatura a reagir não apenas ao meio cinematográfico e televisivo, mas também ao meio digital. Desde o surgimento dos novos meios de comunicação, pode-se dizer que a literatura tem seguido duas tendências distintas: de um lado, como acredita Koch (1993b, p. 134), volta-se para a reprodução das próprias estruturas, abdicando ou mesmo colocando em segundo plano a função referencial.
De outro lado, contudo, a literatura também absorve algumas técnicas específicas dos novos meios. Já no realismo, por exemplo, as obras procuram “imitar” a pintura, através de descrições pormenorizadas (Balzac, Flaubert, etc). Alguns autores, como Robe-Grillet; Margarite Duras, entre outros, procuraram imitar os efeitos da câmera, no cinema, fazendo desaparecer o narrador. A vanguarda européia procurou dissolver a fronteira entre a literatura e a pintura (Arno Holz, Mallarmé, Apollinaire, Kandinsky, Klee, Mondrian, Marinetti, cummings, Williams, entre outros), através de duas principais estratégias: a eliminação do verso tradicional – criação do verso livre; o acento sobre a capacidade icônica ou visual da forma poética – Mallarmé; Appolinaire, entre outros. O romance moderno abandonou a função mimética de mapear o mundo – pois os novos meios possuem uma capacidade muito mais acurada para realizar tal função –, abdicando do esquema quinário fácil e partindo para o aprofundamento de momentos, instantes. Dessa forma, é possível afirmar que escritoras como Virginia Woolf e Clarice Lispector, entre outros, aproximam a narrativa literária de técnicas típicas da fotografia e da pintura.
Em alguns casos, é possível afirmar que a aproximação entre os meios de expressão levou a um verdadeiro sincretismo. O cinema pode ser visto como uma espécie de fusão entre o romance, a fotografia, a música, acrescido de movimento. Nesse contexto, o surgimento da poesia concreta (Gomringer; Döhl; Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos), na década de 50, representa uma das tentativas mais ousadas de aproximação entre o sistema verbal e outros sistemas semióticos. Ao expandir o sistema lingüístico, aproximando a arte verbal de outros sistemas tecnológicos, os concretistas foram capazes de criar significados surpreendentes a partir de aspectos visuais e sonoros, até então, pouco explorados no contexto das línguas naturais. Tal abordagem acaba apagando as fronteiras não apenas entre os gêneros interliterários stricto sensu – o que a literatura já havia vivenciando desde o romantismo. Como notam Bense e Döhl (1972, p. 167), a abordagem perseguida pelo concretismo atenua as fronteiras também entre a linguagem verbal e outras formas semióticas, o que permite uma aproximação muito intensa entre a literatura e artes como a pintura, a arquitetura, a música, entre outras.
Desde o surgimento da tecnologia digital, a poesia concreta tem servido como verdadeiro suporte para os novos meios, permitindo os mais ousados experimentos, que se estendem da mera animação computadorizada até hibridismos com a música eletrônica e com clips televisivos. Chama atenção o fato de que esse tipo de arte possui um altíssimo potencial de impacto sobre as massas (CAMPOS, 2006).
Tamanhas inovações quanto ao significante literário levaram alguns críticos a questionar se ainda se trata de literatura. Entre os que se opõem à acolhida calorosa da literatura eletrônica, destaca-se Sven Birkerts (1991). Ao admitir que a transição da cultura do livro para a cultura da comunicação eletrônica alterou radicalmente o modo como usamos a linguagem em todos os níveis e aspectos, Birkerts lança uma perspectiva negativa com relação ao futuro da leitura e da literatura.
Por outro lado, nos últimos anos, uma série de críticos têm se empenhado em pesquisar as inovações criadas por esse novo meio a partir de inúmeros conceitos, tais como ficção interativa, cybertexto, hipertexto, hipermídia, multimídia, intermídia, literatura de rede, literatura ergótica, estética ciborgue etc. SIMANOWSKI, 2002b, p. 56; AARSETH, 1997, p. 51, entre outros). No contexto das teorias narrativas pós-modernas, o advento da hiperficção eletrônica tem demonstrado que os textos eletrônicos consistem num meio mais interativo do que os textos impressos em papel, conduzindo invariavelmente a uma maior centralidade sobre o papel do leitor.
Entre os entusiastas das potencialidades do hipertexto, ao lado de Robert Coover, destaca-se J. David Bolter, para quem o hipertexto “reifica a metáfora da resposta do leitor” (1991, p.158). Dessa forma, Bolter pretende enfatizar que o hipertexto libera o texto impresso das hierarquias às quais “as idéias verbais que estão sempre prontas a subverterem [aquela] ordem” (idem) encontram-se submetidas.
3. Hipertextualidade e multimidialidade no livro impresso: A misteriosa chama da rainha Loana, de Umberto Eco
Se Walter A. Koch, ainda na década de 80, salienta o impacto da televisão sobre a literatura contemporânea, desde então, após os desenvolvimentos mais recentes da tecnologia digital e eletrônica, não é mais possível desconsiderar a influência do computador sobre a produção literária. Embora incipiente, tal impacto se faz notar, de um lado, através do surgimento da literatura propriamente digital, produzida para ser lida unicamente no meio eletrônico. De outro lado, contudo, também é possível notar a influência da estética hipertextual sobre o livro impresso, especialmente na obra de autores interessados em questões de linguagem.
Uma das principais características do hipertexto é a ruptura quanto à forma linear da leitura, devido ao seu caráter eminentemente não-seqüencial. Nesse sentido, como afirma o próprio Eco, mesmo antes da tecnologia digital, nós já temos lido livros de forma hipertextual: “Nós lemos uma página e pulamos, principalmente quando a estamos relendo. Pense na Bíblia. Quando as pessoas a lêem, elas sempre estão pulando aqui e ali, constantemente ligando várias citações” (NG, 2006).
No contexto dos estudos literários, um dos conceitos mais utilizados para dar conta desse fenômeno tem sido a intertextualidade que, na concepção de Kristeva (1969), permite apresentar o texto como uma produtividade, na qual as operações do genotexto se expõem em forma de fenotexto, incitando o receptor a reconstruir a significância do que está manifesto (fenotexto) a partir daquilo que permanece latente (genotexto). Assim, o processo de produção e interpretação se apresenta infindável, como uma espiral que se desdobra ao infinito.
Se a intertextualidade é uma característica intrínseca à própria textualidade, por outro lado, deve-se ressaltar que o romance moderno e pós-moderno tratou de utilizá-la como elemento formal distintivo de sua estética. Os romances de Umberto Eco, nesse sentido, são exemplares, pois constituem verdadeiras redes dotadas de uma gama impressionante de referências a obras provindas dos contextos mais variados. Embora essa estratégia também esteja presente em O nome da rosa, O pêndulo de Foucault, A ilha do dia anterior e Baudolino, a seguir, será abordada, ainda que em breves traços, a partir do romance A misteriosa chama da rainha Loana. Como notou Caesar (1999), a leitura bem sucedida de um romance de Umberto Eco pressuporia um leitor dotado de um conhecimento enciclopédico tão vasto como o do próprio autor. As referências intertextuais, na obra de Eco, são tantas que foi criada, por um de seus tradutores, Erik Ketzan, uma página na internet (MFoQL Project/ http://queenloana.wikispaces.com/), com tecnologia Wiki, na qual os internautas são convidados a explicar as inúmeras passagens que se reportam, implícita ou explicitamente, a obras das mais variadas procedências.
No primeiro capítulo de A misteriosa chama da rainha Loana, o leitor descobre que Yambo, o protagonista, perdera a maior parte de sua memória biográfica. Na verdade, praticamente toda a trama se desenvolve como a busca de Yambo por sua própria identidade, realizada a partir da imersão em um acervo composto pelos mais variados produtos culturais que marcaram a sua infância: revistas em quadrinhos, desenhos infantis, caixas de efervescentes, latas de chocolate, selos, romances etc. Seu retiro ocorre durante o longo período de tempo em que permanece na casa do avô, onde Yambo passara grande parte da infância, nas montanhas do Piemont.
No primeiro capítulo, Eco caracteriza a falta de memória do protagonista, ou essa incapacidade de ordenar logicamente as impressões relativas à própria identidade, através da metáfora da neblina. Assim, existe uma gama de referências a textos que se reportam, direta ou indiretamente, a essa imagem. A primeira delas corresponde ao romance belga do século XIX, Bruges-la-morte, um texto escrito por Georges Rodenbach, que retrata a cidade flamenga de Bruges como um lugar silencioso e misterioso. A seguir, Eco compila partes de poemas escritos por Rodenbach, como se fossem um texto original: “Onde a névoa flutua entre as torres como o incenso que sonha? Uma cidade cinzenta, triste como uma tumba florida de crisântemos onde a bruma pende desbeiçada das fachadas como um arrás (...).”
Nesse mesmo parágrafo, quando o narrador afirma
“Eu me chamo Arthur Gordon Pym”,
existe uma referência direta ao romance escrito por Edgar Alan Poe. No entanto,
ao contrário do que se poderia esperar, Eco não continua o próximo parágrafo
com referências provindas de Gordon Pym, mas sim, com versos escritos por Gabriele D´Annunzio,
Mastigava a névoa. Os fantasmas passavam, tocavam-me, desvaneciam-se. As luzinhas longe luziam como fogos-fátuos num campo-santo... Alguém caminhava a meu lado sem rumor, como se tivesse os pés descalços, caminhava sem saltos, sem sapatos, sem sandálias, uma faixa de névoa me desliza sobre a face, uma frota de bêbados grita lá embaixo, no fundo da balsa.
Já o próximo parágrafo inicia com os versos do poema de Carl Sandburg, The fog comes on little cat feet, “A névoa chega sobre pequenas patas de gato...”, também como se fosse um texto original. Permanecendo apenas nas primeiras páginas desse mesmo capítulo, existem referências a Georges Simenon (através da inclusão de seu personagem Maigret), a Sir Arthur Conan Doyle (pela referência a Watson e aos Cães de Baskerville), a Agatha Christie (Os dez negrinhos), novamente a Arthur Gordon Pym, às máquinas celibatárias de Marcel Duchamp, à Colônia penal, de Franz Kafka, à Máscara de ferro, de Dumas, ao poema Seltsam, im Nebel zu wandern, de Herman Hesse, à obra de Giovanni Pascoli, de Garcia Lorca, de Hans Christian Andersen e inúmeros outros.
O uso intenso da intertextualidade, contudo,
não é a principal característica que aproxima A misteriosa chama da rainha Loana da estética hipertextual
e sim, a utilização de inúmeras ilustrações, que criam um efeito multimidial, típico do meio digital. Na medida
O traço estético mais ousado da obra é a
inter-relação explícita entre a linguagem verbal e a linguagem icônica,
fenômeno pouco comum ao gênero do romance. Segundo o próprio Eco, essas imagens
não pretendem servir como meras ilustrações, mas como um etc...,
ou seja, como informações complementares ao texto escrito, registradas em um
código semiótico não verbal. É o que se percebe, principalmente, na parte final
do romance, quando o protagonista, ao lembrar de suas façanhas infantis, passa
a misturar sonho e realidade. A imagem de um sonho (pesadelo?) com o Duce, ou as imagens
Para concluir, deve-se notar que a literatura de Umberto Eco, através da intertextualidade intensa, aproxima-se da hipertextualidade: na medida em que os inúmeros intertextos que formam a supercomposição da obra remetem o leitor, constantemente, a textos provindos de inúmeros espaços externos ao próprio romance, realizam algo semelhante ao que o hipertexto realiza quando remete o leitor para inúmeros textos distintos daquele em que se encontra originalmente. No caso de A misteriosa chama da rainha Loana, a hipertextualidade remete o leitor, inclusive, a textos alheios à própria linguagem verbal.
4. O romance hiperficcional de Robert Coover: As aventuras de Lucky Pierre. Versão do diretor
Característica central da ficção de Robert Coover é a inscrição poética do impacto da tecnologia (digital, cibernética e biomédica, por exemplo) do século XXI sobre o significado de nossas representações da condição humana. As obras de Coover são tão reveladoras das dimensões políticas e éticas da nossa era como o são os artefatos materiais tecnológicos da aventura humana, fato evidenciado na criação de mitos, na inventividade lingüística e genialidade verbal, codificados num projeto estético realista, que, desde o início dos anos oitenta, vem se configurando numa avançada pesquisa sobre a escrita hipertextual.
Com relação a essas inovações, Coover (1993) afirma que está em busca de uma linguagem “relevante”, que se sustente na familiaridade da audiência com as ficções e com os mitos evocados, modificados e colocados em novos contextos. Ao criar enredos que ressaltam sua própria condição de artifício, Coover reúne narrativa fílmica, literária e, mais recentemente, de jogos multimídia, produzindo “novos modos de percepção e novas formas ficcionais” (idem). Seus personagens podem se mover de um mito ou estória – ou nível de realidade ou medium – para outro, criando um gesto análogo à nossa cena contemporânea de humanos tecnologicamente expandidos, pós-humanos (HAYLES, 1999). O gesto também funciona como textualização da experiência de escrita hipertextual on-line nos ambientes MOO (Multi-Oriented Object) e MUD (Multi-User Device), que Coover liderou na Brown University, no início dos anos 90, e de imersão em ambientes virtuais, como a que vem conduzindo no projeto Cave Writing (http://www.cascv.brown.edu/cavewriting/workshop.html).
Contudo, se até o presente momento, Coover não editou qualquer obra em meio exclusivamente eletrônico, tendo publicado romances e coletâneas de contos num ritmo constante neste século, suas obras impressas exibem as feições típicas do hipertexto. Seu último romance, As aventuras de Lucky Pierre. Versão do diretor, exemplifica como a narrativa, de forma geral, e o romance, de forma específica, são capazes de apresentar as características da era da comunicação eletrônica, do hipertexto e das novas subjetividades forjadas sob o seu impacto.
Esse romance apresenta, tal qual o romance de Eco, uma série de inscrições intertextuais. Neste caso, de diversos poemas épicos (Gilgamesh, Odisséia), bem como de narrativas consideradas proto-romances (O asno de ouro, Celestina), além de romances e dramas renomados e conhecidos do leitor experiente e erudito, tais como Don Juan e Lolita, por exemplo. Assim, Coover reconstrói a história do romance como gênero.
O livro é composto como uma seqüência de nove rolos, sendo que cada um deles equivale a uma seção ou capítulo. Curiosamente, nove rolos compõem a maior extensão possível da edição final de filmes que remetem à era anterior à do cinema digitalizado. Trata-se de uma estratégia de Coover para sinalizar os limites de uma era específica, a da ficção escrita exclusivamente para o livro impresso enquanto suporte.
O nome do personagem atribui-se às possíveis
associações dentro da literatura ocidental, bem como à cultura pop
ligada à pornografia: Pierre é o mulherengo incorrigível
Cada um dos nove rolos corresponde a um gênero fílmico diferente, cuja diretora desempenha, simultaneamente, o papel de parceira sexual e de musa de Lucky Pierre: as nove musas presidindo as artes. Apesar de parodiarem a convenção formal da invocação à musa, as personagens femininas não correspondem única ou exatamente às nove musas gregas. Coover compõe seu próprio catálogo, alternando uma santa, beata ou mártir do cristianismo e, ocasionalmente, uma personagem da cultura pop americana, com uma musa, personagem mítica ou arquétipo. Desse modo, o autor desloca a pureza idealizada, normalmente associada a tais ícones, expondo-os como meras ficções tidas por realidades.
Tal recurso permite-lhe listar nove nomes iniciados pela letra C, criando, simultaneamente, uma estratégia estrutural e um princípio de ordenação: Cecilia/Euterpe, Cleo/Clio, Clara/Urânia, Cassandra/Polyhmnia, Constance/Erato, Carlotta/Melpomene, Cora/Terpsichore, Catherine/Thalia e Calliope. Uma vez concluído o rolo, volta-se ao C. Ao completar o ciclo, de C a C, Coover alude a uma oitava musical. Além disso, através da dimensão fonética da letra C, bem com de sua dimensão grafemática, o leitor é interpelado a “ver” (em inglês, see, homófona de C) o filme na tela, mas, também e sobretudo, a linha na página. Em poucos termos, trata-se de um recurso multimidial.
A linearidade é afirmada de acordo com a notação musical. C (Dó) corresponde à primeira nota da escala e à letra que abre o texto do primeiro rolo/capítulo, Cantus. Os rolos seguintes mimetizam a seqüência: Documentary(D/Re), Exit (E/Mi), Focus (F/Fá), Green fields (G/Sol), Adventure (A/Lá), Bum (B/Si), Cold Cock ( dó a dó, uma oitava), Final Festival (fá a fá, o virtuose do espectro da voz humana) Os nove rolos de filme também correspondem aos nove elementos da pauta de escritura musical, cinco linhas horizontais paralelas e quatro espaços intersticiais. Nisso, consiste a sugestão de que a narrativa não se desenvolve tampouco reside unicamente na linha, mas também nos espaços entre elas - um desafio à linearidade, mais um traço típico da hipertextualidade.
A linearidade do modelo arbóreo hierárquico inscrito via notação musical, portanto, é atravessada, numa feição hipertextual, por linhas de fuga, seja pelas conexões (hiperlinques) da palavra de abertura com a letra correspondente a uma nota musical, seja pelo gênero do filme dirigido por uma determinada musa, seja através da manipulação da linguagem.
A linguagem verbal é explorada como se faz com uma outra matéria prima qualquer nas mãos de um artista plástico, até os limites de sua extensão, de modo a incorporar as convenções da arte presidida pela musa/diretora de cada gênero de filme. Nesse trabalho, Coover investe a linguagem com categorias estéticas oriundas de outras artes e meios. Tais conexões, diversas e simultâneas, conferem, à narrativa, um nível de complexidade característico dos hipertextos, eminentemente eletrônicos e multimidiais.
O primeiro rolo é dirigido por Cecília, aliás, Euterpe, a musa que preside a Música. Cecília é também a Santa Padroeira da Música no catolicismo. Há, ainda, uma preocupação com a ordenação na escolha de um filme mudo para o primeiro rolo, e um revival para o último, uma tática cooveriana de reconhecer a historicidade e a historiografia do próprio meio, ou seja, do cinema.
A abertura do romance com a palavra Cantus, inscrita entre parênteses, remete à convenção das direções de palco, textualizadas numa peça teatral, o que permite realizar uma analogia com a invocação da musa, no poema épico. Dessa maneira, romance, poesia e drama encontram-se conjurados num só gesto, aliados ao registro da monofonia do canto gregoriano. A música – a arte –, sob o comando de Cecilia, ou Euterpe, compõe, ao mesmo tempo, a substância e a forma tanto do conteúdo quanto da expressão do rolo (em inglês, reel, homófona de real, real), conforme o modelo complexo da estratificação da linguagem, segundo Hjelmslev. Como Lucky Pierre inscreve-se em diferentes scripts e filmagens, gêneros e quadrinhos, sua experiência é de descontinuidade ao longo de todo o romance, até enfrentar a descontinuidade final, a sua enquanto herói. Lucky Pierre, embora um herói pós-humano, deve dar fim à própria jornada.
Visto que cada rolo, no romance, é estruturado como um plano distinto de consistência entre arte, linguagem, musa e gênero cinematográfico, As aventuras de Lucky Pierre reafirma a sobrevivência da narrativa e do romance numa cultura que migra paulatinamente para ambientes de suporte tecnológico. A obra é capaz de realizar tal intento porque incorpora novos modos de interação, dessa forma, construindo novas subjetividades, novas formas de ler, escrever, enfim, novas formas de comunicar a experiência humana.
5. À guisa de conclusão
Desde o surgimento do concretismo, na década de 60 – mas também já desde as propostas das vanguardas européias, no final do século passado, existe uma tendência inexorável no sentido de integrar a literatura aos demais meios tecnológicos, o que, de um lado, tornou sua forma ainda mais complexa e, de outro, permitiu, à literatura, explorar aspectos semióticos típicos da iconicidade e da indexicalidade, menos comuns à arte verbal.
Nas últimas décadas, o desenvolvimento do computador como principal meio tecnológico tem levado artistas e escritores a explorar as possibilidades estéticas do hipertexto. Como nota Simanowski(2002a, p 14), em comparação com a literatura em sua versão impressa, em livros de papel, a literatura que possui, como significante, o suporte eletrônico, assemelha-se mais a uma performance passível de ser realizada sempre de novo do que a um texto acabado. Segundo o autor, isso se deve ao fato de que todas as artes digitais são hipertextuais, interativas e multimediais, geralmente, combinando som, imagem e filme. As principais características do hipertexto podem ser resumidas, de forma didática, a partir dos seguintes conceitos (SIMANOWSKI, 2002b; WANDELLI, 2003; BELLEI, 2002, entre outros): descentramento ou multicentramento, multilinearidade, inter-conectividade, multimedialidade, performatividade. Tais traços podem ser facilmente percebidos, por exemplo, em narrativas concebidas para serem lidas unicamente no meio eletrônico, como Afternoon, a story, de Michael Joyce (1999), em que o leitor é convocado a optar por diferentes possibilidades quanto às seqüências narrativas, dessa forma, participando da construção final do texto.
Por outro lado, contudo, também se tem considerado a hipertextualidade como um recurso não apenas pertencente ao meio propriamente eletrônico, mas também passível de ser executado em meio impresso. Como se afirmou anteriormente, Umberto Eco apontou para o fato de que mesmo o uso que grande parte das pessoas faz da bíblia é uma experiência hipertextual, na medida em que raramente um leitor desse livro segue um roteiro linear. As páginas em branco de Tristan Shandy podem ser consideradas precursoras da estética hipertextual, na medida em que operam um processo semiótico predominantemente icônico e, conseqüentemente, multimidial. Mesmo Machado de Assis, ainda no século XIX, realizou alguns experimentos tipográficos, principalmente no livro Memórias Póstumas de Brás Cubas. Em nosso século, alguns romances escritos a partir da década de 60, influenciados pela estética pós-moderna, passaram a apresentar características que vários críticos contemporâneos têm considerado hipertextuais avant la lettre (PALACIOS, 2006). Destacam-se, nesse contexto, O jogo de amarelinha, de Júlio Cortazar (1966), Se numa noite de inverno um viajante, de Italo Calvino (1981), O dicionário Kazar, de Milorad Pavitch (1988), entre vários outros.
No entanto, é apenas a partir do final da década de 1980 e início de 1990 que alguns romancistas passam a empregar, de forma consciente, recursos hipertextuais no livro impresso. Devem ser destacados, nesse contexto, entre outros, Robert Coover, Douglas Coupland e Umberto Eco. Em sua mais recente obra, A child again (2005), Coover explora a multilinearidade e a interconectividade, apresentando a narrativa na forma de um jogo de cartas. No conto Heart Suit, cabe, ao leitor, decidir a seqüência das cartas a serem lidas, sendo que apenas a primeira e a última possuem um lugar estabelecido. Coupland, por sua vez, além de integrar elementos icônicos em sua narrativa, criando uma leitura explicitamente multimidial, também utiliza, em Microserfs (1995) e JPOD (2006), o próprio código binário computacional como representação da relação entre pensamento e linguagem dos personagens.
Para concluir, ressalte-se que os estudos sobre o hipertexto encontram-se em estágio ainda incipiente, o que tem gerado inúmeras divergências quanto à sua conceituação. Nesse sentido, uma das principais controvérsias refere-se à própria possibilidade de se falar em hipertexto a partir de literatura produzida em meio impresso. Não constituiu objetivo do presente artigo a discussão de tal polêmica. Antes, o artigo procurou apresentar dois romances contemporâneos marcados por características estéticas típicas da hipertextualidade, A misteriosa chama da rainha Loana, de Umberto Eco, e As aventuras de Lucky Pierre, de Robert Coover, no intuito de testar a hipótese segundo a qual a literatura, enquanto “metáfora epistemológica”, jamais permanece indiferente aos grandes acontecimentos de seu tempo.
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