<REVISTA TEXTO DIGITAL>

ISSN 1807-9288

- ano 2 n.1 2006 –

http://www.textodigital.ufsc.br


PALÁCIOS, M. S. Jornalismo e literatura na internet: combinando pesquisas com experiências didáticas. Texto Digital, Florianópolis, ano 2, n. 1, Julho 2006.

 

 

JORNALISMO E LITERATURA NA INTERNET

Combinando pesquisas com experiências didáticas

 

JORNALISM AND LITERATURE ON THE INTERNET

Combining research with didactic experiences

 

 

Marcos Silva Palácios

Doutor em Sociologia pela University of Liverpool

Universidade Federal da Bahia

palácios@ufba.br

 

 

RESUMO: Desde 1995 eu tenho tentado dedicar pelo menos uma parte de minhas atividades acadêmicas e docentes a acompanhar o desenvolvimento paralelo, porém divergente de duas tipologias discursivas: o Jornalismo Online e a literatura de hiperficção, tendo experimentado com o ensino e produção de ambas e, especialmente, tentado fazer uma ponte entre as duas matrizes para entender as especificidades de cada uma delas, a partir de um esforço comparativo. Estabelecidos num mesmo momento no novo suporte midiático, e portanto sujeitos às mesmas possibilidades e limitações tecnológicas, o Jornalismo Online e a hiperficção seguem, ao longo destes dez anos, destinos bastante divergentes. Que explicações poderiam ser sugeridas para tal divergência? Como explicar o sucesso do webjornalismo, que se alastra pela Internet e multiplica modelos de disponibilização de notícias com utilização cada vez mais ampla das características específicas do suporte telemático (hipertextualidade, interatividade, multimidialidade, personalização, memória, atualização contínua), enquanto o texto ficcional em prosa parece estar em estagnação ou latência, não tendo ainda encontrado formas expressivas condizentes com seu desenvolvimento mais pleno no novo ambiente de produção possibilitado pelas redes telemáticas? Contrariamente à poesia, que se tem ambientado bastante bem na Internet, a hiperficção ainda não se enraizou no novo suporte. Por que? Essas são questões que norteiam o presente artigo.

 

PALAVRAS-CHAVE: Webjornalismo. Literatura de hiperficção. Redes telemáticas.

 

ABSTRACT: Since 1995 I have tried to dedicate at least a part of my academic and teaching activities to accompany the parallel development, yet divergent of two discursive typologies: Online Journalism and hyperfiction literature, having experimented with the teaching and production of both and, specially, trying to make a bridge between the two matrixes to understand the specialties of each one of them, beginning with an comparative effort. Established at the same moment in the new midiatic support, and thus subjected to the same technological possibilities and limitations, Online Journalism and hyperfiction follow, through these ten years, very diverging destinies. What explanations could be suggested for such divergence? How to explain the success of webjournalism, that spreads itself through the Internet and multiplies models of news availability with the ever-growing utilization of the specific characteristics of the telematic support (hypertextuality, interactivity, multimidiality, personalization, memory, continual update), while the prose fictional text seems to be stagnated or in latency, still not having found expressive forms suitable to its most fulfilling development in the new environment  of production made possible by the telematic webs. Contrarily to poetry, that has adapted very well in the Internet, hyperfiction has still not rooted itself in the new support. Why? These are questions that rout the present article.

 

KEYWORDS: Webjournalism. Hyperfiction literature. Telematic webs.

 

 

 

Minha experiência de ensino na área do jornalismo na Internet foi iniciada com uma disciplina optativa sobre Jornalismo Digital, ministrada na FACOM (Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia), conjuntamente com meu colega Elias Machado, no segundo semestre de 1995. Criamos o Lugar Incomum, um primeiro jornal laboratório na Faculdade (Figura 1) que, lançado em 1996, acabou sendo também o primeiro jornal online do Estado da Bahia, antes mesmo do lançamento da versões online do Correio da Bahia e A Tarde. A disciplina resultou também em um Manual de Jornalismo Online, que foi pioneiro nesse campo de s no Brasil[1].

 

Figura 1: Lugar Incomum, órgão laboratorial da Faculdade de Comunicação da UFBA, 1996

 

Posteriormente, através do Projeto Sala de Aula, um experimento de educação à distância (Figura 2), criado por um grupo de docentes da Faculdade de Comunicação, em 1998, estabelecemos uma série de cursos sobre Jornalismo Online e sobre Hiperficção, através da Internet.

Figura 2: Projeto Sala de Aula

Criamos também recursos para o ensino de ambas tipologias discursivas.

No caso do jornalismo, o webjornal laboratorial da FACOM evoluiu para uma plataforma de publicação (Figura 3), o Panopticon, que agora está sendo convertida (com uso de software livre e código aberto) em uma plataforma multiusuário de publicação conjugada com ambiente de ensino (recursos de sala de aula virtual) e se encontra em estágio de teste, por parte dos vários parceiros que compõem a rede formada para este projeto[2].

 

Figura 3: Panopticon, uma plataforma de publicação online

No caso da Literatura, criamos um site/ferramenta “A Lady e o Arminho” (figura 4), que foi utilizado no Projeto Sala de Aula e alguns cursos livres ministrados desde então e que deverá atualizado agora através de desdobramentos do projeto da plataforma  multiusuário de ensino e produção do Jornalismo Online, uma vez que uma das idéias é justamente manter uma situação de diálogo entre as duas tipologias discursivas, como parte do ensino do jornalismo online.

 

 

Figura 4: A Lady e o Arminho. Ferramenta para ensino de criação literária

O que esta experiência de ensino tem nos trazido em termos de um alargamento da compreensão das especificidades de cada dessas tipologias discursivas no processo de sua migração para a Internet?

O que pretendemos apresentar, resumidamente, nesta oportunidade são algumas das reflexões e conclusões que derivam desse percurso pedagógico e de investigação[3].

O ano de 1995, quando iniciávamos nossa experiência de ensino de jornalismo na Internet, marca o primeiro grande salto em termos de ocupação da Net por grupos em empresas de comunicação (Figura 5). Em 1994 os jornais online – diários e comerciais – começavam a sua escalada na Internet, passando de 20 em 1994, para 471 no ano seguinte. De acordo com o Mediainfo, esses números cresceram para 115 em 1996, e 3847 em 1999. Outra fonte de informação, o NewsLink, concorda com os números iniciais de 1994 e 1995, mas indica um crescimento para 1326 em 1995 e 6772 em 1999. Atualmente são mais de quatro mil jornais online, apenas nos Estados Unidos.

Figura 5. Crescimento da produção jornalística na WWW 1994/1999

 

Em 1995 os hipertextos literários também se multiplicavam e sites iam sendo criado para a divulgação da produção literária hipertextual na Web. Um dos mais influentes, estabelecido também em 1995, foi o Hyperizons, um espaço voltado para a divulgação de textos de hiperficção e sua crítica (Figura 6). O site deixou de ser atualizado em 1997, mas ainda se encontra lá (com muitos links perdidos, como seria de se esperar) como um valioso testemunho da produção literária na Web daquele período.

A literatura de hiperficção brasileira também marcou presença na Internet, naquele período. Para alguns exemplos veja-se: Tristessa, de Marco Antonio Pajola (1998), Baile de Máscaras de Vera Mayra (1998),  A Dama de Espadas de Marcos Palacios (1998), dentre muitos outros. Na mesma época, cyber-novelas estavam em moda no site do UOL.

 

Figura 6. Página de abertura de Tristessa

 

 O que aconteceu desde então? Os gêneros se firmaram? Até que ponto ocorreu o esperado desenvolvimento de linguagens próprias hipertextuais, tanto no âmbito da literatura quanto da escrita jornalística e de outras formas expressivas no ciberespaço?

Para começar, algo que causa surpresa e que pode ser indicativo das significativas diferenças observadas entre o desenvolvimento do texto jornalístico e da literatura na Web é justamente o fato de que uma busca no Google usando-se como palavras chaves “hypertext literature” ou “hyperfiction” traz na cabeça da lista justamente o Hyperizons, com seus links (lamentavelmente) quebrados.

Outro site de grande influência nos meados da década de 90, o Hypertext Literature Online também aparece com proeminência quando fazemos hoje uma busca no Google. Mas sua última atualização data de setembro de 2000, quando seu webmaster, Jean Mason, terminou sua tese doutoral, cujo processo de produção alimentava o site.

A maior parte dos sites encontrados pelas buscas, usando-se palavras chaves similares, leva a uma constatação inevitável: há um maior número de trabalhos de crítica à produção hipertextual e suas potencialidades do que propriamente um corpus vivo e em transformação de obras literárias hipertextuais para consumo na Internet.

A vasta maioria das obras de ficção hipertextual disponibilizada na Internet tem data de produção situada no período 1994/2000. De lá para cá não parece haver ocorrido muito movimento ou desenvolvimento nesse setor. O que aparentemente justifica a asserção de Curt Cloninger (2000) de que: “Ao fim e ao cabo, a literatura em hipertexto pode provar ser a realização da fantasia secreta dos críticos desconstrutivistas: um gênero literário mais conhecido por sua crítica, do que por sua literatura propriamente dita” (2000, p. 4). 

Fazendo um balanço da situação da hiperficção em 2001, McGann (2001:17) afirmava que “armados com impressionantes recursos técnicos, os trabalhos produzidos nesse novo gênero empalidecem em complexidade diante de seus antecessores em papel”.                                                                                                                                                   

Uma crítica que recebi com relação a minhas incursões iniciais neste terreno, foi a de que, ao me concentrar nos aspectos puramente expressivos das duas tipologias discursivas, eu teria ignorado o fator econômico atuante por trás das duas linhas de desenvolvimento. A explicação para a continuidade de crescimento quantitativo e para a renovada experimentação de formatos observadas no Jornalismo Online, em contraste com a hiperficção, estaria localizada no fato de que os jornais online foram e – majoritariamente - continuam sendo produzidos por empresas jornalísticas, que têm investido pesadamente (e com grandes perdas, na maioria dos casos) na manutenção e desenvolvimento de seus veículos noticiosos no novo suporte.

No entanto, ainda que haja aí uma linha de argumentação plausível, não nos parece ser de caráter econômico a causalidade mais forte, neste caso. A idéia de que uma explicação em moldes econômicos possa dar conta da situação de inanição vivenciada pela hiperficção, implicaria em aceitar que a arte, de modo geral, só pudesse sobreviver e florescer em situações de mecenato, o que, evidentemente, não encontra sustentação na História. Mais plausível me parece uma argumentação de caráter inverso: por não haver estabelecido uma existência continuada na Web, a hiperficção não fomentou o surgimento e fortalecimento de empresas que pudessem vir a comercializar e, portanto, oferecer apoio e incentivo financeiro aos que se dispunham a produzir nessa área.

Com efeito, uma empresa voltada para a comercialização da hiperficção foi criada nesse período inicial. Trata-se da editora Eastgate, especializada na distribuição de obras literárias em meio magnético, ou seja, em disquetes, naqueles dias pretéritos, e Cd-Roms nos dias atuais. A Eastgate ainda existe e comercializa hipertextos. Significativamente, seu catálogo de hiperficção não chega a 30 títulos, sendo que o carro-chefe do lote continua sendo o pioneiríssimo Afternoon, a story, de Michael Joyce, que teve sua primeira edição em 1986, em disquete, e veio sendo sucessivamente atualizado até 2002. Também significativamente, Afternoon, a story nunca teve uma versão online e é um hiper-texto, em sentido estrito: não apresenta qualquer elemento multimidiático.

É relativamente fácil contra-argumentar-se que não é o fator econômico o único (e talvez nem o maior) motor para o sucesso de experimentos na Internet. De outra forma, como se explicar o sucesso dos blogs, por exemplo? A hiperficção que se produziu em considerável escala até o final da década de 90 provinha de autores profissionais e amadores, que experimentavam com o novo suporte, independentemente de retornos econômicos, da mesma forma que milhões de pessoas se dedicam hoje a alimentar blogs de todos os tipos, alguns dos quais fadados a permanecer para sempre na mais absoluta invisibilidade, sem trazer qualquer retorno econômico ou notoriedade a seus produtores. A Internet ainda mantém uma larga dosagem do idealismo dos tempos pioneiros, quando considerações ideológicas claramente se sobrepunham a motivações econômicas. Caso houvesse ocorrido uma continuidade de florescimento do novo gênero ficcional, seria perfeitamente factível  buscar (e encontrar) apoio e guarida para ele em espaços acadêmicos/universitários e de organizações sem fins lucrativos, que hoje respaldam e incentivam as mais diversas formas de manifestação cultural na Internet. Manter a explicação dos destinos divergentes das duas tipologias discursivas ancorada primariamente ao fator econômico parece-me insustentável.

Um outro comentário freqüente que recebi às argumentações apresentadas em meus primeiros textos sobre as semelhanças e diferenças entre o texto jornalístico e ficcional na Internet, diz respeito aos hábitos de leitura. O leitor de literatura estaria a habituado a ler esse tipo de obra no formato livro e a tela do computador não seria um suporte adequado para essa atividade. Esse raciocínio é dificilmente defensável. Primeiramente, tanto o leitor de obras literárias, quanto o leitor de jornais, consumiam seus textos exclusivamente em papel impresso, antes do advento dos computadores e da Internet. Haveria alguma razão para que um grupo de leitores fizesse a transição para um outro tipo de interface e outro não?

 A já conhecida tese de que a tela do computador se presta apenas à leitura de textos curtos, parece constituir hoje mais uma daquelas afirmativas que vão se impondo com força de verdade mais pela contínua repetição de que, propriamente, por seu teste e comprovação em bases experimentais. O “texto curto” como fórmula padrão para o jornalismo na Internet, a meu ver, está mais associado à estreita largura de banda do que a qualquer especificidade imposta pelo suporte ao modo de produção jornalístico. Além disso, longe de se constituir em um texto longo e linear, de “cansativa leitura na tela”, a ciberliteratura  que vinha sendo criada naquele período apostava na quebra da linearidade, jogando com a multilinearidade, criando seus enredos através de textos fragmentados em muitas lexias, enriquecidos por recursos visuais e sonoros de vários tipos. Por outro lado, tampouco é verdade que o texto jornalístico na Internet seja sempre curto, telegráfico. O texto rápido, no estilo fast-food, como o utilizado pelo jornal Último Segundo, do Portal IG, é apenas um dos modelos de Jornalismo Online em existência na atualidade (SANTOS 2002), convivendo com veículos que disponibilizam, com aceitação e sucesso, textos longos e complexos, ricos em recursos multimídia, a exemplo de reportagens especiais da BBC e MSNBC. À medida que aumentam as velocidades de conexão, vão igualmente se multiplicando experimentações multimidiáticas e sendo mais freqüente o uso de recursos infográficos sofisticados no jornalismo na Internet, suscitando tempos de permanência e leitura mais longos.

Uma discussão em torno das possíveis causas desse desenvolvimento diferenciado, tem que necessariamente voltar-se para uma avaliação comparativa das duas formas expressivas com relação a três características fundamentais da Web: hipertextualidade, multimidialidade e interatividade.

Tomando como ponto de partida a questão da hipertextualidade, condição essencial e fundante da textualidade na Web, as especificidades da migração do jornalismo e da literatura para a Internet, tem que ser inicialmente buscadas nas diferenças dessas duas tipologias discursivas no que diz respeito à organização do fluxo da narrativa. A idéia principal que lançamos para discussão neste texto é de que ao migrar para a Internet[4], o jornalismo tinha no impresso uma metáfora facilmente utilizável (McAdams, 1995), debaixo da qual tem se desenvolvido nos últimos dez anos. O “jornal enquanto metáfora” presta-se, por sua própria natureza, à construção hipertextual. O que é uma chamada de primeira página senão um processo de linkagem para um texto localizado em outro(s) arquivo(s)? O leitor do jornal impresso já estava acostumado a ler hipertextualmente muito antes da existência do hipertexto. Ninguém lê um jornal como se lê um romance, da primeira à última linha.

Embutida na própria lógica do jornal[5] enquanto dispositivo[6] há uma hipertextualidade pré-digital, um proto-hipertexto. O jornal impresso não é concebido e construído para ser lido linha por linha, da primeira à última página. Igualmente e coerentemente, a forma de consumo do produto jornalístico revela um comportamento hipertextual por parte do leitor, que pula das manchetes e chamadas da primeira página para a seção em que tem maior interesse, vai, volta, lê em diagonal, fica apenas no nível do lead de uma notícia, lê outra até o fim, olha uma foto e passa os olhos por uma legenda, descarta todo um suplemento pelo qual não se interessa, reserva para leitura posterior ou “arquivamento” uma página com um texto mais longo etc. Em alguns casos, um jornal totalmente desconjuntado e espalhado pelo chão é uma evidência palpável de tais comportamentos “hipertextuais” de leitura.

Por outro lado, à exceção de alguns casos isolados, que podem ser classificados como hipertextuais avant-la-lettre, como Rayuela de Julio Cortazar, o Dicionário Kazar, de Milorad Pavic, Em uma noite de inverno um viajante, de Ítalo Calvino, ou o famoso Cent Mille Milliards de Poémes, de Raymond Queneau (que por sinal tem uma versão online), a literatura pré-digital caracterizou-se sempre por sua linearidade estrita, constituindo leitura transgressiva, qualquer tentativa de percorrer o texto de uma forma não seqüencial, como por exemplo dar uma espiada nas últimas páginas para saber se o mordomo é realmente o assassino...

Muito da discussão da década de 90 sobre as vantagens e os supostos avanços representados pelo hipertexto com relação à escrita tradicional centrou-se – e de alguma forma ainda se centra - na questão da linearidade x não-linearidade. Não é ocioso lembrar-se que a palavra browser, utilizada para designar os programas de leitura de hipertexto, provém do verbo pré-informático to browse, que significa (entre outras coisas) percorrer páginas a esmo, mas que tem  uma raiz etimológica associada aos brotos ou ramificações na ponta da haste de uma planta[7]  No entanto, essa contraposição não é tão simples quanto possa parecer à primeira vista.

Num texto produzido em 1999, seguindo a trilha de algumas idéias introduzidas por Gunnar Liestøl (1994), sugeri que:

 

A noção de "não-linearidade", tal como vem sendo generalizadamente utilizada, parece-nos aberta a questionamentos. Nossa experiência de leitura dos Hipertextos deixa claro que é perfeitamente válido afirmar-se que cada leitor, ao estabelecer sua leitura, estabelece também uma determinada "linearidade" específica, provisória, provavelmente única. Uma segunda ou terceira leituras do mesmo texto podem levar a "linearidades" totalmente diversas, a depender dos links que sejam seguidos e das opções de leitura que sejam escolhidas, em momentos em que a história se bifurca ou oferece múltiplas possibilidades de continuidade (Palacios 1999:5).

 

      O que observamos e vivenciamos, no processo de recepção, de uso, é uma multilinearidade do hipertexto, em contraposição à unilinearidade do texto tradicional, ainda que, evidentemente, mesmo no texto tradicional leituras transgressivas sejam possíveis, criando multilinearidades. Basta que se pense numa leitura transversal, que seleciona trechos e que “vai e volta”, saltando ao longo do texto, sem que seja seguida a seqüência “canônica” pré-estabelecida pelo autor. Chaouli (2005) chega mesmo a assinalar que o livro em sua forma tradicional fortalece de tal forma a possibilidade de acesso randômico ao texto que não deixa de ser surpreendente que ele tenha se prestado à leitura canônica (ordenadamente da primeira à última página) o que por si só é um forte indicador do prazer que se retira da comunicação hierarquizada.

      A diferença aqui é que enquanto na literatura a construção multilinear e a leitura transversal são transgressivas, no jornalismo elas são a norma. E como natura non facit saltum (a natureza não dá saltos) a migração das duas tipologias discursivas para a Internet funcionou no sentido de potencializar as características multilineares já existentes no jornalismo impresso, porém sem lograr, pelo menos até o presente, estabelecer um novo formato para a escrita literária, que fosse além dos experimentos iniciais e se estabilizasse como uma nova modalidade de prática narrativa.

      Enquanto o jornal impresso representava uma metáfora altamente aproveitável para o jornalismo na Web, passível de fazer usos das possibilidades de multilinearidade propiciadas pelo hipertexto nas redes digitais, a literatura não tinha modelos prévios que servissem como metáforas apropriadas. Ou antes, como aponta Cloninger (2000), tinha uma metáfora possível, porém das mais pobres, na idéia dos livros do tipo “faça sua própria história”[8]: “se quiser entrar em luta com o dragão vá para a página 72”; “se quiser fugir com a donzela, pule para a página 287”.

Para Clonninger, o hipertexto funciona maravilhosamente como agregador da Internet num todo e como possibilitador do funcionamento da arte multimidiática, mas redunda em produtos extremamente pobres quando aplicados à literatura. Para ele “da mesma forma que Dadaísmo, algumas coisas funcionam melhor em teoria do que em sua execução. A idéia iconoclasta de Duchamp do urinol (Figura 7) travestido em fonte e obra de arte é muito mais impressionante do que o urinol em si mesmo. E naturalmente era esse o ponto de Duchamp. Da mesma forma, teorias complexas sobre novelas interativas ou sobre poesia em fluxo contínuo de consciência (stream-of-consciousness enabled poetry) são muito mais interessantes de se ler do que os próprios poemas ou novelas hipertextuais” (2000, p.1).

 

Figura 7. O mais famoso urinol de todos os tempos.

 

É inegável que apesar do sucesso de algumas peças de hiperficção criadas nos últimos dez ou 12 anos, o que mais se tem multiplicado na Internet, em termos literários, é a transposição pura e simples dos textos pré-digitais para arquivos digitais, desde o pioneiro Projeto Gutenberg a bibliotecas de obras literárias clássicas, em latim, grego, hebraico, aramaico, o que se queira.

Michael Joyce assinala que no Voice of the Shuttle, um site-portal para Humanidades em geral, o item Recursos sobre Literatura Inglesa abre uma lista “de cerca de trinta e seis e meia polegadas lineares de links, e isso sem contar as áreas sub-disciplinares.”(2004, p.78) A herança cultural literária, em todas as línguas e de todos os tempos, está sendo digitalizada e colocada a nosso alcance, numa renovação potencializada do sonho de Alexandria. Mas, até momento, poucos textos literários pós-digitais hipermidiáticos parecem ter vindo para ficar, a não ser talvez como curiosidades experimentais de um momento de transição.

Obras bastante complexas, criativas e instigantes têm sido produzidas sobre as potencialidades e o futuro de uma literatura hipermidiática, como o Hamlet on the Holodeck, de Janet Murray (1998), as elucubrações de Marie-Laure Ryan (2001) sobre narrativa e realidade virtual, ou as quase-receitas altamente ilustradas de Mark Meadows (2002) sobre como realizar o salto hipermidiático. Paradoxalmente, no entanto, produtos com as características elencadas em tais obras parecem estar mais próximos de emergir – e serem prazerosamente consumidos - em forma jornalística do que literária. A despeito das limitações e dos riscos apontados por Saad (2004), o jornalismo na Internet aparece como um espaço de experimentações, - com maior ou menor sucesso, com maior ou menor permanência, com maior ou menor ousadia e criatividade. Como um espaço pulsante, enfim.

 No que se refere à multimidialidade, um primeiro fator de diferenciação a ser apontado é que no jornalismo, ao contrário do que se verifica na literatura, há uma história de convivência, mais ou menos harmoniosa, de diversas formas expressivas, em distintos suportes. Não, é claro, no sentido amplo de convergência midiática que caracteriza a Internet, mas a produção jornalística moderna em meio impresso, utiliza-se de imagens de variados tipos (gravuras, charges, fotos, infográficos, vinhetas etc) há mais de cem anos.

Apesar de que seja possível identificar-se uma certa tensão entre texto e imagem, ao longo de toda a história da produção e veiculação da informação jornalística, o fato é que, em diferentes medidas e com diferentes propósitos, texto e imagem vêm sendo utilizados na quase totalidade de veículos impressos jornalísticos modernos. Além disso, o discurso jornalístico adaptou-se aos suportes radiofônico e televisivo, incorporando e aproveitando as especificidades das novas tecnologias eletrônicas, sem perder sua identidade discursiva.

Muito mais que uma ruptura, para o jornalismo, a multimidialidade possibilitada pela Internet representa uma continuidade e uma potencialização de uma característica já estabelecida em suportes anteriores de produção e veiculação jornalística[9].

Por outro lado, o mesmo não se pode dizer da literatura, caracterizada milenarmente por ser oral ou textual, em sentido estrito. É verdade que imagens foram usadas, ao longo da história da literatura, como reforço ou ilustração dos elementos textuais. No caso europeu, as imagens tiveram proeminência no período que antecede a invenção da imprensa, nos manuscritos iluminados, tanto sagrados quanto profanos[10]. A ilustração de obras literárias impressas não é uma prática incomum e até gozou de relativo prestígio em algumas épocas (na Inglaterra Vitoriana, por exemplo, era uma fórmula de grande aceitação, tanto na prosa quanto na poesia). No entanto, a literatura ilustrada não se impôs historicamente como uma prática generalizada. Pelo contrário, a literatura ilustrada apresenta-se hoje como excepcional, sendo mais corrente em formatos populares ou folhetinescos, em algumas “edições especiais” de obras magnas - como O Don Quixote, de Cervantes, a Divina Comédia, de Dante, O Paraíso Perdido, de Milton, as peças de Sheakespeare etc, que foram trabalhadas por notáveis ilustradores como Gustave Doré (Figura 8), William Blake, J. M. Turner, Salvador Dali e centenas de outros.

Figura 8. Uma ilustração de Doré para o Quixote.

 

Tampouco se registrou a emergência de um novo formato literário, produto da junção da literatura com a fotografia, a despeito de algumas incursões por esse caminho. Ocorre-nos o exemplo de Let us now praise famous men, de Walker Evans e James Agee, uma obra do final dos anos 30, espécie de híbrido ensaístico entre Literatura e Antropologia, com uso abundante de (excelentes) fotos de Walker Evans[11], um dos expoentes da fotografia-documentário nos anos 30 do século passado (Figura 9). Mas a obra é certamente mais um contra-exemplo do que um exemplar de um sub-gênero.

Figura 9. Foto de Walker Evans em Let´s Now Praise Famous Men

 

Um aúdio-livro não é um híbrido, mas apenas uma gravação analógica ou digital de um texto, visando aqueles que não podem ou não querem ler, mas sim ouvir a obra. Por outro lado, uma história contada com imagens em movimento não é mais literatura, pois se torna cinema[12], e a transposição para o formato de quadrinhos de uma obra literária, pode caracterizar um tipo ou sub-gênero dessa tipologia discursiva, mas dificilmente será aceita como “obra literária”. O mesmo pode ser dito da adaptação de obras literárias para o formato televisivo. Diferentemente do jornalismo, portanto, o texto literário tende a perder sua identidade discursiva ao hibridizar-se com outros formatos midiáticos.

Até muito recentemente, as potencialidades abertas pela Web para o hipertexto ressentiam-se de uma grave limitação tecnológica: as baixas velocidades de conexão. Até o advento da chamada Banda Larga (que ainda está longe de se generalizar, especialmente em países/regiões periféricas), baixar uma foto de tamanho médio (150 pixels x 150 pixels) usando um modem de pequena capacidade e uma linha telefônica era uma enervante operação, que podia levar vários minutos, na hipótese de ser bem sucedida, uma vez serem freqüentes as “quedas de conexão” e outros acidentes de percurso. Era comum os sites oferecerem alternativas de versões text only (somente texto, com exclusão fotos e outras imagens) para usuários conectados a baixas velocidades. Tal situação, evidentemente, restringia a utilização não só de fotos, mas de todo o qualquer recurso não textual, fazendo dos sites, de um modo geral, (hiper)textos num sentido estrito, complementados subsidiaria e optativamente por outras mídias, a depender das possibilidades de conexão dos usuários.

Foi nessa situação de baixas velocidades de conexão que nasceram tanto o Jornalismo Online (Figura 10) quanto a hiperficção. No caso do jornal online a limitação técnica parece ter funcionado, como um desestímulo à experimentação e ao uso dos recursos potenciais oferecidos pelo novo suporte, mantendo a metáfora do jornal impresso em seu lugar. Porém a metáfora não impedia, mas antes pelo contrário potencializava, a hipertextualidade, um recurso que independia de altas velocidades de conexão. Superada a fase primitiva de transposição pura e simples das edições impressas para a Web[13], o jornalismo na Internet frutificou sob o manto protetor da metáfora e o comportamento hipertextual do leitor encontrou plena ressonância nos meandros das edições online.

Figura 10. Home page do jornal Los Angeles Times, nov. 1996

 

O hipertexto de ficção, por outro lado e a despeito das baixas velocidades de conexão, sempre buscou a multimidialidade. Buscou a abusou. Num artigo publicado em 1995, Jürgen Fauth chama a atenção para uma característica que, segundo ele, marca o início de toda nova possibilidade midiática: o abuso de alguns dos recursos formais abertos pela nova tecnologia, em detrimento de outras preocupações estéticas. As primeiras gravações em estéreo, - exemplifica ele -, insistiam em reproduzir performances que faziam o som oscilar constantemente entre o alto falante da direita e o da esquerda, assim como os atores de filmes em Terceira Dimensão (3D) – que chegaram a ser grandes sucessos de bilheteria nos anos 50 - estavam sempre brandindo porretes em direção à face dos expectadores. Naqueles filmes, o mais importante eram os sustos pregados na platéia pelos avanços frontais do Monstro da Lagoa Negra[14] (Figura 11)em direção à câmera, ou pelo salto de um rato em direção à sala de espetáculo; o enredo que justificava os sustos era de menor monta.

Figura 11. O simpático Mostro da Lagoa Negra, de 1954.

 

O texto de Fauth soava, naquele momento, como um tanto “reacionário”. O que estava ele querendo dizer? Que a Internet não servia como suporte para literatura? Que os autores de ficção não deveriam experimentar com os novos recursos? Não saberia ele que todo processo de criação de novas linguagens passa, quase que necessariamente, por excessos? Não seria de se esperar que tais excessos fossem gradativamente reduzidos até que se alcançasse a “medida certa”?[15]

Naquele mesmo ano de 1995, Sarah Auerbach afirmava que:

 

Li muita ficção hipertextual na WWW e me dei conta de que a maioria dela é o que passei a chamar “notas de rodapé melhoradas”; por exemplo, uma história está escrita mais ou menos linearmente, mas quando se chega ao nome de um personagem pode-se seguir um caminho que leva a uma descrição desse personagem, (uma possível variante é um caminho que oferece mais informação sobre uma situação em desenvolvimento). Ler esse tipo de ficção hipertextual pode ser o mesmo que fazer tarefa escolar; a informação periférica, a não ser que esteja colocada de forma muito hábil, pesa no desenvolvimento do argumento normal e dos personagens. E esta é uma das coisas estranhas que notei em grande parte da hiperficção que li: seus autores tentam preservar elementos da ficção linear, como o argumento e os personagens. O hipertexto, de maneira geral, ainda depende do gênero em que nasceu”. (AUERBACH,1995, p.1)

 

Se para Fauth os autores de hiperficção abusavam dos hiperlinks e outros efeitos, - como as imagens mapeadas, GIFs animadas e efeitos de fundo (papéis de parede) -, para Auerbach eles simplesmente abusavam da paciência dos leitores.

Evidentemente, na produção literária pré-digital, a grande exceção no que diz respeito à multimidialidade é a literatura infantil, que prodigaliza imagens como forma de aproximar seus leitores ao texto. A literatura infantil não só estabelece uma convivência harmoniosa e quase necessária entre imagem e texto, mas também pode ser apontada como o sub-gênero literário onde a multimidialidade pode ser identificada, antes mesmo da chegada das redes telemáticas e da Internet, através de livros infantis que se faziam acompanhar de fitas cassetes, ou mesmo de mecanismos não eletrônicos para a produção de sons, como caixinhas de música, diafragmas de borracha para serem apertados produzindo sons, dobraduras no papel permitindo a formação de quadros em 3D e, mais recentemente, incorporando chips capazes de produzir sons, luzes etc. Seria de se perguntar se o uso excessivo de recursos multimidiáticos não emprestou à hiperficção da Web um certo “caráter infantil”, que acabou por afastar do gênero os leitores literariamente mais exigentes.

Se por um lado a hiperficção fazia um uso exagerado de tais recursos, o jornalismo sub-utilizava os elementos multimídia, em seus primeiros anos de existência. Estava como que aguardando uma situação tecnológica mais propícia. Isso sim, talvez tenha uma relação com tipos de leitores e hábitos de leitura: enquanto o leitor de um texto de hiperficção podia estar armado de mais paciência para aguardar o demorado download de uma lexia altamente carregada (texto + som + imagem) já que, em geral,  fazia aquele tipo de leitura por puro prazer e diletantismo, a leitura de um jornal, por outro lado, associa-se muito diretamente á uma temporalidade do presente, a uma atualidade, supondo um acesso mais ágil à informação, seus desdobramentos e contextualização, e sendo seu leitor, portanto, menos propenso a longos períodos de espera. Esses comportamentos diferenciados de leitura pouco têm a ver com a extensão dos textos a serem lidos ou baixados, mas sim com as temporalidades  diferentes que regem as lógicas dos dois discursos e condicionam a maneira de seu consumo.

O advento das conexões rápidas e sua disseminação crescente estão abrindo novas possibilidades para uma utilização efetivamente multimidiática da Internet, e para novas formas de incorporação da imagem e do áudio ao produto jornalístico na Web. A banda larga soma-se à flexibilidade já oferecida pela digitalização, modularização e variabilidade dos formatos midiáticos (Manovich, 2001), possibilitando que se caminhe, de facto, em direção a um Jornalismo Online com hipertextualidade, no sentido amplo que Landow (1997) e outros emprestam ao conceito.

Finalmente, cumpre estabelecer alguns elementos de comparação entre os dois formatos discursivos no que diz respeito à interatividade, uma característica que está associada à quebra da tradicional estabilidade e rigidez das posições de emissão e recepção nos processos comunicação de massa.

Conquanto a possibilidade de alternância de polaridade já estivesse presente em suportes anteriores, como transparece nas idéias de Bertold Brecht sobre o rádio e em alguns apontamentos de Walter Benjamin sobre o jornal e o cinema  em seu clássico ensaio sobre a obra de arte na era de sua reprodução mecânica, este novo tipo de fluxo de informações se manifesta mais claramente a partir dos anos 70, como apontado por Hans Magnus Enzensberger ao discutir tecnologias eletrônicas emergentes naquela década, como a televisão a cabo, o gravador-cassete, as filmadoras Super-8, o vídeo (ENZENSBERGER, apud CHAOULI, 2005).

Não se trata de substituição de um processo por outro (PALACIOS, 2003b), uma vez que, mesmo na Internet, convivem lado a lado formatos verticais e horizontais, ao mesmo tempo em que se diluem as hierarquias de distribuição de informação e cresce a participação do internauta na produção e emissão de conteúdos. Na Cibercultura, a horizontalidade e multivocalidade dos processos comunicacionais são enfeixadas sob a denominação de “liberação do pólo de emissão”:

 

As diversas manifestações socioculturais contemporâneas mostram que o que está em jogo como o excesso de informação nada mais é do que a emergência de vozes e discursos anteriormente reprimidos pela edição da informação pelos mass media. A liberação do pólo da emissão está presente nas novas formas de relacionamento social, de disponibilização da informação e na opinião e movimentação social da rede. (LEMOS, 2003, p.22)

 

No que diz respeito à interatividade, é igualmente no texto jornalístico, através de experimentos como Indymedia, Slashdot, Kuro5hin, Discordia etc - e dos Blogs coletivos de um modo geral -, que o conceito de hipertexto coletivo, um dos ícones dos experimentos da hiperficção na década de 90 vai se consolidando com sucesso, nos tempos atuais. Enquanto obras ficcionais coletivas como Citythreads, ou Madame de Lafayette´s Book of Hours (Figura 12) rapidamente perderam interesse[16] e deixaram de ser visitadas e atualizadas, o Indymedia conta com mais de 140 sites (coletivos) espalhados pelo mundo. E em plena atividade e produção. No Slashdot, o leitor não apenas se torna também produtor de informação, mas a quantidade de acessos e os comentários às notícias disponibilizadas funcionam como mecanismo de hierarquização do material noticioso.

 

Figura 12. Página de abertura de Madame de Lafayette´s Book of Hours

 

Em 2004, o jornal coreano OhmyNews International (Figura 13)investe numa proposta de acolher como jornalista-cidadão todo e qualquer internauta que queira participar da elaboração dos textos disponibilizados. Foi criado um sistema de envio de artigos e controle de trabalho para cada cidadão-repórter. O interessado faz um cadastro e tem seu pedido de aceitação avaliado pela coordenação do projeto e, uma vez autorizado, pode submeter artigos. Um sistema, denominado “Reporter Desk”, mantém o autor das matérias informado sobre a situação de cada colaboração enviada:  o número de acessos e comentários às suas matérias, as mensagens recebidas através do site, bem como acessa informações sobre o cybercash, os honorários ganhos com as suas publicações. A fim de garantir a credibilidade do material disponibilizado, no momento do envio de cada contribuição o cidadão-repórter deve explicar como fez o trabalho, se apurou pessoalmente, se apenas cruzou dados e se a matéria já foi anteriormente publicada em outro veículo.

 

Figura 13. Um jornal aberto à participação.

 

Gillmor (2004) acredita que publicações como o OhmyNews International fomentarão a convivência entre amadores e profissionais na produção de informações noticiosas, integrando as práticas jornalísticas tradicionais com as potencialidades das novas tecnologias de comunicação. É saudável que um certo cuidado seja tomado com relação a tais previsões. É necessário que se aprofundem os estudos sobre que tipo de participação é essa e que extensão ela poderá vir a ter no futuro. Parece claro, por exemplo, que ela é muito mais bem sucedida em comunidades de interesses bem definidos (como o Slashdot, por exemplo) de que no jornalismo de modo geral e isso pode ser indicativo de tendências e limites desse tipo de experimentação, contrariando profecias de uma futura generalização desses procedimentos a todo o campo jornalístico. No entanto, apesar de possíveis reservas quanto à sua extensão e futuro, é evidente que alguma medida de participação tem sido alcançada no que diz respeito ao âmbito da produção jornalística. 

A escrita colaborativa avança na Internet não só na área do jornalismo, mas também em outros campos não ficcionais, como no caso do extremamente bem-sucedido experimento de construção da Wikipedia, uma enciclopédia coletiva, em sistema de atualização contínua, aberta a qualquer colaborador. Por outro lado, pouquíssimos internautas mais jovens sequer saberão o que é (ou foi) um MUD. A prática da produção coletiva ficcional não é, certamente, algo que ocupe espaço significativo nos menus de atividades dos usuários da Internet. Mais uma vez, está claramente estabelecido um descompasso no que diz respeito ao desenvolvimento da hiperficção com relação a outras tipologias discursivas e, em especial, com relação ao Jornalismo Online. A maior parte da literatura produzida na Web hoje é individual e, majoritariamente, apenas uma transposição de textos tradicionais ao suporte telemático.

Se, no discurso jornalístico, a interatividade e a participação tiveram seus precursores em gêneros como a Carta ao Editor, as colunas assinadas e os fóruns de leitores, experimentos de produção coletiva por vários autores também tiveram lugar na literatura. Mesmo na literatura brasileira, pelo menos um exemplo vem à mente: O Mistério dos MMM, um romance policial escrito colaborativamente por Jorge Amado, Viriato Corrêa, Dinah Silveira de Queiroz, Lúcio Cardoso, Herberto Sales, José Condé, Guimarães Rosa, Antonio Callado, Orígenes Lessa e Rachel de Queiroz. Por que ocorre a potencialização dessas características em um caso e não no outro?

Um texto recente de Michel Chaouli (2005) sugere algumas idéias para explicar as razões do fracasso da escrita ficcional colaborativa na Internet. Assinala ele que idéia de que “a assimetria entre autor e leitor é algo que deve ser abolido para o bem da arte me parece errônea. O oposto me parece ser o caso: ´interatividade´ – alta comunicatividade de qualquer tipo - interfere com o fazer literário, particularmente no caso de textos que pretendem conduzirmos a um mundo ficcional” (2005:604). E complementa:

 

Mesmo a narrativa oral, que é tecnicamente modesta, demanda uma situação comunicativa altamente artificial: alguém que fala e outros que permanecem silentes. Levados por um ímpeto moral que considera anátema todo tipo de hierarquia, muitos críticos (particularmente nos Estados Unidos) (...) atribuíram-se o dever de derrubá-las onde quer que sejam encontradas. Nesse processo, eles tendem a ignorar o fato de que, para que a arte ocorra, a comunicação deve ser distribuída assimetricamente: alguns narram, escrevem, dançam ou cantam, enquanto outros ouvem, lêem ou assistem. O lado produtivo e causador de satisfação dessa assimetria se revela na avidez com que os destinatários cedem à comunicação para beneficiar-se dos prazeres que a experiência narrativa produz. (p. 604)

 

      Chaouli (2005) lança uma provocação, ao sugerir que um texto coletivamente produzido na Internet, pode trazer muito mais prazer àqueles que o constroem, de que aos seus leitores potenciais. Esses experimentos não criam leitores, mas sim escritores. A prosa gerada em RPGs (Role Playing Games) e jogos de aventura não tem por objetivo impressionar uma audiência externa ao jogo e, menos ainda,  produzir obras passíveis de esforços interpretativos complexos. De maneira similar, segundo ele, os textos de hiperficção coletiva são muito mais interessantes quando tentamos produzi-los do que quando tentamos lê-los. Para usar uma metáfora de colorido local, ao participarmos de um experimento de construção coletiva hiperficcional, trocamos o papel de espectadores assistindo a um bom jogo executado por profissionais e optamos por outro tipo de diversão, indo ao gramado correr, suar e chutar a pelota. Quase sempre para fora ou por cima da trave...

            A questão da interatividade e da construção textual coletiva abre uma série de questionamentos, impossíveis de serem sequer minimamente discutidos neste texto. O que nos parece importante indicar aqui, como um tema para posterior investigação e discussão, é que a construção coletiva e a recepção de textos coletivamente construídos envolvem diferentes motivações e diferentes processos cognitivos (AUDET & SAINT GELAIS, 2003) na literatura e no jornalismo. De modo geral, não se participa de um experimento de construção ficcional coletiva como Madame de Lafayette´s Book of Hours pelas mesmas razões que levam alguém a postar uma matéria no CMI Brasil ou no OhmyNews International.  Igualmente, os processos cognitivos envolvidos na produção e recepção das duas tipologias discursivas estão longe de serem os mesmos. Certamente todos esse fatores terão que ser chamados em causa, para uma análise e uma busca de explicações para o relativo sucesso e o relativo fracasso da construção textual coletiva nas duas tipologias discursivas. Nos estreitos limites deste texto, ficam registrados apenas os fatos: o lugar crescentemente importante da produção coletiva e do jornalismo-cidadão, baseado na colaboração aberta para a produção do texto jornalístico, vis-à-vis os links quebrados em obras ficcionais coletivas, há muito iniciadas e logo abandonadas, e o pouco interesse que esse tipo de atividade de produção ficcional parece despertar entre os usuários da Internet nos tempos que correm.

      Em síntese, no que diz respeito ao jornalismo na Internet, uma observação dos maiores jornais internacionais (incluídos aqui os brasileiros como a Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo) leva à constatação de que, mesmo mantendo basicamente a idéia da metáfora, o Jornalismo Online, através do uso crescente de bases de dados, de recursos multimídia e interativos, começa a entrar no que se convencionou chamar “terceira fase” ou “geração” do Jornalismo Online, havendo quem já fale em uma quarta (BARBOSA 2004; BOCZKOWSKI, 2004; MOHERDAUI, 2005), apesar de que não haja entre os diversos autores um consenso quanto ao que caracterizaria, prioritária ou determinantemente tal estágio. Seria esse novo ciclo de desenvolvimento caracterizado pela pauta aberta? (BROWN & CHIGNELL, 1997); pela ampla utilização de bases de dados? (MACHADO, 2004; BARBOSA, 2004; FIDALGO, 2003; KOCH, 1991); maior Interatividade?; maior Personalização? (BONNET, 2001; PRYOR, 2002); maior atenção para com o Local (GARCIA, 2000); ou tudo isso junto e algo mais?

      Talvez ainda seja cedo para um julgamento definitivo, quanto ao desdobramento promissor do hipertexto jornalístico na Web e o relativo fracasso do hipertexto de ficção. Alckmar Santos (2002) aponta em direção a coisas por vir:

 

Em linhas gerais, o que se deve discutir, com respeito aos hipertextos eletrônicos, é a maneira como a materialidade deles se proteifica e se permite percursos e desenhos de leitura e de navegação que colocam em xeque as fronteiras habituais entre real e virtual, espacial e temporal. E mais, para a criação literária (e para toda arte que ainda vislumbra alguma chance de aprender com a criação verbal), essas possibilidades todas apontam para outro duplo movimento, o de versificação da prosa e de prosificação do verso. São dicotomias que perseguem a leitura no(do) espaço eletrônico, permitindo entendê-lo sob a perspectiva de lógicas plurais e dinâmicas, sempre assentadas num espaço, esse do transbordo dos significantes e dos significados, mas sem reduzir-se a fórmulas prontas, a essências ideais, a gestos desprovidos de temporalidade e prenhes de relativismo. Tais duplicidades podem ser a maneira mais próxima de uma racionalidade plural, a ser associada aos textos eletrônicos.(SANTOS 2002)

 

 Aspen Aarseth (2003) porém aponta para algumas outras evidências, que podem indicar que outras portas estão se abrindo para o texto eletrônico:

 

Pode ser muito cedo para passar-se um julgamento sobre o sucesso cultural do hipertexto, uma vez que mudanças culturais são muito mais lentas que inovações tecnológicas. Tipicamente, levou cinqüenta anos desde a inovação de Gutenberg para que os livros passassem de uma simulação de um manuscrito para os artefatos que nós hoje conhecemos. Talvez a idéia de (Ted) Nelson de uma escrita não seqüencial seja adotada por uma geração que lê a maioria de seus textos online, e para a qual a impressão em papel parecerá graciosamente antiquada e ornamental, um pouco como as inscrições em pedra nos parecem hoje. No entanto, essa geração já está ativa por aqui e os textos que eles usam são digitais e interativos de uma maneira que Nelson não imaginou. Hoje, a linguagem escrita de nossa geração mais jovem é formatada não pelo hipertexto, mas pelo SMS (mensagens curtas - “torpedos” - de telefones celulares) um sucesso totalmente inesperado da tecnologia de telefonia móvel (GSM) (...) Os códigos lingüísticos desse meio (por exemplo CUL8R para “see you later”) contaminam outros gêneros textuais, para desespero de pais e professores. Mas o sucesso sociolingüístico do SMS enquanto meio indica-nos que há uma mudança real na prática e na história da escrita, que, diferentemente do hipertexto radical, e num tempo muito mais curto, já aconteceu (ARSETH, 2003)

 

O próprio Chaouli (2005), apesar de todas as reservas e restrições que faz à ficção interativa, acaba por concluir que alguma forma de prosa de ficção, ainda que hierarquizada, deverá encontrar seu formato próprio, enraizar-se e adaptar-se ao novo meio eletrônico:

 

É surpreendente que a narrativa tenha sobrevivido à sua transferência  da oralidade para a o armazenamento escrito em veluns, rolos e finalmente na forma de livro, o que testemunha o quão produtiva e prazenteira a comunicação hierarquizada pode ser. Há poucas dúvidas de que ela se transferirá também para o meio eletrônico (p. 609) 

 

      A próxima década, provavelmente, dirá...

      Finalizando, é importante mais uma vez ressaltar aqui a importância de estabelecer e manter essas pontes entre as diferentes tipologias discursivas, seja no ensino da Literatura, seja do Jornalismo. A experiência de observar – e de experimentar - com as duas matrizes discursivas constitui uma maneira extremamente enriquecedora de fazer frente à tarefa de “ensinar a escrever” e “compreender a escritura”.

      Uma técnica docente que trabalhe de forma paralela e comparativa  duas tipologias, ainda que com ênfase maior e tendo como objeto central uma delas, é proveitosa tanto para os estudantes envolvidos, que pela observação e experimentação passam a perceber com maior clareza as especificidades, limites e possibilidades de cada matriz discursiva, quanto para o investigador, que fica sujeito ao constante desafio de manter-se aberto às  diferentes formas expressivas e às possíveis hibridizações derivadas dessa abordagem comparativa.

 

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<REVISTA TEXTO DIGITAL>

 

 


[1] O Manual, hoje válido apenas como registro histórico daquele período, está disponível na Internet.

 

[2] O Projeto Panopticon Plataforma Multiusuário está sendo desenvolvido através de um financiamento PRONEX (CNPq e FAPESB), envolvendo originalmente a Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Instituto Tecnológico de Monterrey (México) e Universidad de Córdoba (Argentina). Mais recentemente estão processo de incorporação a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

 

[3] O percurso que resulta nesta comunicação começou com um trabalho apresentado no II Encontro Nacional da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJOR), Salvador, novembro de 2004. Posteriormente e com modificações, o texto da comunicação foi publicado como “Natura non facit saltum: Promessas, alcances e limites no desenvolvimento do jornalismo on-line e da hiperficção”, na Revista e-COMPOS, Edição 2, abril de 2005, disponível em: http://www.compos.org.br/e-compos.Um capítulo de livro está em elaboração para ser publicado em colânea em fase organização pelas professoras Claudia Quadros (UTP) e Zélia Leal Adghirni (UNB).

 

[4] Para uma discussão sobre as características da Internet enquanto meio de comunicação e/ou ambiente de comunicação, veja-se Palacios, 2003.

 

[5] Naturalmente estamos falando do “jornal moderno”, ou seja, de um modelo que está entre nós há quase 100 anos.

 

[6] Para uma discussão do jornal enquanto dispositivo, veja-se Mouillaud (1997, p.2).

 

[7] The Concise Oxford Dictionary, Oxford: Clarendon Press, 1990 edition.

 

[8] Para uma discussão dos textos de aventura em formato papel, veja-se Montfort, 2003.

 

[9] Para uma discussão dos conceitos de ruptura, continuidade e potencialização, veja-se Palacios (2003).

 

[10] Uma excelente amostra de manuscritos iluminados pode ser apreciada na seção medieval da  Web Gallery of Art

 

[11] Para uma coleção dessas fotos veja-se: http://xroads.virginia.edu/~UG97/fsa/gallery.html

 

[12] No caso da Internet, o casamento feliz entre texto e imagens em movimento está ocorrendo no caso dos vídeo-games, que já constituem objeto de um campo específico de estudos de narratividade hipertextual e multimidiática.

 

[13] A transposição plena tem voltado como opção: alguns sites jornalísticos comerciais oferecem, para assinantes, a possibilidade de acesso em PDF à versão integral do jornal impresso. É o caso, por exemplo, de O Estado de SãoPaulo  que oferece tais serviços para seus assinantes.

 

[14] O Monstro da Lagoa Negra (The Creature from the Black Lagoon) foi produzido em 1954, dirigido por Jack Arnold. Contava a história de uma horrenda (porém sensível!) criatura que habitava uma lagoa negra na Amazônia. Uma história no estilo King Kong, com a atriz Julia Adams fazendo o papel de objeto de desejo do monstro. Na Internet é possível ter acesso a uma imagem da criatura em 3D. Veja usando óculos com uma lente verde e outra vermelha, como os utilizados para os filmes 3D.

 

[15] Uma discussão estabelecendo diferenças entre o excesso e o excessivo pode ser encontrada em Santos (2002)

 

[16] Um dos mais famosos hipertextos coletivos de meados dos anos 90, o Hotel, de Robert Coover, criado como parte de uma Oficina de Hipertexto da Brown University, não é mais encontrado na Internet, sequer como um “museu” no Wayback Machine, a máquina do tempo da Web. Referências ao Hotel são encontradas, é claro, enquanto objeto de textos de crítica literária.